16.12.13
Rômulo
A Fundação Mítica de Roma
A fundação de Roma está rodeada de lendas. Os historiadores contam que Rômulo e o seu irmão, Remo, abandonados nas margens do Tibre pouco depois de nascerem, foram milagrosamente amamentados por uma loba saída dos bosques. Ela fora, evidentemente, enviada pelo deus Marte, que era o pai dos Gêmeos, e os Romanos, até ao final da sua história, gostarão de se chamar "os filhos da Loba". Recolhidos por um pastor, o bom Fáustulo - cujo nome é por si só um augúrio favorável, já que deriva defavere -, Rômulo e Remo foram criados por sua mulher, Acca Larentia. Por detrás dos nomes de Fáustulo e da mulher escondem-se nomes de divindades; o primeiro assemelha-se muito a Fauno, o deus pastoril que habitava os bosques do Lácio, o segundo recorda o dos deuses lares, protetores dos lares romanos, e em Roma existia mesmo um culto a uma tal Mãe dos Lares que bem poderia ter sido, afinal, a excelente ama dos Gêmeos - a não ser que, como é mais provável, a lenda tenha utilizado nomes divinos para conferir uma identidade aos seus heróis.
A cabana de Fáustulo, segundo a tradição, erguia-se no Palatino e, no tempo de Cícero, os Romanos apontavam-na orgulhosamente, ainda de pé com o seu telhado de colmo e as suas paredes de adobe. Pode pensar-se que a lenda de Fáustulo se incrustou nesta cabana, último vestígio da mais antiga aldeia de pastores que se fixaram na colina e conservada como testemunho sagrado da inocência e da pureza primitivas. A cabana do Palatino não era, de resto, a única que subsistia da Roma arcaica. Havia outra no Capitólio, em frente do templo "maior" da Cidade, o de Júpiter Muito Bom e Muito Grande, e como as lendas não tem quaisquer preocupações de coerência, garantia-se que esta cabana capitolina também abrigara Rômulo ou o seu colega na realeza, o sabino Tito Tácio. Não foi só desta vez que se multiplicaram as relíquias sagradas. No entanto, neste caso, as recordações lendárias são plenamente confirmadas pela arqueologia. Os restos de aldeias postos a descoberto no Palatino e necrópole do Fórum remontam, como demonstram os caracteres da cerâmica encontrada no local, a meados do século VIII a.e.c. e esta data corresponde à primeira ocupação do solo romano.
É sabido que, depois de adultos, os Gêmeos se fizeram reconhecer pelo avô, cujo reinado restabeleceram, e partiram para fundar uma cidade no local que tão favorável lhes fora. Para consultar os deuses, Rômulo escolheu o Palatino, berço da sua infância. Remo, porém, instalou-se do outro lado do vale do Grande Circo, no Aventino. Os deuses favoreceram Rômulo enviando-lhe o presságio extraordinário de um vôo de doze abutres. Remo, por seu lado, viu apenas seis. Coube, portanto, a Rômulo a glória de fundar a Cidade, o que fez de imediato, traçando, a roda do Palatino, um sulco com uma charrua; a terra revolvida simbolizava a muralha, o próprio sulco o fosso e, no local das portas, a charrua erguida simulava uma passagem.
É certo que os Romanos não acreditavam nesta história, mas aceitavam-na; sabiam que a sua cidade não era apenas um conjunto de casas e templos, mas um espaço de solo consagrado (o que as palavras pomerium etemplum exprimem, em diversos casos), um local dotado de privilégios religiosos, onde o poder divino se encontra particularmente presente e sensível. A continuação da lenda afirmava, de forma dramática, a consagração da Cidade: Remo, trocista, escarneceu da "muralha" de terra e do seu ridículo fosso; transpô-los de um salto, mas Rômulo lançou-se sobre ele e imolou-o, dizendo: (Assim morrerá quem, de futuro, transpuser as minhas muralhas). Gesto ambíguo, criminoso, abominável, já que se tratava do assassínio de um irmão e atribuía ao primeiro rei a mancha de um parricídio, mas gesto necessário, pois determinava de forma mística o futuro e assegurava, talvez para sempre, a inviolabilidade da Cidade. Deste sacrifício sangrento, o primeiro oferecido a divindade de Roma, o povo guardará para sempre uma recordação assustadora. Mais de setecentos anos depois da Fundação, Horácio ainda o considerará uma espécie de pecado original cujas conseqüências provocariam, inevitavelmente, a perda da cidade ao levarem os seus filhos a massacrarem-se uns aos outros.
Em todos os momentos críticos da sua história, Roma interrogar-se-á angustiadamente, julgando sentir pesar sobre si uma maldição. Tal como, ao nascer, não estivera em paz com os homens, também não o estava com os deuses. Esta ansiedade religiosa pesará sobre o seu destino. É fácil - demasiado fácil - opô-la a boa consciência aparente das cidades gregas. E, no entanto, Atenas também conhecera crimes: na origem do poder de Teseu estava o suicídio de Egeu. A própria história mítica da Grécia está tão repleta de crimes como a lenda romana, mas os Gregos devem ter considerado que o funcionamento normal das instituições religiosas bastava para apagar as maiores manchas. Orestes foi absolvido pelo Areópago, sob a presidência dos deuses. E, além disso, a mácula que Edipo inflige a Tebas é limpa pelo banimento do criminoso; o sangue que, mais tarde, correrá como expiação, será apenas o dos Labdácidas. Roma, pelo contrário, sente-se desesperadamente solidária com o sangue de Remo. Parece não ter sido capaz do otimismo grego; Roma treme, tal como mais tarde Enéias, no qual Virgilio quererá simbolizar a alma da sua pátria, tremerá perante a. expectativa de um presságio divino.
A lenda dos primeiros tempos de Roma está, assim, repleta de "sinais" que os historiadores atuais tentam decifrar. Seja qual for a origem das diferentes lendas (o rapto das Sabinas, o crime de Tarquínio, a luta dos Horácios e dos Curiácios e muitas outras), quer se trate de recordações de fatos reais, de velhos rituais interpretados ou de vestígios ainda mais antigos, provenientes de teogonias esquecidas, estes relatos refletem outras tantas convicções profundas, atitudes determinantes para o pensamento romano. É por isso que todo aquele que tente descobrir o segredo da romanidade os deve ter em conta, já que representam outros tantos estados de consciência sempre presentes na alma coletiva de Roma.
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O Governo de Rômulo
A lenda continua a contar como Rômulo atraiu para a Cidade os jovens pastores da vizinhança e, mais tarde, todos os vagabundos, todos os proscritos, todos os sem-pátria do Lácio. Mas como era necessário assegurar o futuro da Cidade e, entre os emigrantes, não havia mulheres, resolveu organizar jogos magníficos em que participassem as famílias das cidades vizinhas. Segundo um sinal combinado, a meio do espetáculo, os Romanos lançaram-se sobre as jovens e, no meio do tumulto e da confusão, raptaram-nas e levaram-nas para suas casas. Estes acontecimentos estiveram na origem de uma primeira guerra, muito longa, que os raptores tiveram de travar contra os pais das jovens. Estas eram, na sua maior parte, Sabinas, originárias de aldeias situadas ao norte do Roma; não eram de raça latina. A segunda geração romana formará, portanto, uma população de sangue misto, como já o eram os Latinos.
Sabemos como tudo terminou. As Sabinas, bem tratadas pelos maridos, intervieram na contenda e estabeleceram a concórdia. Ao concordarem com o casamento, libertaram-no da violência e do perjúrio. E, mais uma vez, importa refletir sobre o significado que este episodio dramático assumia para os Romanos. Ele testemunha o lugar atribuído à mulher na cidade: se, aparentemente, a mulher é, segundo os juristas, uma eterna menor, se não pode, teoricamente, aspirar aos mesmos direitos que os homens, nem por isso deixa de ser depositária e garante do contrato em que assenta a cidade.
Foi ela que, no campo de batalha, lavrou o ato das promessas trocadas entre Romanos e Sabinos, e pretende a tradição que os primeiros se comprometeram a poupar as esposas todo o trabalho servil, deixando-lhes apenas o encargo de "fiar a Iã". A Romana sabe, portanto, desde a origem, que não é uma escrava mas uma companheira, uma aliada, protegida pela religião do juramento antes de o ser pelas leis: é a recompensa da piedade das Sabinas, ao evitarem que os sogros derramassem o sangue dos genros e que estes fizessem correr o que circulava nas veias dos seus próprios filhos.
Reconciliados com os companheiros de Rômulo, os Sabinos vieram instalar-se em grande número na Cidade, que cresceu consideravelmente. Simultaneamente, um rei sabino, Tito Tácio, foi convidado a partilhar a realeza com Rômulo. Mas os historiadores antigos, muito embaraçados com este colégio real, não lhe atribuem um papel muito ativo e apressam-se a ignorá-lo para de que do novo reine apenas Rômulo. Naturalmente, muito se tem especulado sobre o sentido deste episódio. A resposta mais provável é que se trata de uma projeção na lenda de um fato político mais recente, a divisão colegial das magistraturas. A organização do consulado, no tempo da República, encontrava ai um procedente precioso. Mas o conjunto da lenda sabina assenta, sem dúvida, numa recordação exata, o aparecimento de tribos sabinas em Roma a partir da segunda metade do século VIII a.e.c. e a sua união com os pastores latinos. Mais uma vez, a tradição tem um valor propriamente histórico. Com efeito, os arqueólogos julgam poder distinguir, em solo romano, a presença de correntes culturais diversas, algumas das quais vindas dos países do interior
Rômulo, depois de ter fundado a Cidade, assegurado a perenidade da sua população, organizado nas suas grandes linhas o funcionamento da cidade criando senadores - os patres, chefes de família - e uma assembléia do povo, e depois de ter levado a bom termo algumas guerras menores, desapareceu num dia de tempestade, perante todo o povo reunido no Campo do Marte, e a voz do povo proclamou que se tornara deus. Foi-lhe prestado culto sob o nome de Quirino, velha divindade que passava por sabino e que tinha um santuário na colina do Quirinal.
A figura do Rômulo, síntese completa de elementos muitos diversos, domina toda a história da Cidade: fundador "feliz", a sua filiação divina talvez conte menos que a incrível felicidade, sorte que marcará os seus primeiros anos e que fazia com que tudo prosperasse nas suas mãos. A literatura - a poesia épica e sobretudo o teatro - acrescentou à lenda elementos romanescos retirados do repertório das narrações míticas do mundo grego, mas sem conseguir dissimular certos traços romanos que continuam a ser fundamentais: Rômulo é um legislador, um guerreiro e um sacerdote. E tudo isto simultaneamente, sem grande coerência, o é inútil procurar nos atos que lhe são atribuídos a unidade de um caráter ou de um espírito, e que nos oferece é essencialmente a figura ideal daquele que se chamará mais tarde o imperador simultaneamente intérprete direto da vontade dos deuses, espécie de personagem-feitiço, possuidor em si mesmo de uma eficaz magia, combatente invencível, devido, precisamente, a essa graça de que está investido, o árbitro soberano da justiça que reina entre o povo. A única unidade de Rômulo é este carisma que se manterá ligado, ao longo de toda a história romana, primeiro aos reis e depois, pelo mero fato da sua renuntiatio (proclamação como eleitos do povo), aos magistrados da República, e, por fim, aos imperadores, que serão essencialmente magistrados vitalícios. A tentação de criar reis permanecerá sempre muito forte no seio do povo romano: a medida deste fato é-nos dada pelo modo que este título suscita. Teme-se que um magistrado ou um simples cidadão se aproprie do poder real porque se sente confusamente que este está sempre pronto para renascer. Rômulo, encarnação ideal de Roma - que lhe deu o nome -, está presente nas imaginações e, por várias vezes, pareceu prestes a reencarnar: em Camilo, no tempo da vitória sobre Veios, em Cipião, quando foi consumada a vitória sobre Cartago, em Sila, em César, e se por meio de uma hábil manobra parlamentar o jovem Otávio, vencedor de Antonio, evitou a perigosa honra de ser proclamado um "novo Rômulo".
Estamos muito mal informados sobre a maneira como se processou o crescimento de Roma, no seu início. A importância real da aldeia fundada no Palatino não parece ter respondido a preeminência que a lenda lhe atribui. Na verdade, a partir da segunda metade do século VIII, essa área parece ter sido ocupada por aldeias separadas: não só o Palatino, com os seus dois cumes, então distantes e hoje reunidos pelas construções da época imperial, mas também o Capitólio, o Quirinal, as encostas ocidentais do Esquilino eram habitados. O vale do Fórum, drenado muito cedo, constituía o centro da vida social e da vida religiosa. E ai - e não no Palatino - que se encontram os santuários mais antigos, os mais essenciais, em particular o de Vesta, lar comum onde se conservavam os Ponates do povo romano, misteriosos feitiços ligados à salvação da Cidade. Pouco distante deste santuário, um outro, chamado a Regia (isto é, a casa do rei), dá guarida a Marte e a deusa Ops, que é a abundância personificada. Ai se conservam outros feitiços, escudos sagrados, um dos quais passa por ter caído do céu, e que eram, também eles, garantias da salvação comum. Era centro estes dois locais de culto que passava a Via Sacra, caminho das procissões solenes que levavam periodicamente o rei, acompanhado pelo povo, até ao rochedo do Capitólio onde reinava Júpiter.
Referências Bibliográficas
BERNARD, La Conlonisalion grecque de l'Italie méridionale et de la Sicile dans l'Antiquité, l'histoire et la légende: 2 ed., Paris, 1957;
J. WHATMOUGH, The Foundations of Roman Italy: Londres, 1937;
R. BLOCH, Le Mystère étrusque: Paris, 1957;
R. BLOCH, Les Origines de Rome: Paris, 1965.