16.12.13
Da Vinci
Quadros, máquinas e até engenhos voadores: Da Vinci reinventa o mundo
A Última Ceia: gestualidade, movimento, rigorosa geometria da perspectiva e briga com o prior
eonardo da Vinci é um dos nossos contemporâneos que deverão ser lembrados pelos próximos séculos como um desses espécimes raros que deixam sua marca no tempo em que viveram. Esse homem parece saber tudo. Em sua oficina, próxima ao convento da Ordem dos Servos de Maria, onde vive atualmente em Florença, aprendizes e ajudantes se debruçam sobre esboços de quadros, mapas, esculturas, modelos de relógios e projetos de estranhas máquinas de guerra. Filho bastardo de um modesto notário da vila de Vinci, Leonardo é um autodidata: não recebeu educação formal. Ainda hoje se ressente da rejeição que sofreu ao chegar a Florença, aos 17 anos. "Eu sei bem que alguns arrogantes acreditam poder me criticar, porque não sou erudito. E, se não posso citar, como eles, todos os autores, considero mais digno ler na experiência, na mestra de seus mestres." Um homem como ele desperta necessariamente a inveja. Leonardo da Vinci é um pintor soberbo, conhece anatomia como poucos e é um grande engenheiro. Desenha máquinas que só existem na sua imaginação. Máquinas que voam ou que navegam por baixo da superfície da água. Já criou armas para potentados que lhe fazem encomendas. Enfim, para ele os limites não existem.
Já por sua aparência se vê que está aí um homem original. Quem mais se atreveria a apresentar-se com as roupas e as maneiras que Leonardo adotou? A longa barba que começa a ficar grisalha, cuidadosamente penteada e frisada a ferro, serpenteia até a metade do peito. Belo e elegante, de físico bastante avantajado, dizem que pode dobrar uma ferradura apenas com a força das mãos. Aos 49 anos, é um dos criadores de um novo esporte, ainda sem nome: a escalada das montanhas dos Alpes. Leonardo se orgulha de haver chegado ao topo do Monte Roso, de 4634 metros de altura. A figura venerável, entretanto, é temperada com toques extravagantes: em vez do traje masculino convencional, que desce até os pés, suas roupas param à altura dos joelhos e são confeccionadas em ricos tecidos de tons rosados. Apesar de viver atualmente num convento, ele não deixou de abrigar em seus aposentos pessoais o belíssimo Giacomo Salaï, jovem de cabelos longos e reputação duvidosa. "Giacomo veio viver em minha casa no dia de Santa Maria Madalena do ano de 1490; ele tinha 10 anos de idade", revela. Desde então, Leonardo o cobre de presentes e roupas finas, desdenhando dos insistentes comentários sobre sua suposta preferência por efebos. "A boca mata mais homens do que a espada", diz. Os boatos sobre sua indiferença ao sexo feminino – que se refletiria no ar remoto e idealizado de suas retratadas – remontam a 1476 em Florença, quando por duas vezes foi acusado da prática de sodomia, aos 24 anos de idade. As denúncias, apresentadas aos Oficiais da Noite e dos Mosteiros, davam conta de que ele e mais três jovens florentinos mantiveram relações sexuais com o notório prostituto Jacopo Saltarelli. Por falta de provas, o processo foi suspenso. A constante presença de Salaï ao lado de Leonardo e o envolvimento do rapaz em pequenos furtos reavivaram o falatório, desde que os dois voltaram a viver em Florença, no início do ano passado.
Criador da magnífica Última Ceia, afresco que adorna o refeitório do convento de Santa Maria das Graças, em Milão, Leonardo é um pintor tão exímio porque, em parte, ele é muito mais que um pintor. Seus quadros refletem seus conhecimentos descomunais em vários campos. Da mecânica à óptica, não há ciência que escape à sua atenção. Da música à arquitetura, não há ramo de criação humana que lhe seja estranho. Passa do teatro à arte da guerra com a mesma habilidade demonstrada em pinturas que dão calor e vida à técnica da perspectiva, desenvolvida pelo arquiteto toscano Filippo Brunelleschi (veja quadro). Nesse sentido, a Última Ceia é o melhor exemplo dessa técnica, embora haja outros como a inacabada Adoração dos Magos ou oRetrato de Ginevra Benci. Na Ceia, dentro de um universo de rigorosa geometria, Leonardo esculpiu um arrebatador jogo de expressões e movimentos entre Cristo e seus apóstolos.
"O bom pintor tem essencialmente duas coisas a representar: um personagem e seu estado de ânimo. A primeira é fácil, a segunda é difícil, pois é preciso chegar aí por meio de gestos e de movimentos dos membros, e isso pode ser aprendido com os mudos, que os fazem melhor que os outros homens", afirma o artista. Em sua obsessão de aprender com a observação da natureza, disseca corpos de homens, mulheres e crianças recém-falecidos, em pesquisas de anatomia lamentavelmente ignoradas pelos doutores da medicina. No momento, planeja acompanhar todos os estágios do desenvolvimento da criança no ventre da mãe. Seus estudos sobre as proporções humanas são detalhadíssimos, e deles saiu uma frase que já começa a ficar famosa: "O homem é o modelo do mundo". Com tal variedade de interesses, Leonardo muitas vezes não termina projetos ou se demora demais, o que lhe valeu a fama de caprichoso e instável. Há hoje uma tendência a encarar o artista num grau superior ao do artesão. O artista de talento também já está deixando de ser aquele elemento servil que trabalha apenas para realizar os caprichos de príncipes e papas. Leonardo é um desses artistas orgulhosos. Quando o prior do convento de Santa Maria das Graças reclamou da demora na execução da Ceia ao poderoso Ludovico Sforza, o Mouro (o senhor de Milão que encomendara o serviço), Leonardo explicou o atraso. Era em suas longas reflexões que "os grandes espíritos se ativam mais", em busca de idéias e soluções – no caso, sobre as figuras de Cristo e de Judas. Se o religioso, no entanto, insistisse muito, ameaçou, ele poderia dar a seu Judas os traços do "inoportuno e indiscreto prior".
Na juventude, durante a década de 1470, Leonardo foi aprendiz no ateliê de mestre Andrea del Verrochio, onde pintou o seu primeiro quadro, a Anunciação. Apesar do erro de perspectiva – a mão da Virgem está num plano diferente do suporte sobre o qual se apóia –, a jovem Nossa Senhora tem uma notável força interior que se repete nos famosos retratos de mulheres executados depois pelo artista. Embora as máquinas de guerra propostas por Leonardo continuem no papel, os projetos militares têm impulsionado sua carreira. Quando ainda era um artista sem amplo reconhecimento em Florença, ganhou a confiança de Ludovico, o Mouro, de Milão, com propostas de pontes portáteis, catapultas, canhões e navios blindados. Seu primeiro encargo oficial em Milão, no entanto, foi de uma pintura religiosa, a Virgem dos Rochedos. A obra inova pelo jogo de claro e escuro (Leonardo consegue pôr luz na obscuridade da paisagem e sombra na claridade do rosto), emoldurando a cena que une mãe, filho e o anjo que esboça um enigmático sorriso – outra marca registrada do pintor. A pintura a óleo, desenvolvida em Flandres, ainda era técnica nova na Itália, e a sutileza com que Leonardo a emprega sedimentou sua fama na corte milanesa. Foi aprimorando essa técnica que ele deu um efeito especial a seu segundo encargo, a magnífica Dama com Arminho – o toque da mão do pintor na tinta ainda fresca suaviza a mudança de tonalidade do rosto. A Dama no caso retrata ninguém menos que Cecilia Gallerani, amante do Mouro.
Daí em diante, o artista teve as portas abertas para exercitar as múltiplas facetas de seu gênio. Como arquiteto, trabalhou no projeto de uma torre-clarabóia para a Catedral de Milão. Datam desse período seus primeiros cadernos de anotações, chamados de códices, escritos com a mão esquerda e de maneira que só podem ser lidos quando refletidos num espelho. Nessa época, Leonardo convenceu finalmente o senhor de Milão a realizar um projeto que acalentava havia seis anos: elevar em praça pública uma gigantesca estátua eqüestre de Francisco Sforza, o pai do Mouro. A ambição de Leonardo era realizar uma escultura que tivesse "a andadura natural de um cavalo em liberdade". O gigantesco modelo do animal, com 7 metros de altura, fascinou a cidade. Logo Leonardo seria aclamado como o maior escultor da Itália. O artista se concentrou então no monumental trabalho de fundição da obra – 72 toneladas de bronze, numa única peça –, que o obrigou a criar procedimentos industriais totalmente novos. Quando finalmente se preparava para iniciar o trabalho, o exército francês marchou sobre a península italiana. Ludovico Sforza preferiu então suspender a finalização da estátua, aproveitando o bronze para a construção de canhões e outras armas. Até hoje, Leonardo amarga a frustração de ver seu maior trabalho cancelado por circunstâncias políticas. "Nada mais direi sobre o cavalo, porque conheço nossos tempos", costuma afirmar. Entre seus recentes projetos militares consta um intrigante ataque submarino aos navios turcos, que atualmente ameaçam Veneza, no qual homens andariam sob as águas carregando odres cheios de ar, protegidos por óculos impermeáveis. A proposta, compreensivelmente, até agora não foi aprovada. O mesmo ocorre com os navios e veículos que se deslocam sozinhos, além do engenho voador com asas móveis, batizado de ornitottero – todos sugeridos a ele a partir da leitura da Epistola de Secretis Operibus, do franciscano inglês Roger Bacon (1220-1292).
Leonardo é o maior mestre no emprego da técnica da perspectiva, através da qual consegue criar a ilusão de profundidade em suas pinturas. Na Última Ceia e mesmo em obras mais antigas, como a inacabada Adoração dos Magos, de 1481, temos a sensação de olhar não para uma superfície plana como a tela, mas através de uma janela que se abre para o interior do quadro. Um esboço preparatório que Leonardo elaborou para a Adoração dos Magos revela, passo a passo, o método que o artista emprega para criar essa ilusão. Ele começa desenhando uma espécie de tabuleiro de xadrez, levemente inclinado, que será utilizado para representar o chão da obra. Depois, vai dispondo todos os elementos nesse tabuleiro, que serve de guia para determinar a posição e a altura de cada parte da composição. Assim, os objetos mais próximos do observador do quadro aparecem proporcionalmente maiores do que aqueles mais afastados, garantindo a perfeita sensação de profundidade.
A técnica tem duas regras básicas. A primeira: as linhas verticais do tabuleiro, apesar de paralelas, devem convergir todas para um único "ponto de fuga", situado no infinito. A segunda determina que uma mesma fonte de luz imaginária deve iluminar todos os objetos representados no quadro. Essa técnica, desenvolvida pelo arquiteto Filippo Brunelleschi (o criador da cúpula da catedral de Florença) na década de 1420, foi formalizada no tratado Da Pintura (1435), de Leon Alberti. Seu objetivo básico é desenhar da forma mais realística possível o tabuleiro de xadrez que serve de base para a construção do espaço em profundidade na pintura.
Fonte: http://veja.abril.com.br/historia/descobrimento/cultura-leonardo-da-vinci.shtml