Todas as nações que emergiram no século XIX sofreram as dores do parto. O evento traumático na origem da nação brasileira foi a Guerra do Paraguai (1864-1870), que derramou indistintamente sangue de brancos e negros provenientes de todas as regiões do atual território.
Nosso país apareceu, oficialmente, em 1822. A separação entre Brasil e Portugal conheceu episódios violentos e mostras evidentes de antilusitanismo popular, mas isto não passou de uma brisa quando comparado com o vendaval da década de 1860.
Ao longo dos primeiros anos de independência, o que se viu foi um agravamento de tensões territoriais. Em primeiro lugar, existia a disputa entre as elites consolidadas no centro-sul, com sede no Rio de Janeiro, e as elites locais, dispersas pelas províncias. Isto já estava claro antes, em 1817, quando Pernambuco, só para citar o exemplo mais notável, se levantou contra o centralismo do governo estabelecido na Corte. Estas tensões, que explodiram durante o Período Regencial (1831-1840), acabaram apaziguadas na década de 1850, com o chamado Gabinete da Conciliação, que incorporava à direção do Estado segmentos da elite política do país até então em conflito.
Havia, entretanto, outra ordem de problemas que colocava em xeque o próprio modelo de sociedade patrocinado pelo novo Estado: a escravidão e tudo o que dela decorre. O Estado reconhecia, oficialmente, que havia indivíduos – inclusive nascidos no Brasil – que não eram cidadãos, mas propriedades de cidadãos. Este fato, por si só, impedia a existência efetiva de uma comunidade nacional – mesmo com a perceptível diminuição da população escrava após 1850, quando (novamente) se proibiu a entrada de escravos no país.
Quando a guerra estourou, em 1864, ela foi percebida como uma necessidade para reparação da honra nacional – pois o Brasil havia sido atacado. Este sentimento, promovido pelo governo imperial, encontrou apoio imediato na imprensa de todo o país, angariando também a simpatia de considerável parte da sociedade. Mas o evento, que pegou o país desprevenido, inclusive do ponto de vista do Exército (praticamente inexistente), acabou durando mais do que o entusiasmo inicial.
Em todo o Brasil foram organizados corpos de combatentes espontâneos – os Voluntários da Pátria – que iriam para o frontsubmetidos ao Exército. Com o desenrolar do conflito, esses grupos também passaram a incorporar ex-escravos que haviam sido libertados especificamente para o combate. Estes homens, os libertos, foram lutar lado a lado com negros livres, mestiços e brancos, provenientes da Guarda Nacional e do Exército que, por sua vez, sairia do conflito como uma grande força organizada.
Muitos mataram e outros tantos morreram nos campos abertos e nos lamaçais do país vizinho, embalados pela melodia do Hino Nacional e sob a mesma bandeira verde e amarela, forjando ali, na mais violenta face que pode assumir um Estado, um sentimento de unidade. O historiador José Murilo de Carvalho chegou a afirmar que nas trincheiras paraguaias, pela primeira vez, um paraense pôde conhecer um gaúcho, e assim por diante, o que ajudaria a cimentar o sentimento nacional. Este fato, mais do que um companheirismo entre irmãos de armas, traria complicações para a própria sociedade escravista que patrocinou a guerra.
Uma charge famosa de Ângelo Agostini, publicada em 1870, dá em parte a dimensão dos fatos. Ela mostrava um soldado negro que retornava do teatro de operações, vitorioso, fardado, com medalhas no peito, e encontrava a mãe amarrada a um tronco e sendo açoitada. Uma contradição havia emergido de maneira muito nítida – não era mais possível associar em uma mesma equação a exaltação da nacionalidade e a existência do cativeiro.
A oposição à escravidão, que já existia entre os próprios escravos, espalhou-se em outros setores da sociedade. Enquanto o governo imperial ponderava que a extinção do cativeiro era “questão de oportunidade”, como escreveu o próprio D. Pedro II, a imprensa, os estudantes e a esmagadora maioria dos profissionais liberais exigiam uma imediata solução para a “questão servil”.
O fim da guerra marcou o início do fim de um modelo político e social. Ainda em 1870, fundou-se no Rio de Janeiro o Partido Republicano, cuja versão mais aguerrida surgiria três anos depois, em São Paulo. Era, em grande parte, a reação de uma elite política federalista e escravocrata – as fileiras republicanas foram engrossadas na medida em que eram aprovadas as leis anticativeiro.
O abolicionismo começou a se transformar em legislação logo em 1871, com a Lei do Ventre Livre, e desembocaria na Lei Áurea, de 1888. Embalada pelo nacionalismo que floresceu justamente no período do conflito, a campanha abolicionista, com a participação do grosso da população, de escravos a parlamentares e membros da família imperial, foi o mais significativo movimento da sociedade civil de que se tem notícia em terras brasileiras.
Com o fim da escravidão, os opositores da medida migraram para a causa republicana, que se aproximou ainda do fortalecido Exército brasileiro, disposto, neste contexto pós-guerra, a assumir um novo lugar no cenário político. A guerra, de certo modo, ajudou a sepultar a escravidão e a matar o Império. Mas a luta por cidadania estava apenas no início.