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O primeiro livro publicado por Monteiro Lobato foi uma série de relatos sobre o saci-pererê. A partir daí, o personagem acabou ganhando destaque na maioria de suas histórias
Um conjunto de coisas que o povo sabe, sem saber quem ensinou. Assim é o folclore, e assim são os mitos brasileiros. Todo mundo conhece - ou já ouviu falar - de saci, boitatá, curupira e mula-sem-cabeça. Mas se você perguntar quem criou esses mitos ninguém sabe dizer. Têm origem indígena. Ou africana. Ou portuguesa. Ou as três misturadas. As histórias foram passadas oralmente, de pai para filho desde o tempo do descobrimento - ou até antes dele, no caso dos índios - e foram sofrendo modificações ao longo dos anos.
Hoje, um mito nascido no Amazonas tem versões modificadas ou totalmente diferentes no Sudeste, no Sul e no Nordeste. Caso da Mãe d'Água, índia-sereia na região Amazônica, e sereia-branca na região do São Francisco. Ou da boitatá, cobra de fogo surgida da escuridão no Norte, e de comer olhos de bicho no Sul durante um grande dilúvio. O fato é que, não importa sua origem, as histórias desses seres fantásticos, com poderes sobrenaturais, continuam encantando crianças e adultos. Mesmo que sejam histórias profundamente moralistas, como a da mula-sem-cabeça, ou histórias só para assustar, como a do Mapinguari.
Insttituto Moreira Salles/Monteiro Lobato/Reprodução
Ilustração do saci feita por Monteiro Lobato
"Tio Barnabé, que é, afinal de contas, o tal saci?"
" - O saci é um diabinho de uma perna só que anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pitinho aceso, e na cabeça uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça de um saci fica por toda a vida senhor de um pequeno escravo."
"- Mas que reinações ele faz? – indagou Pedrinho."
"- Quantas pode – respondeu o negro. – Azeda o leite, quebra a ponta das agulhas, esconde as tesourinhas de unha, embaraça os novelos de linha, faz o dedal das costureiras cair nos buracos. Bota moscas na sopa, queima o feijão que está no fogo, gora os ovos das ninhadas. Quando encontra um prego, vira ele de ponta pra riba para que espete o pé do primeiro que passa. Tudo que numa casa acontece de ruim é sempre arte do saci. Não contente com isso, também atormenta os cachorros, atropela as galinhas e persegue os cavalos no pasto, chupando o sangue deles. O saci não faz maldade grande, mas não há maldade pequenina que não faça."
(Trecho de "O Saci", de Monteiro Lobato)
Monteiro Lobato foi o primeiro escritor a descrever o saci-pererê na literatura. Primeiro, em 1918, na transcrição de relatos que colheu da gente do interior de São Paulo sobre a "aparição". Depois, na forma de livro documentando esses relatos - "Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito". Foi o primeiro livro de Monteiro Lobato. O escritor era tão fascinado pelo saci que o tornou personagem recorrente nas aventuras de Pedrinho, Narizinho, Dona Benta, Tia Anastácia e Emília. Mais tarde, quando as histórias da Turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo foram adaptadas para a televisão, em meados dos anos 70, o saci acabou se transformando em um dos personagens mais carismáticos do folclore brasileiro.
Mas a figura do negrinho buliçoso nasceu no final do século 18, início do século 19, como um dos melhores exemplos de convergência, segundo Luís da Câmara Cascudo. Os elementos que compõem o personagem vêm de várias paragens. Seu nome vem de uma ave, o saci (Tapera naevia). A carapuça vermelha, com poderes mágicos, é citada pelos romanos (o pileusdo íncubo capaz de dar riqueza e poder a quem conseguir pegá-lo). O negro travesso, que troça de todos, aparece no folclore português.
O saci-pererê é comum no folclore do Sul e Sudeste do Brasil. Para muitos, ele é uma entidade maléfica. Para outros, uma entidade graciosa e zombeteira. Mas é crença comum que o saci anda pelado por aí, pulando numa perna só, que aparece e desaparece dentro de um redemoinho de vento, que se anuncia pelo assovio persistente, misterioso, inlocalizável e assustador, e que não atravessa água - como outros seres encantados. Se alguém quiser capturar um saci, basta jogar no pé-de-vento uma peneira de cruzeta emborcada, dessas com duas taquaras mais largas que se cruzam bem no meio dela. O saci fica preso sob a peneira, e deve-se colocá-lo depois dentro de uma garrafa tapada com uma rolha com uma cruz desenhada. Antes, porém, é preciso tirar a carapuça dele e escondê-la muito bem.
9. Negrinho do pastoreio
"- Foi por aí que eu perdi... Foi por aí que eu perdi", assim a gente do campo, colocando uma vela sob uma árvore ou junto a um moirão, pede ao Negrinho do Pastoreio que encontre um objeto perdido. A crença de origem afro-cristã nasceu nos tempos da escravidão, nos pampas gaúchos, e retrata a violência dos senhores de escravos. É uma lenda regional e moral - o Bem contra o Mau.
Reza a lenda que um estancieiro rico, muito mau e sovina, deixava aos cuidados de um menino escravo um cavalo baio rápido como um foguete. Certo dia, o estancieiro apostou que seu baio faria o árabe do vizinho comer poeira numa carreira de 300 metros. No dia marcado, os dois cavalos disputavam cabeça a cabeça, até que, a poucos metros da linha da chegada, o baio do estancieiro estancou e quase atirou o negrinho ao chão. Enfurecido, o estanceiro desceu o relho no moleque e mandou-o para o campo pastorear o baio e os tordilhos dia e noite, por 30 dias.
Passados alguns dias, o menino estava desesperado. Cansado, com frio e com fome, acabou adormecendo sob uma árvore e, quando acordou, os cavalos haviam sumido. Voltou para a sede da fazenda já temendo o pior. Quando contou ao senhor que tinha perdido os animais, tomou outra surra de relho. E o estancieiro lhe disse que não voltasse sem os cavalos. O menino procurou, procurou, procurou e nada. Pediu então ajuda à sua madrinha, a Virgem Nossa Senhora, e encontrou os cavalos. Antes de voltar para a fazenda com a tropa, parou para descansar. Mas o filho do senhor, que seguia o mesmo caminho do pai nas maldades, encontrou o negrinho, soltou os cavalos e correu para contar ao estancieiro que o menino estava fazendo corpo mole. O negrinho acordou embaixo de pancada, e novamente o estancieiro mandou dar-lhe uma surra até que a carne despregasse dos ossos e o menino não emitisse som algum. Para economizar a enxada da cova, mandou jogar o corpo do menino num formigueiro.
Três dias depois, o estancieiro resolveu passar no formigueiro para ver se as formigas já tinham devorado tudo. Caiu de joelhos ao ver o negrinho em pé, sobre o formigueiro, com a pele limpa, ladeado pela tropa de cavalos perdidos e pela Virgem Nossa Senhora. O Negrinho olhou para o senhor, montou no baio, riu-se e saiu pastoreando a tropilha. Desde então, o Negrinho do Pastoreio anda à procura de objetos perdidos, colocando-os de jeito para serem achados pelos donos quando estes acendem um coto de vela, cuja luz ele leva para o altar da Virgem Nossa Senhora. Por isso, se você perder algum objeto, acenda uma vela pro Negrinho e peç ajuda. Se ele não achar... ninguém mais acha.
8. Mula-sem-cabeça
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No Sudeste e Centro-Oeste do Brasil já foram relatadas várias aparições de uma criatura que, nas noites de quinta para sexta-feira, sai assombrando pequenos povoados construídos ao redor de uma igreja. Trata-se de uma mula que, apesar de não ter cabeça, solta fogo pelas ventas e pela boca, percorrendo sete povoados, relinchando muito alto e trotando violentamente. O barulho de seu trote é tão ensurdecedor (ela tem ferraduras de prata), que pode ser ouvido a quilômetros de distância. Nas noites da mula-sem-cabeça, ninguém põe os pés para fora de casa, com medo de topar com ela. Se não der para fugir do encontro, o jeito é deitar-se no chão sem encarar o bicho, esconder unhas, dentes e qualquer coisa que brilhe e que possa atrair a atenção da criatura.
Nessas regiões, todos sabem que a mula - ou burrinha - é uma mulher que foi amaldiçoada por Deus por dormir com um padre dentro de uma igreja católica. Dizem que para desfazer o encantamento, é preciso picar a mula-sem-cabeça com uma agulha ou alfinete ou tirar o arreio de ferro da boca da criatura. Mas, se ela não tem cabeça, como seria possível arrancar o arreio? E quem teria coragem suficiente para chegar perto do bicho para picá-la ou para procurar entre as labaredas o pedaço de metal de sua boca? Ao que se sabe, ninguém ainda tentou.
Os primeiros registros de aparições da mula-sem-cabeça datam do início do período colonial, no século 16. Acredita-se que o mito tenha sido trazido para o Brasil pelos portugueses, e para o restante da América Latina pelos espanhóis. Há relatos da presença na mula na Espanha, na Argentina e em outros países da América do Sul.
A aparência da mula varia de região para região. Há quem diga que ela é marrom, e há quem jure que o bicho é preto e tem uma cruz branca no peito. A transformação da mulher em mula acontece numa encruzilhada. Logo depois que se transforma, sai pelos campos matando o gado, assustando as pessoas e destruindo o que vê pela frente. Segundo alguns relatos, a viagem começa e termina no povoado onde o pecado foi cometido. E a mula-sem-cabeça pode, ainda, transmitir sua maldição para outras mulheres pecadoras.
Alguns estudiosos defendem que a maldição da mula é uma forma que a Igreja católica do Brasil colônia arrumou de desencorajar o adultério. É, portanto, um mito moralista. A pecadora amaldiçoada por Deus só pode voltar à forma humana temporariamente - não importa a maneira como isso se dá: por picada de agulha, amarrando-a a uma cruz ou tirando-lhe as rédeas. Enquanto o benfeitor estiver vivo ou morando no povoado, ela não mais se transforma. Mas basta o benfeitor morrer ou "picar a mula" para outras paragens que a pobre mulher volta a se transformar. A menos, é claro, que se case com o benfeitor em agradecimento. Ou que o padre de quem é amante a amaldiçoe sete vezes antes de celebrar uma missa.
7. Lobisomem
Sete povoados, sete cemitérios de igrejas, sete outeiros, sete encruzilhadas, sete partes do mundo. O lobisomem brasileiro faz essa peregrinação sempre que se transforma. Ele começa a corrida à meia-noite e termina às duas da manhã. A maldição é moral. Nasce-se lobisomem, e, não, fica-se lobisomem. Estão fadados a se transformar em lobisomens os filhos de incestos ou o filho que nasceu depois de uma série de sete filhas.
Em geral, os lobisomens são muito brancos, magros, pálidos, de pele macilenta, orelhas compridas e nariz levantado. A primeira transformação se dá aos 13 anos de idade e, a partir de então, toda terça e sexta-feira, não importa a lua. O lobisomem brasileiro não sai atacando as pessoas. Ao transformar-se ele sai para cumprir a sina de percorrer os povoados, os cemitérios, as encruzilhas, sempre terminando no ponto de partida e sempre o mais rápido possível para dar conta de fazer tudo em duas horas.
Para quebrar a sina do lobisomem é preciso coragem. Você deve chegar bem perto do bicho sem que ele perceba e bater-lhe forte na cabeça. Mas é preciso ter cuidado para não se sujar com o sangue do lobisomem. Caso contrário, quem vai ter de fazer loucas corridas às terças e sextas transformado em lobo é você.
6. Curupira
Demônio das florestas. É assim que os índios tupis chamam o Curupira, um anão de cabelos vermelhos, dentes verdes ou azuis e pés virados para trás que protege as árvores e os bichos das matas brasileiras. Na verdade, ele não é um anão. É um menino baixinho. Tanto que seu nome deriva das palavras curumim e pira e significa corpo de menino. A aparência do Curupira varia de região para região, mas não a sua estatura - apenas quatro palmos. No Pará, por exemplo, o Curupira é descrito como sendo calvo e com o corpo coberto de pelos, sem orifícios para as secreções. No Acre, a criatura tem cabelos revoltos, para cima.
Quando pega um caçador maltratando um animal ou uma árvore, cobre-o de pancadas, chegando a matar às vezes. Para proteger a natureza, o Curupira usa mil artimanhas. Com gritos, assovios e gemidos, ele ilude e confunde os caçadores, fazendo com que eles o sigam pensando que estão atrás de algum animal. Quando se dão conta, estão perdidos na mata. O Curupira ainda apaga os rastros deixados pelo caçador, deixando suas pegadas ao contrário no lugar. E o incauto que cai na do Curupira nunca mais encontra o caminho de volta. Alguns caboclos costumam deixar presentes no caminho da mata (cachaça, comida sem pimenta nem alho) para distrair ou agradar o Curupira.
30 de maio de 1560
"É coisa sabida e pela boca de todos corre que há certos demônios a que os brasis chamam corupira, que acometem aos índios muitas vezes no mato, dão-lhe de açoites, machucam-nos, matam-nos. São testemunhas disto os nossos irmãos, que viram algumas vezes os mortos por eles. Por isso, costumam os índios deixar em certo caminho, que por ásperas brenhas vai ter ao interior das terras, no cume da mais alta montanha, quando por cá passam, penas de aves, abanadores, flechas e outras coisas semelhantes, como uma espécie de oblação, rogando fervorosamente aos curupiras que não lhes façam mal".
(José de Anchieta, São Vicente)
Se alguém vir o Curupira correndo as matas batendo nos troncos das árvores com um machado feito de casco de jabuti, com o calcanhar ou com o imenso pênis, pode se preparar porque lá vem tempestade. Sempre que a chuva forte se aproxima, o Curupira dá uma pancada no tronco das árvores para ver se elas estão fortes o suficiente para aguentar a ventania. Quando percebe que a árvore não vai resistir, ele avisa os animais para não chegarem perto.
O Curupira é um mito totalmente brasileiro, que não tem qualquer influência dos portugueses colonizadores. Estes quando aqui chegaram depararam com o medo que os índios tinham dessa criatura. Em 1560, José de Anchieta enviou cartas para a Coroa falando dos ataques da criatura de cabelos de fogo (veja quadro acima).
5. Caipora
Reprodução Jangada Brasil/ Marcos Jardim
O Caipora é geralmente confundido com o Curupira, mas ele não tem os pés voltados para trás e anda montado em um porco enorme
Também protetor das florestas e dos animais, o Caipora é geralmente confundido com o Curupira. Mas trata-se de uma criatura totalmente diferente e cuja aparência varia em todo o Brasil. Ele anda montado em um caititu, uma espécie de porco de enormes proporções, e segura um cajado feito de galho de jacapenga. No Sul do país é um gigante coberto de pelos pretos dos pés à cabeça. No Norte e Nordeste, um ser pequenino, indiozinho, muito escuro e com olhos cor de brasa, ágil e nu em pelo - ou vestindo uma pequena tanga. Em Pernambuco, ele tem um pé só. Em Minas Gerais, um olho só. Na Bahia pode ser uma cabocla, um negro ou um negrinho.
Não importa a região e a aparência, o Caipora aparece sempre como protetor da natureza. O nome significa habitante do mato e vem do tupi-guarani: caa (mato) e pora (habitante, morador). Chamado por alguns de duende e por outros de demônio, a criatura mora dentro de um tronco de árvore no fundo da floresta. Adora cachaça e fumo e costuma fazer tratos com caçadores, exigindo sangue humano nos contratos. Deixa-os matar a caça - exceto às sextas-feiras -, mas mata-os se não cumprirem o acordado. Quando encontra algum animal morto por caçadores sem a sua permissão, o Caipora pode ressuscitá-lo - poder que o Curupira não tem. O Caipora devolve a vida ao animal encostando-lhe o focinho de seu porco ou o cajado de jacapenga, ou, ainda, ordenando que ele ressuscite.
4. Mapinguari
O Mapinguari até poderia ser uma mistura de Curupira com Caipora. Mito do Amazonas, Acre e Pará, a criatura é um gigante peludo com os pés voltados para trás, as mãos com garras afiadas e uma boca vertical que sai do nariz e vai até o estômago. Em algumas regiões, diz-se que o Mapinguari tem um único olho, enorme, no meio da testa. Em outras, que ele tem duas bocas - uma no lugar normal e outra, enorme, na altura do estômago. Seus pelos avermelhados são tão espessos que o tornam à prova de balas - exceto na região do umbigo, a única parte vulnerável da fera.
Mas o Mapinguari, ao contrário do Curupira e do Caipora, não tem objetivos nobres na vida. Ele não protege as florestas nem os animais. O negócio dele é devorar os homens, de quem é inimigo ferrenho. Não come o corpo todo, apenas a cabeça, que enfia na bocarra e arranca de uma vez.
No Acre, acredita-se que o Mapinguari derive de índios que, chegando a uma idade avançada, transformaram-se no monstro. Mas tirando a boca vertical, a aparência do Mapinguari se assemelha muito à de um bicho-preguiça adulto, na descrição de quem já topou com a criatura e saiu vivo para contar a história. Talvez por isso, muitos acreditem tratar-se de remanescente da preguiças gigantes que habitaram a região amazônica no Pleistoceno e que teriam sobrevivido devido à abundância de alimentos e à proteção das árvores cerradas da floresta amazônica.
3. Boto
© 2010 ComoTudoFunciona/Geisa C. Souza
Lá para as bandas do Pará, quando a paternidade de alguém é desconhecida, diz-se que ele é filho do Boto. O Boto é criatura do folclore paraense, que vive nas águas do Amazonas e de seus afluentes, esperando o momento certo para se transformar em homem e seduzir as mulheres. O momento certo são as noites de festa, em que a música povoa os ouvidos das comunidades ribeirinhas e o arrasta-pé come solto.
Nessas noites, o boto sai da água, transforma-se em homem bonito, forte, alto, sedutor e de boa proza, veste-se de branco, coloca um chapéu na cabeça para esconder o orifício por onde respira, e sai à procura do baile, onde bebe, conversa, namora e encanta as mulheres com seu jeito de dançar. Sim, o Boto-moço é um verdadeiro pé de valsa, e ao seu gingado não resistem as casadas, as donzelas ou as viúvas. Antes da madrugada, pula na água e volta a ser boto. Não sem antes marcar com as moças que conheceram no baile encontros futuros, aos quais comparecem fielmente e dos quais elas geralmente saem grávidas.
A crença no Boto é tão grande que, em algumas comunidades ribeirinhas do Pará, quando a mulher pula a cerca e engravida do amante, põe a culpa no Boto e ninguém contesta. Nem mesmo o marido traído, que sabe ser impossível resistir aos encantos do bicho. Até bem pouco tempo atrás, os homens saiam à caça dos botos para matá-los e arrancar-lhes os olhos, as nadadeiras, as barbatanas, as genitálias e fazer com elas amuletos do amor e da sorte. Do amuleto feito do olho seco e preparado por um pajé, diz-se que é capaz de fazer qualquer moça se enamorar daquele que o possui.
A desculpaNo Pará, a crença no boto serve de desculpa não apenas para a paternidade de filhos desconhecidos, mas para qualquer coisa. Em 1967, o senador Álvaro Maia, do Amazonas, atribuiu ao Boto o desaparecimento de uma urna que era transportada por uma canoa no município de Benjamin Constant. A urna caiu na água, os votos não puderam ser contados e o candidato da oposição acabou ganhando as eleições. O vitorioso não titubeou: "Foi o boto que levou a urna pro fundo para proteger o caboclo da lei!".
Mas o Boto não é apenas um malandro sedutor que não quer saber dos filhos que faz. Na sua forma original, ele é um animal que protege embarcações, levando-as para local seguro em dia de tempestade, ajuda pescadores, levando os cardumes de peixes para junto das margens do Amazonas, e salva náufragos, conduzindo-os para terra firme. E se você estiver navegando pelo Amazonas e vir um cardume de botos seguindo um barco, pode ter certeza que dentro dele há mulheres grávidas ou em período fértil. Porque o Boto, além do gingado irresistível, tem um faro que ganha de qualquer cão perdigueiro.
2. Mãe-d'água (Iara)
© 2010 ComoTudoFunciona/Geisa C. Souza
Se você estiver passeando no final da tarde pelas margens do Amazonas ou do São Francisco ou navegando nos rios e ouvir um canto delicioso, que o faz ter vontade de saltar na água, cuidado. Você pode estar sendo atraído pela Mãe d'Água. Se conseguir escapar ao afogamento, não escapará da loucura. Diz a lenda que a Mãe d'Água é a versão feminina do Boto, que também gosta de um arrasta-pé e de seduzir os homens em terra, com sua beleza e boa conversa, e na água, com seu canto maravilhoso. Para alguns, ela é uma índia de olhos verdes, cabelos negros lisos e longos, de uma beleza estonteante. Para outros, ela é branca e loura, de olhos claros e igualmente linda.
A origem do mito varia do Amazonas para o São Francisco. Na região da Amazônia, a Mãe-d'Água é conhecida como Iara (do tupi uiara). Filha preferida de um pajé, que em tudo a elogiava, ela matou em defesa própria os dois irmãos invejosos que haviam tentado matá-la e, com medo de contar ao pai, fugiu. O pai então resolveu caçá-la e quando a capturou, jogou-a no encontro dos rios Solimões e Negro. Iara ressurgiu como sereia numa noite de lua cheia, encantando quem passasse com sua beleza e sua voz. Homens que escutam seu canto se apaixonam e se atiram no rio e, quando chegam ao fundo, são devorados por ela.
Na região do São Francisco, a Mãe d'Água é uma sereia nascida no rio. Ela aparece quando o rio dorme, todas as noites, à meia-noite. Durante dois ou três minutos, o velho Chico para de correr, as quedas d'água param de cair, os peixes deitam-se no leito do rio e os afogados seguem para as estrelas. É quando a Mãe d'Água vem à tona, procurando um banco de areia ou uma canoa para pentear os longos cabelos, cantando uma música muito bonita e atraindo para as águas aqueles que se atrevem a incomodar o sono do rio nesse pequeno intervalo de tempo. Por isso, os barcos que têm de navegar na hora morta do rio, costumam colocar uma carranca na proa para afugentar a Mãe d'Água e escapar da sina do afogamento.
Mas se carrancas do São Francisco são capazes de afugentar a sereia brasileira, o mesmo efeito elas não têm sobre uma outra criatura do folclore brasileiro.
1. Boitatá
Marcelo Xavier / Reprodução
Versão do ilustrador Marcelo Xavier da boitatá, ou cobra-de-fogo, para o livro "Mitos - O Folclore do Mestre André"
Uma cobra enorme, com olhos de fogo e corpo transparente que parece em chamas. Esse é o Boitatá, um dos mitos brasileiros mais antigos. Sua origem é indígena. O nome vem da junção das palavras mbaê (cobra) e tata(fogo). A cobra de fogo aparecia à noite, cintilando nas campinas e nas margens dos rios, assustando quem passasse. Em 1560, José de Anchieta escreveu que a cobra de fogo era a assombração mais temida pelos índios. Os negros escravos tinham sua própria versão da boitatá. Diziam a que "biatatá" era um ser que habitava as águas profundas e que saía à noite para caçar.
Em algum momento, os dois mitos convergiram, e hoje o boitatá é uma cobra que habita tanto as águas profundas quanto as campinas, tem olhos de fogo e parece ser feita de chamas azuladas. Em algumas regiões, a criatura protege as matas de incêndios, apagando o fogo quando passa. Em outras, ela é um ser maligno, que ateia fogo na mata. O surgimento da criatura, no entanto, ainda é desconhecido. A história mais conhecida é a que é contada no Rio Grande do Sul.
Lá, a boitatá teria surgido durante um dilúvio, durante um período de grande escuridão. A boiguaçu, uma cobra muito grande, dormia na escuridão de sua caverna quando foi surpreendida pelas cheias. Para não morrer afogada, procurou, assim como os outros animais, um local elevado. O tempo passou, e a água não baixava. Todos os animais estavam fracos de fome, e a cobra resolveu matar a sua fome comendo-lhes os olhos - sua parte preferida. À medida que ia comendo, a luz dos olhos das vítimas iam iluminando seu corpo, e a pele, muito fina, ia deixando transparecer essa "luz interior". Mas os olhos não tinham substância, e a cobra acabou morrendo de fome. Dizem que o que vaga cintilando na noite é o espírito da boiguaçu. Já outros, que trata-se de fogo-fátuo, fenômeno da natureza provocado pela auto-combustão de restos de grandes animais.
Qualquer que seja a versão do mito, é recomendado que a pessoa que encontrar um boitatá pelo caminho fique bem quieta e mantenha os olhos fechados, para não atrair o apetite voraz da cobra.
Fontes:
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CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, 10ª edição, Ediouro, 1998.
CASCUDO, Luís da Câmara.Geografia dos Mitos Brasileiros, 2ª edição, Global Editora, 2002.
CASCUDO, Luís da Câmara. Lendas Brasileiras, Ediouro, 2001.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos Tradicionais do Brasil, 20ª edição, Ediouro, 2003.
FAGUNDES, Antonio Augusto. Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul. Martins Livreiro Editor, 1996.
LOBATO, Monteiro. O Saci. 3ª edição, Brasiliense, 1952.
LOPES NETO, João Simões. Lendas do Sul, Echenique & C. Editores, 1913, em Projeto Gutenberg
PIRES, Cornélio. Conversas ao pé do fogo. 3ª edição, 1927.
ROCHA, Sylvio do Amaral e ANDRADE, Rudá K.. Somos Todos Sacys, Confraria Produções e TVS - Rede SescSenac, 2005, 58min.
Teixeira, José Aparecido. Folclore goiano; cancioneiro, lendas, superstições. 3ª edição, Companhia Editora Nacional, 1979.
XAVIER, Marcelo. Mitos - Folclore do Mestre André, Formato Editorial, 1997.