Por Rose Mercatelli
Apesar do nome, a Guerra dos Cem Anos, como ficou conhecida a disputa entre França e Inglaterra, as duas maiores potências europeias do século 14, durou 116 anos. Segundo os historiadores, começou em 1337 e terminou em 1453. Mas não foi uma luta ininterrupta. Na verdade, aconteceram vários confrontos entre as duas monarquias com vitórias e derrotas para ambos os lados.
De acordo com os dados históricos, o pavio para o início do conflito foi aceso quando, em 1328, o rei francês Carlos IV morreu sem deixar herdeiros. Eduardo III, então rei da Inglaterra, achou-se no direito de reivindicar para si o trono vago. Além de súdito, ele era sobrinho do rei morto, por parte de sua mãe.
Entretanto, nobres franceses também queriam o mesmo. Sob a alegação de que o trono francês só poderia ser herdado por um homem (ou por um pretendente oriundo de uma descendência masculina), a assembleia francesa acabou escolhendo o conde Filipe de Valois, que se tornou Filipe VI (1328 a 1350).
O rei Eduardo não gostou de ser preterido, justo ele que já era dono por herança das regiões da Gasconha (no sudoeste da França, faz divisa com o norte da Espanha), de sua vizinha Guiana (atual território da Aquitânia) e do condado de Ponthieu (ao norte da França). Mas o inglês não discutiu a decisão, reconhecendo Filipe VI como rei da França em 1329 em Amiens e prometendo- lhe obediência.
Ilustração representando a batalha de Azincourt que aconteceu em 25 de outubro de 1415 (Dia de São Crispim), no norte da França
Interesses comerciais
Ainda havia outra zona de atrito entre os dois países. A região de Flandres, a nordeste da França, (atual Bélgica e Países Baixos) era um rico entreposto comercial. Afora seu intenso comércio, Flandres ainda era um importante centro produtor de tecidos, que comprava grande parte da lã produzida na Inglaterra. Ainda que a região fosse politicamente subordinada à França, os produtores flamengos, por interesses comerciais, posicionaram-se a favor dos ingleses, fato que desagradou a Coroa francesa.
Apesar do nome, a Guerra dos Cem Anos, como ficou conhecida a disputa entre França e Inglaterra, as duas maiores potências europeias do século 14, durou 116 anos: de 1337 até 1453
A situação piorou quando o conde de Nevers, regente de Flandres, prestou juramento de obediência ao recém-coroado Filipe VI. Com medo que a economia da região entrasse em colapso, os flamengos reagiram. O rei francês, em apoio ao Conde Nevers, interveio no território. Em represália, Eduardo III suspendeu as exportações de lãs inglesas. Sem sua principal matéria-prima, os flamengos resolveram apoiar o monarca inglês que, novamente reivindicava o trono francês, repudiando o juramento de obediência que fez em Amiens. A partir desse ato, não havia outra saída entre os dois monarcas a não ser declararem guerra um contra o outro.
Primeiro período (1337 e 1364)
Vitórias inglesas
A França tinha uma população quatro vezes maior do que a Inglaterra. Em compensação, a monarquia inglesa era mais forte. Em 1337, Filipe VI começou o conflito ao atacar a Guiana (que pertencia legitimamente a Eduardo III) e exercer um intenso assédio ao litoral inglês até ser derrotado em 1340.
A cavalaria francesa sofreu em Aljubarrota (1385) outra pesada derrota contra as táticas de infantaria, depois de Crécy e Poitiers
Entre 1346 e 1353, uma epidemia de peste bubônica aniquilou aproximadamente um terço da população europeia. Com os exércitos reduzidos, as batalhas tiveram de ser interrompidas
As Batalhas de Crécy (1346) e de Calais (1347) foram as mais importantes do período. Contando com o apoio financeiro dos mercadores de Flandres, os ingleses levaram a melhor nas duas batalhas, o que permitiu à Inglaterra manter o controle sobre importantes posições ao norte da França, inclusive sobre o Canal da Mancha. O avanço sobre o território inimigo só não foi maior porque os dois países estavam sendo duramente castigados por uma doença mortal.
Ilustração representando a batalha de Azincourt que aconteceu em 25 de outubro de 1415 (Dia de São Crispim), no norte da França
Entre 1346 e 1353, uma epidemia de peste bubônica (chamada de peste negra) aniquilou aproximadamente um terço da população europeia. Tantas mortes fizeram com que a produção agrícola e as atividades comerciais tivessem uma queda abrupta. Com os exércitos reduzidos, as batalhas entre os dois países tiveram de ser interrompidas por conta da situação caótica.
Batalha de Poitiers (1356)
Quando os combates reiniciaram anos depois, Eduardo III pode contar com a inestimável ajuda militar de seu filho Eduardo, o príncipe de Gales. Em agosto de 1356, aos 26 anos, o príncipe Negro, como era conhecido pela cor de sua armadura, mostrou ser um comandante competente ao invadir a região de Aquitânia (Guiana), para preservar suas bases avançadas.
Eduardo não encontrou resistência por parte dos súditos do rei francês João II, o Bom (1350 a 1364). Os ingleses e seus aliados da Gasconha devastaram e queimaram cidades e campos, deixando o inimigo enfrentar não só a escassez de soldados como também a falta de comida.
João II, entretanto, conseguiu reunir um exército de 20 mil homens e ordenou que empurrassem as tropas inimigas em direção ao mar. Em um primeiro momento, os ingleses realmente bateram em retirada em direção ao sul. Porém, próximo à cidade de Poitiers, o Príncipe Negro conseguiu virar o jogo e capturar João II. Conta a lenda que, durante o cerco, o monarca francês tirou suas túnicas reais, anéis e colares, e se misturou à multidão. Entretanto, apesar do disfarce, foi capturado minutos depois até porque João era a única pessoa que estava de coroa no meio da confusão.
Eduardo logo exigiu um resgate de 3 milhões de coroas para libertá-lo, uma soma colossal que deveria ser paga em prestações. Cinco anos depois, João foi solto mediante o pagamento de apenas parte do seu resgate.
Exército atolado
Na batalha de Poitiers, o rei João mostrou ser um dirigente atrapalhado, titubeante em suas decisões e pouco hábil ao comandar seus exércitos. Além disso, parte de sua derrota também pode ser creditada ao tamanho de seus exércitos, enormes e lentos, com uma grande quantidade de homens armados com bestas (ou balestras) vestindo pesadas armaduras e montando cavalos protegidos por chapas de ferro.
Todo esse arsenal atrapalhava a mobilidade de seus soldados. Como se não bastasse, durante a batalha, João levou seus cavaleiros em direção a um pântano. Com o peso todo, os cavaleiros franceses ficaram presos no atoleiro e acabaram dizimados pelas flechas inglesas.
O Príncipe Negro, pelo contrário, apostava tudo na velocidade e mobilidade de suas tropas. Sem armadura e levando o arco longo no lugar da pesada besta, um soldado inglês conseguia se mover rapidamente, o que se transformou em uma grande vantagem. Apesar de não terem os efeitos devastadores das balestras, as setas disparadas pelos arqueiros tinham um poder de fogo cinco ou seis vezes superior. O resultado foi mais uma vitória para os ingleses.
A donzela de Orleans
É provável que Joana D'Arc tenha nascido em 1412, em Dómremy, na região de Lorena, na França. Filha mais nova de um casal de camponeses pobres e analfabetos, desde cedo se revelou muito religiosa. Com 13 anos, dizia ouvir vozes de São Miguel, Santa Catarina de Alexandria e Santa Margarida que lhe aconselhavam a rezar muito e ir para Orleans para combater os ingleses.
Aos 16 anos, acompanhada de seis cavaleiros, foi ao encontro do Delfim, atravessando o território dominado pelos partidários do conde de Borgonha, aliado da Inglaterra. Portando roupas masculinas, Joana finalmente se encontrou com Carlos VII. Desconfiado, o Delfim, a princípio, não quis atendê-la. Mas depois, convencido de seu discurso, o Delfim lhe entregou a espada, a bandeira e um exército de 4 mil homens que, comandados por ela, libertaram Orleans em 9 de maio de 1429. Joana ainda venceria mais três batalhas: Jargeau, Meung-sur-Loire e Beaugency, nos dias 16 e 17 de junho do mesmo ano.
Na primavera de 1430, Joana D'Arc, ao tentar libertar a cidade de Compiègne, foi capturada pelos aliados do conde de Borgonha. Depois de interrogada e torturada inúmeras vezes, Joana, com apenas dezenove anos, foi queimada viva em Rouen, no dia 30 de maio de 1431, acusada de heresia e bruxaria. Foi o fim da grande heroína francesa da Guerra dos Cem dias.
A paz forçada
A Batalha de Poitiers se tornou o momento mais delicado para a França durante a Guerra dos Cem Anos. Sua derrota resultou no Tratado de Brétigny, que impunha pesadas sanções ao país. Derrotada e sem rei, a França não tinha nenhum poder de negociação e acabou abrindo mão de Calais, Aquitânia e Gasconha para a Inglaterra. No total, perdeu cerca de um terço de seu território.
Em troca, Eduardo III, da Inglaterra, desistia do trono da França e os direitos às regiões da Normandia e Bretanha. No dia 24 de outubro de 1360, foi paga a primeira parcela de 600 mil coroas. O restante seria dividido em prestações a serem saldadas a cada seis meses. Como garantia, 40 nobres franceses ficaram reféns dos ingleses para serem libertados, aos poucos, a cada fatura liquidada.
Mas ficava cada vez mais difícil para o governo francês honrar sua dívida. Quase cinco anos se passaram quando João II finalmente conseguiu voltar para casa em 1364 para morrer quatro meses depois, sendo substituído por seu filho Carlos V. Apesar de sua conhecida generosidade para com os pobres, João passou à história como um rei atrapalhado na política e sem nenhuma capacidade para liderança.
Segundo período (1364-1380)
Ordem na casa
Carlos V se negou a pagar a conta exorbitante aos ingleses e, ao mesmo tempo, resolveu dar um jeito na própria casa. Unificou seus exércitos e graças a um notável cavaleiro francês, Bertrand Du Guesclin, organizou seus homens para combaterem em um sistema de guerrilhas. Assim, conseguiu recuperar parte de seu território perdido.
As vitórias permitiram que o rei centralizasse o poder. Dessa maneira, Carlos V, o Sábio, controlou melhor seus nobres, aumentou a arrecadação tributária e organizou o Estado, colocando homens capazes, vindos da burguesia, em altos cargos de confiança.
Em 1377, na Inglaterra, com um pequeno intervalo de meses, morreram Eduardo III e seu filho, o Príncipe Negro. O sucessor foi o neto do monarca falecido, Ricardo II, com apenas dez anos. A morte de Carlos V, em 1380, esfriou o ânimo dos franceses pela guerra.
Terceiro período (1380-1422)
Tempos de trégua
No fim do século 14 e nas décadas seguintes, franceses e ingleses se viram às voltas com revoluções internas que exigiam mais atenção do que a guerra entre eles. Dessa forma, começou uma fase de paz não declarada, rompida de quando em quando.
Os franceses enfrentaram problemas muito mais complexos. Em 1380, com a morte de Carlos V e com a ascensão do herdeiro Carlos VI, de doze anos, houve a cisão da nobreza francesa. Os partidários dos duques de Borgonha, considerando Carlos VI incapaz, tentaram tomar o poder várias vezes, mas perderam. Daí resolveram se aliar aos ingleses.
A Batalha de Poitiers se tornou o momento mais delicado para a França durante a Guerra dos Cem Anos. Sua derrota resultou no Tratado de Brétigny, que impunha pesadas sanções ao país
Por sua vez, Ricardo II, então com 22 anos, enfrentou graves distúrbios sociais e oposição de grande parte da nobreza. Dez anos depois, foi sucedido por Henrique IV em 1399. Anos depois, a loucura do rei Carlos VI mais a guerra civil entre os franceses animou o novo rei inglês Henrique V (1413) a reivindicar de novo o trono francês para a Inglaterra. Em 1415, o monarca desembarcou na Normandia, tomando Harfleur.
Os comandantes
Quem reinou durante o período da Guerra dos Cem anos:
Filipe VI,
o Afortunado
(r. 1328-1350) * João II,
o Bom
(r. 1350-1364) * Carlos V,
o Sábio
(r. 1364-1380) * Carlos VI,
o Louco
(r. 1380-1422) * Carlos VII,
o Delfim
(r. 1422-1461) *
Eduardo III
de Inglaterra
(1327-1377) * Ricardo II
de Inglaterra
(1377-1399)* Henrique IV
de Inglaterra
(1399-1413) * Henrique V
de Inglaterra
(1413-1422) * Henrique VI
de Inglaterra
(1422-1461)*
*Datas de início e fim do reinado
Carlos V unificou seus exércitos e graças a um notável cavaleiro francês, Bertrand Du Guesclin, organizou seus homens em um sistema de guerrilhas: conseguiu recuperar parte de seu território perdido
Batalha de Azincourt
"Aquele que sobreviver esse dia e chegar à velhice, a cada ano, na véspera desta festa, convidará os amigos e lhes dirá: 'Amanhã é São Crispim.' E então, arregaçando as mangas, ao mostrar-lhes as cicatrizes, dirá: 'Recebi estas feridas no dia de São Crispim.'" (A Vida do Rei Henrique V, ato IV, cena III - Shakespeare)
No dia de São Crispim, a 25 de outubro de 1415, a chuva torrencial transformou o campo de guerra em um atoleiro o que, mais uma vez, foi providencial para os exércitos ingleses. A diferença numérica era gritante: 50 mil franceses contra 15 mil arqueiros ingleses e galeses. Mesmo assim, mais uma vez a orgulhosa cavalaria francesa foi arruinada. Alguns historiadores calculam que na Batalha de Azincourt morreram 10 mil franceses contra apenas 1.600 ingleses.
A nova ascensão inglesa impôs, em 1420, o Tratado de Troyes que garantia à Inglaterra todo o norte da França, inclusive Paris. E mais, forçou Carlos VI a deserdar seu filho, o Delfim Carlos VII do trono. Como se não bastasse, o louco rei francês ainda teve de aceitar o casamento de Henrique V com sua filha, a princesa Catarina. Depois do enlace, Henrique V da Inglaterra finalmente tomou posse do trono francês por direito.
Pintura francesa do século XV retratando a Batalha de Crécy, de 1346
Quarto período (1422-1453)
Ajuda vinda dos céus
Em 1422, Henrique V da Inglaterra e Carlos VI da França morreram e os dois tronos, oficialmente, se destinariam a Henrique VI, um bebê recém-nascido. Seu tio, o Delfim Carlos VII (deserdado anteriormente por seu avô,) finalmente foi coroado em 1429, mas ficou apenas com uns poucos territórios do sul da França, enquanto o norte estava nas mãos de Filipe III, o Bom, um fantoche comandado pelo reino da Inglaterra.
Depois de coroado, o Delfim Carlos se dirigiu ao Vale do Loire para comandar resistência francesa. Foi quando surgiu em sua vida uma camponesa que, disposta a lutar por sua pátria, trouxe à França e ao Delfim uma vitória importante ao vencer a Batalha de Orleans. (veja box na página 42).
A última batalha
Porém, o fim da guerra ainda teria de esperar mais 24 anos. Nesse meio tempo, ingleses e franceses ainda se enfrentaram em mais três combates em 1429: Jargeau, Meung-sur-Loire e Patay. Em 1450, o campo de luta foi em Formigny.
Até que, em 1453, na Batalha de Castillon, os franceses conseguem recuperar a cidade de Bordeaux, o último reduto inglês. Nenhum tratado foi assinado para declarar oficialmente o fim das hostilidades. No entanto, a rivalidade anglo-francesa ainda perduraria por muito mais tempo.