Os historiadores reescrevem continuamente a história. E o fazem talvez por duas razões principais: [Em primeiro lugar,] [...] os homens e as sociedades humanas, por serem temporais, não permitem um conhecimento imediato, total, absoluto e definitivo. A história só se torna visível e apreensível com a sucessão temporal. A reescrita contínua da história torna-se, então, uma necessidade. [...] Em segundo lugar, a história é reescrita porque o conhecimento histórico muda, acompanhando as mudanças da história. Novas fontes, novas técnicas, novos conceitos e teorias, novos pontos de vista levam à reavaliação do passado e das suas interpretações estabelecidas. [...] O passado é, então, repensado e ressignificado de forma renovada e fecunda[1].
O processo de emancipação do Brasil é um tema recorrente da historiografia brasileira, sendo revisitado e debatido com grande frequência. De acordo com Emília Viotti da Costa, “a emancipação política do Brasil é um dos assuntos mais estudados pela historiografia brasileira e, no entanto, um dos menos conhecidos” (VIOTTI DA COSTA, p. 64), por se tratar de um período em que os positivistas se limitavam em realizar análises “do documento pelo documento”, relatando episódios e personagens políticos que exaltavam a imagem da Corte e do Estado onipresentes e onipotentes, pouco se atentando para os aspectos socioculturais daquela sociedade.
Viotti é uma historiadora que construiu suas interpretações sobre a “era” joanina principalmente na década de 1970, período em que os marxistas estavam revisando a historiografia positivista. O período imperial havia sido pouco explorado pelos historiadores marxistas e buscava-se então, principalmente nas obras de Caio Prado Júnior, um aporte teórico para o desenvolvimento de um estudo científico sobre aquele período. Por estar inserida neste contexto historiográfico, Viotti privilegia em seus estudos as superestruturas e as metanarrativas, que estavam em voga no período de sua escrita.
Mas segundo Keith Jenkins, “o final do século XIX e o século XX assistiram a um solapamento da razão e da ciência, fenômeno que tornou problemáticos todos aqueles discursos que se fundamentavam [nas metanarrativas] e tinha pretensão à verdade.” (p. 95). Sendo assim, é inevitável a reescrita da História, levando em consideração as novas diretrizes para o estudo desta: as novas perspectivas de análises a partir de novos métodos[2] e os novos campos da História[3], trazendo para a contemporaneidade realidades ainda silenciadas pela historiografia tradicional. “O passado é, por definição, um dado que nada modificará. Mas o conhecimento do passado é uma coisa em progresso, que incessantemente se transforma e se aperfeiçoa.” (BLOCH, p. 75).
Contudo, os estudos e as estórias do passado longínquo ou mesmo positivista não podem ser deixados de serem explorados. Muito pelo contrário: eles constituem parte importante da pesquisa histórica. Por isso propomos uma discussão abrangente sobre o Brasil Imperial. Segundo Marc Bloch,
todo conhecimento da humanidade, qualquer que seja, no tempo, seu ponto de aplicação, irá beber sempre nos testemunhos dos outros uma grande parte de sua substância. [O investigador do presente não é, quanto a isso, melhor aquinhoado do que o historiador do passado.] (BLOCH, p. 70).
II
É recorrente no imaginário popular que a emancipação política do Brasil está intimamente ligada com a crise do Antigo Regime e da influência iluminista no interior da Colônia. Isso porque a escola pradiana, tendo como aporte a historiografia marxista, de cunho economicista, é ainda a mais difundida nos livros escolares do ensino básico no Brasil. Sendo assim, os ditos movimentos emancipatórios, como a Inconfidência Mineira em 1789, a Conjuração Baiana em 1798, a Conspiração dos Suassunas em 1801 e a Revolução Pernambucana de 1817, são analisados como parte de um processo de luta contra o sistema colonial e conseqüente independência do território brasileiro e proclamação da República.
Tratando do movimento das Minas Gerais, alguns historiadores que seguem esta linha de raciocínio economicista, percebendo a história como uma metanarrativa, acreditam que ideais iluministas penetravam no imaginário daqueles rebeldes da Inconfidência, promovendo uma crítica ao Antigo Regime e a conseqüente luta contra a exploração da metrópole. É o caso de Divalte Garcia Figueira (2005) que, ao escrever um livro didático para alunos do Ensino Médio brasileiro, faz a seguinte análise:
Em 1789, veio à tona a primeira revolta de caráter separatista na colônia, a Inconfidência Mineira. Pouco depois, movimentos semelhantes manifestaram-se no Rio de Janeiro (Conjuração do Rio de Janeiro, em 1794), na Bahia (Conjuração Baiana, em 1798) e em Pernambuco (Conspiração dos Suassunas, em 1801).
[...] um grupo de intelectuais da elite local começou a se reunir em Vila Rica para planejar uma revolta contra o domínio português, movimento que ficaria conhecido como Inconfidência Mineira. Os participantes desses encontros, os conjurados ou inconfidentes, era fortemente influenciados pelos ideais iluministas e pelo modelo democrático estabelecido pela Constituição norte-americana depois da independência das treze colônias. (FIGUEIRA, p. 223).
Boris Fausto (2009) também acredita que o movimento das Minas Gerais do final do século XVIII fez parte de um processo separatista, movido, principalmente, pela elite de Vila Rica que buscava a emancipação de Portugal e aspirava um projeto republicano, tal como fez as treze colônias norte-americanas. “Que pretendiam os inconfidentes? [...] Aparentemente, a intenção da maioria era a de proclamar uma República, tomando como modelo a Constituição dos Estados Unidos.” (FAUSTO, p. 65). O autor acredita que um dos principais motivos da revolta foi o excesso de carga tributária cobrada pela coroa das elites quando a sociedade mineira “entrar em uma fase de declínio, marcada pela queda contínua da produção de ouro.” (FAUSTO, p. 64).
Algumas pesquisas mais recentes demonstram que, na verdade, a crítica dos inconfidentes não girava em torno da idealização de uma República nem com aspirações contra o excesso de impostos. “[...] queriam participar, de uma forma ou de outra, efetivamente da condução política da capitania”. (ALMEIDA, p. 6). Não é nossa pretensão aprofundar nessas discussões, mas apenas proporcionar olhares distintos de um mesmo momento histórico. Longe de encerrarmos as discussões sobre esse assunto, seguimos a linha de raciocínio de João Pinto Furtado, fazendo uma analogia do movimento com o Manto de Penélope: será sempre tecido, desconstruído e reconstruído com novas formas, novas evidências e novas roupagens.
Quanto à natureza do levante em relação ao grau de ruptura ou radicalismo que se pretendia, ou seja, se era um movimento ‘reformista’, ‘revolucionário’ ou, ainda, mais um episódio de conflito e negociação entre a Coroa e seus súditos de além-mar, é um tema que precisa ser melhor investigado pela historiografia. (FURTADO, p. 18-9b).
Retomando nossa proposta de investigar a historiografia, é interessante perceber que essa análise economicista, tendo como alguns de seus precursores o próprio Caio Prado Júnior e também Nelson Werneck Sodré, percebe, a partir das contradições internas, da dialética, uma nova realidade. “É preciso observar as contradições internas que explicam a marcha do processo.” (VIOTTI DA COSTA, p. 67).
Emília Viotti analisa, então, que o pacto colonial entre Metrópole e Colônia, onde prevalecia o exclusivismo comercial desta última com a primeira, entrou em crise quando “o capital industrial se tornou preponderante e o Estado Absolutista foi posto em xeque pelas novas aspirações da burguesia, ansiosa por controlar o poder através de formas representativas de governo.” (VIOTTI DA COSTA, p. 68). Segundo ela, a emancipação do Brasil se deu antes mesmo de sua oficialização, a partir da chegada da corte portuguesa aos trópicos em 1808, acreditando numa história processual. Boris Fausto, concordando com a posição de Viotti, acredita que apesar desse processo separatista, raízes do período colonial ainda permaneceriam após a Independência.
A Independência do Brasil não viria pela via de um corte revolucionário com a Metrópole, mas por um processo de que resultaram algumas mudanças e muitas continuidades com relação ao período colonial. A história desse processo passa pela transferência da família real portuguesa para o Brasil e pela abertura dos portos brasileiros ao comércio exterior, pondo fim ao sistema colonial. (FAUSTO, p. 66).
Com a transferência da Corte para o Brasil, a primeira medida adotada por Dom João VI, como colocado anteriormente por Fausto, foi a abertura dos portos brasileiros e a conseqüente ligação do comércio da colônia as “nações amigas”, principalmente a Inglaterra, parceira de Portugal, que detinha certos privilégios neste mercado, como a própria isenção de alguns impostos[4]. Isso facilitou a entrada de livros, jornais e informes com ideais revolucionários e iluministas. (VIOTTI DA COSTA, 1973). Logo a seguir, D. João VI tomou diversas medidas de cunho liberal[5] sendo a principal delas a elevação do Estado do Brasil à Reino Unido (1815). Ela acredita que tais medidas podem ser consideradas liberais pelo motivo de terem contribuído para liquidar o sistema colonial, mesmo não sendo essa sua intenção.
As contradições da política de D. João VI criariam um clima favorável ao desenvolvimento, tanto na metrópole quanto na colônia, de idéias liberais, fazendo crescer o número dos que lutavam pela implantação de formas representativas de governo. (VIOTTI DA COSTA, p. 83).
Criou-se então, de acordo com essa historiografia, um sentimento de autonomia nessa sociedade, fazendo com que a Colônia não mais dependesse, exclusivamente, da Metrópole. Os ideais iluministas e o exemplo das colônias norte-americanas voltaram a se tornar presentes no pensamento dos separatistas, que clamavam por uma revolução. No entanto, ao observar textos de 1822, Viotti percebe que “a palavra independência nem sempre esteve associada à idéia de separação completa da metrópole. Referiu-se freqüentemente apenas à independência administrativa.” (VIOTTI DA COSTA, p. 101).
Após o retorno de D. João VI à Portugal devido a crise do Porto, o medo de recolonização era iminente. Medidas diversas foram tomadas no Brasil até que o filho de D. João, Pedro de Alcântara, foi nomeado príncipe e lutaria a favor da Independência da colônia, sendo famoso seu discurso que, ao negar a ordem de retorno à Portugal, declarou o seguinte em 9 de janeiro de 1822: “se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico.” A partir deste momento, o príncipe começou então a tomar medidas contra as decisões da Corte Portuguesa, sendo que em maio de 1822 ordenou que não fosse executada nenhum decreto vindo de Portugal sem seu aval.
As medidas fortaleciam os laços entre o príncipe e a elite local, já que, de certa forma, muitas delas beneficiavam esta “aristocracia”, como demonstra Emília Viotti:
Uma decisão de 19 de julho de 1822 concederia o direito de voto a todo cidadão casado ou solteiro acima de 20 anos que não fosse filho família, excluindo todos os que viviam de salários ou soldados por qualquer modo, a exceção dos caixeiros de casas comerciais, os criados da Casa Real que não fossem de galão branco e os administradores das fazendas rurais e fábricas. Ficavam igualmente impedidos de votar os religiosos, os estrangeiros não naturalizados e os criminosos.
Com esses dispositivos, retirava-se ao povo o direito de voar e escolher seus representantes, reservando-se a uma minoria o controle e acesso ao poder. (VIOTTI DA COSTA, p. 115).
Algo que anteriormente parecia impossível – a separação definitiva e completa de Portugal – começa a ganhar força com a união entre o príncipe Pedro de Alcântara e os grandes senhores de terra e de escravo do Brasil. Os antagonismos e os interessantes entre portugueses e brasileiros aumentavam e divergiam cada vez mais. Restava a D. Pedro apenas duas alternativas: voltar degradado à Portugal ou continuar no Brasil e declarar a independência, sendo a última alternativa escolhida por ele e realizada no dia 7 de setembro de 1822. A partir desta declaração, restava construir a nova ordem brasileira. Segundo Viotti, os conservadores venceriam essa disputa e os republicanos e radicais em geral foram alguns presos e outros expulsos do país. A vitória do Apostolado – segundo Frei Caneca (apud VIOTTI DA COSTA, p. 118) um “clube de aristocratas servis” – faria com que as elites continuassem sendo beneficiadas.
Eram na maioria fazendeiros, altos funcionários ou comerciantes respeitáveis. Ligados entre si por laços de família, brasileiros, filhos de portugueses uns, nascidos em Portugal outros, a maioria tendo realizado seus estudos na metrópole, no Colégio dos Nobres ou em Coimbra. Construíram uma verdadeira oligarquia depois da Independência, integrando os ministérios, o Conselho de Estado, a Câmara dos Deputados e o Senado, assumindo a presidência das províncias. Dirigiram o país até meados do século. (VIOTTI DA COSTA, p. 118-9).
Por isso retornamos a idéia proposta anteriormente por Boris Fausto de que mesmo após a Independência, haveria ainda raízes do período colonial no período que se sucede. Veremos mais adiante, a partir de uma análise revisitada, que tais medidas, ao invés de proporcionar rupturas, promoveram continuidades, como dito por Fausto. Jurandir Malerba analisa, a partir de um viés cultural e sócio-político, que a aliança gerada entre a Corte e os traficantes de escravos desde 1808 fez gerar a nova elite brasileira.
Pode-se questionar a idéia de uma “independência forjada”, pois, segundo Clemente Pereira (apud VIOTTI DA COSTA, p. 102), Brasil e Portugal seriam famílias irmãs, de um só povo, uma só nação e um só império, permanecendo os laços de “camaradagem” entre ambas as nações.
III
Até agora nos limitamos ao estudo marxista do período entre 1808 a 1822. Como vimos, a historiografia economicista se limitou à análise das macroestruturas, à história generalizante, sem, no entanto, perceber as relações sócio-culturais que ali foram estabelecidas. Nesta parte do trabalho, traremos à tona uma visão diferente da tradicional: um olhar a partir da metodologia da micro-história, da História das mentalidades e da História cultural, por vezes negligenciada por essa corrente historiográfica.
O que levou Dom João VI a se retirar de Portugal? Segundo Jurandir Malerba,
não se chegou afinal a um entendimento quanto ao ato da retirada do dom João, polêmica que se instaurou no calor da hora; os que desde então procuram detratar a figura do príncipe julgam-no uma fuga covarde; outros, como os áulicos que narravam aqueles momentos a quente, procuram elevar a figura real, concebendo a fuga como uma decisão acertada; há ainda aqueles que voltam os olhos a séculos atrás e pensam na vinda para o Brasil como um “alvitre amadurecido”, que alimentaram outros estadistas lusos. (MALERBA, p. 198).
Decerto, o contexto era favorável para que houvesse uma parceria entre Inglaterra e Portugal. Com o bloqueio continental imposto por Napoleão à Inglaterra, a única saída que restava a este país era manter uma relação estreita com o já antigo aliado Portugal. O discurso utilizado pelos ingleses era o de proteger a família real portuguesa e escoltá-la até o Brasil para esta fugir das ameaças de Napoleão ao território ibérico. Porém, podemos perceber que esta ideologia tinha um propósito: como a Inglaterra estava impedida de manter um comércio com o continente europeu, a saída encontrada por eles foi justamente a de manter a parceria com Portugal para garantir um comércio com a(s) colônia(s) portuguesa(s). E isso, de certa forma, funcionou, sendo que até alguns “benefícios” foram cedidos pela política de D. João VI aos ingleses, como já visto em outrora. Para Boris Fausto, “a Inglaterra foi a principal beneficiária da medida.” (FAUSTO, p. 67).
Alguns consideram como uma atitude acertada, outros como fuga de um covarde. Não é nossa preocupação tomar partido diante de tal atitude. “O que importa do ato são seus desdobramentos.” (MALERBA, p. 202). Malerba e Fausto descrevem que, juntamente com a Corte, vieram para o Brasil desde peças preciosas a objetos mais grotescos e inúteis, juntamente com valetes e soldados. (MALERBA, 2000).
[...] abriram-se teatros, bibliotecas, academias literárias e científicas para atender aos requisitos da Corte e de uma população urbana em rápida expansão. Basta dizer que, durante o período de permanência de Dom João VI no Brasil, o número de habitantes da capital dobrou, passando de cerca de 50 mil a 100 mil pessoas. (FAUSTO, p. 69).
Ao chegar ao Rio de Janeiro, D. João VI procurou aproximar as relações com a elite local. A tradição de distribuição de honrarias em Portugal fora transferida para o Brasil e foi utilizada como meio para uma troca de interesses. Constituíam um capital simbólico de grande valor “numa sociedade em que o lugar dos indivíduos era estabelecido por critérios de honra e prestígio.” (MALERBA, p. 214). Na verdade, muitas vezes o rei não adotou critérios específicos para a distribuição das honras: “muitos, que se desfizeram de propriedades e criados a fim de se apresentar entre a corte, magoaram-se ao ver inferiores favorecidos, acabando por se retirar da cidade.” (MALERBA, p. 203). O certo é que muitos receberam titulações e formaram uma nova classe honorária brasileira. É notável como D. João VI utilizou demasiadamente dessa política, “fundamental para retribuir a fidelidade de seus vassalos.” (MALERBA, p. 212).
Dom João utilizou-se à farta desse único dispositivo de que dispunha o poder real de conceder horas e privilégios por meio das graças e mercês as mais variadas para recompensar aqueles que o assistiram no momento do perigo: uns pelo simples acompanhá-lo, outros pelos socorros materiais com que o serviram, por assim dizer, em ato de vontade decretada. (MALERBA, p. 203).
A partir desse modo de gratificação de D. João VI, podemos perceber como Jurandir Malerba relaciona a união entre o “cetro” (a realeza) e a “bolsa” (a elite local) para mostrar como foi constituída a nova nobreza brasileira.
Segundo Rodrigo de Aguiar Amaral, “as principais riquezas movimentadas na sociedade brasileira dependiam das relações escravistas.” (AMARAL, p. 60). Dessa forma, os traficantes de escravos – os “homens de grossa aventura”, como dito por João Luis Fragoso – em 1790 já constituíam a principal elite econômica brasileira. “Financiavam até mesmo a elite rural, por meio de empréstimos para a compra de escravos e a manutenção dos caros engenhos.” (AMARAL, p. 62). Detinham muitas terras e, no Rio de Janeiro, boa parte do comércio e das casas pertencia a eles. Esses homens de grosso trato foram os principais aliados da corte na cidade. Tanto que, Elias Antônio, traficante de escravos, ofereceu o Palácio de Boa Vista (atual sede do Museu Nacional), sua propriedade, a D. João em 1808 para ser sede da Casa Real. (AMARAL, 2008). A partir da “cessão”, o senhor de escravos viveu sete anos ao lado do rei, sendo que em 1815 faleceu, mas pôde durante este tempo viver e freqüentar a vida palaciana e receber o título de Fidalgo Cavaleiro da Casa Real e também o título de Conselho de Sua Majestade.
Podemos considerar esse “jogo” como uma troca de interesses. A Corte necessitava de aliados, de investidores, de indivíduos detentores da “bolsa”. O traficante, por seu prestígio como senhor de escravos, almejava ser reconhecido como membro da nobreza, ser possuidor do “cetro”. A união entre ambos fez nascer a elite brasileira, integrando títulos nobiliárquicos aos poderes econômicos. Podemos até mesmo notar como esses valores estão ainda presentes na nossa sociedade, que ainda é valorizada por títulos e por riquezas.
Esse exemplo de Elias Antônio serve para percebermos como o “cetro” e a “bolsa” demonstram grande ligação, sendo que mesmo após a abolição da escravidão os senhores permaneciam com seus títulos de nobreza e constituíram parte da nova elite do Brasil.
Quanto ao número de honrarias cedidas por Dom João, não pesquisamos as estatísticas. Sabemos, no entanto, que o monarca se utilizou fartamente dessa prática para gratificar indivíduos pelos serviços prestados à Coroa. (MALERBA, 2000). Fazendo uma relação com a obra literária “O Sítio do pica-pau amarelo” de Monteiro Lobato, podemos perceber o quão fora utilizada a distribuição de mercês e honrarias à população. Talvez uma sátira, a obra retrata de maneira genial que personagens das mais ínfimas categorias, como o porquinho “Marquês de Rabicó” e o sabugo de milho “Visconde de Sabugosa”, possuíam títulos de nobreza, provavelmente demonstrando que não havia um critério específico para a distribuição das gratificações honoríficas e que qualquer pessoa poderia receber um título de nobre. Segundo Malerba, Dom João “usou com maestria sua posição de pedra angular no equilíbrio das tensões entre os diferentes estratos que o assediavam, dando força aos decaídos para deter os poderosos.” (MALERBA, p. 205).
IV
O conto de Hans Christian Andersen “A roupa nova do rei” traz uma questão central na nossa discussão sobre o período imperial. Minuciosamente trabalhado por Lilia Schwarcz, trata de uma historieta que pode ser analisada no âmbito do imaginário político.
Faremos um breve resumo do conto: num lugar distante, um imperador, conhecido por seu orgulho e sua elegância, foi recebido por dois alfaiates de renome, que já haviam vestido grandes reis e, dessa vez, foram fazer as vestes deste imperador. A roupa deveria ser muito especial, pois se tratava do mais especial dos reis. Deveria ser coberta de materiais preciosos e tecidos finos. Começaram então a chegar os materiais para a confecção da vestimenta. Os trabalhos evoluíam bem e o rei, ansioso para ver a roupa, foi prová-la pela primeira vez. Sentiu-se constrangido por nada ver além de seus trajes de baixo. Todos o aclamaram, sem perceber nada de errado. Quando chegou o dia de seu cortejo, os alfaiates já tinham sido pagos e ido embora. Todos aguardavam para ver a roupa nova do rei. Quando o cortejo iniciou-se, ninguém falava do que via ou do que não via, apenas elogiaram-no. No entanto, um menino que não sabia das histórias que cercavam a roupa do rei, “ao olhar cena tão bizarra, exclamou em alto e bom som: ‘ o rei está nu!’.” (SCHWARCZ, p. 34). Todos começaram então a gritar e a gargalhar diante da nudez do rei.
Diante desta sinopse da narrativa de Andersen, temos uma problemática: o que faz com que a sociedade perceba que o rei está vestido? Trata-se do imaginário político que é construído em torno da figura real. “O que importa é ver o que o monarca vê.” (SCHWARCZ, p. 35). Segundo Schwarcz,
todo regime político estabelece em sua base um imaginário social constituído por utopias e ideologias, mas também por mitos, símbolos e alegorias, elementos poderosos na conformação do poder político, especialmente quando adquirem aceitação popular. (SCHWARCZ, p. 26).
Sendo assim, a monarquia é um tipo de governo que utiliza demasiadamente da simbologia e da representação como meio de poder. “A aclamação de dom João em terras brasileiras foi momento propício para o reforço de algumas vigas mestras da arquitetura do poder real, tarefa levada a cabo pelos principais oradores da corte.” (MALERBA, p. 208). E este poder reflete na conduta do indivíduo, que interioriza o ritual e faz dele as próprias leis.
Este discurso foi utilizado de forma constante nas monarquias, sendo que a partir dele reafirmava os poderes monárquicos e fazia penetrar na sociedade um sentimento paterno em torno da figura do rei. “A imagem do rei como ‘pai’ conformava-se no imaginário, no conjunto social de imagens criadas para representar a soberania monárquica.” (MALERBA, p. 206).
Durante toda sua residência tropical renovou-se a imagem paternal do rei, não apenas nos libelos laudatórios que ganhavam os auspícios da imprensa régia. Na Relação dos festejos… (1818) pela aclamação de dom João VI, Bernardo Avelino de Sousa conta que em muitos pontos da cidade dispuseram-se iluminações e máquinas que utilizavam a mesma imagem como legenda. Via-se, por exemplo, nas janelas de um primeiro andas na rua da Quitanda, número 64, o busto bem iluminado de Sua Majestade, ao que sobressaia um gênio com uma coroa real e outra de flores, e embaixo o emblema da História da ação de escrever os seguintes versos: “Glória da Pátria, do Universo assombro, Virtudes Paternaes Lhe forão dote.” (MALERBA, p. 206).
A própria cerimônia do beija-mão fortalecia essa relação paternal e, de certa forma, caracterizava o rei como uma figura sagrada, capaz de curar a partir do toque, como disse Mac Bloch em “Os Reis Taumaturgos”.
Para Lilia Schwarcz, portanto, fazendo uma relação entre o conto de Andersen e o regime monárquico, “é o consenso em torno de seu poder ritual que ‘veste os nus’.” (SCHWARCZ, p. 35).
A Monarquia, Senhores, he o mais antigo, o mais sábio, o mais util, e o mais consequente governo; porque nella vê-se a lei, suffragando sempre ao subdito, por isso que o Soberano he o Pai, o Protector do seu Povo. Nella a subordinacão he mais suave, o rigor mais temperado, a justiça mais dirigida, o vicio mais reprimido, e a virtude mais premiada; nella o cidadão he menos servil, porque o despotismo he menos tolerado. (BNRJ, p. 17 apud MALERBA, p. 210).
V
Essa discussão não pode ser cessada sem mencionarmos a obra de Norbert Elias, “O Processo Civilizador”. A domesticação das paixões, conceito utilizado por este autor, e a interiorização da metrópole podem ser percebidas no desenrolar desse período aqui destacado, caracterizando assim um processo civilizatório. Houve então um sentido para a colonização? De acordo com a nova historiografia, parece mais adequado perceber, a partir de novas metodologias da História, a transculturação e a adequação dos costumes da Corte pela sociedade do que um sentido único e específico para a colonização, colocado por Caio Prado Júnior em A Formação do Brasil Contemporâneo.
O regime monárquico proporcionou novos padrões a serem seguidos pela sociedade brasileira. Como dito pela própria Lilia Schwarcz, o importante era ver como o monarca via, sendo que assim a Corte proporcionou um novo padrão de vida, civilizatório, ocidental e racional para aquela sociedade. O rei continuava nu, mas a sociedade o via vestido, com a mais bela das vestes, clamando pelo monarca e seguindo os padrões adotados por ele. O seu toque curava não por ele ser um ser um “filho de Deus” ou “Seu representante”, mas por aquela sociedade acreditar que o toque do rei curava.
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[1] REIS, José Carlos. Identidades do Brasil: de Varnhagen a FHC. 8ª Ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006.
[2] Principalmente a aproximação da História com as Ciências Sociais
[3] Assim como a Micro-História, a História das Mentalidades e a História Cultural.
[4] “O Tratado de 1810 fixou em 15% do valor a tarifa a ser paga pelas mercadorias inglesas exportadas para o Brasil. Com isso, os produtos ingleses ficaram em vantagem até com relação aos portugueses. Mesmo quando logo depois as duas tarifas foram igualadas, a vantagem continuou sendo imensa.” (FAUSTO, p. 68).
[5] O livre estabelecimento de fábricas e manufaturas em 1808 e a autorização aos vassalos a venderem, pelas ruas e casas, qualquer mercadoria que tivesse pago os competentes direitos em 1810 e o oferecimento de subsídios para indústrias de lã, de seda e de ferro são exemplos de medidas adotadas por D. João VI que, segundo Emília Viotti, expressava “os princípios de liberdade e de livre concorrência e a intenção de abolir os monopólios e privilégios que inspiravam a nova política da Coroa.” (VIOTTI DA COSTA, p. 76).
Fonte: http://www.sobrehistoria.org/periodo-joanino-historiografia/