2.4.14

Direito versus democracia


Fim da ditadura não acabou com senso comum elitista e desigual. As práticas jurídicas autoritárias são exemplo disto

Marcelo Torelly




Desenho de Carlos LatuffNove dias após depor um presidente democraticamente eleito pelos brasileiros, o governo militar anunciou, em seu primeiro Ato Institucional, que “a revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte”. Em nome “do interesse e da vontade da Nação”, a ditadura colocava o Direito contra a democracia, instituindo uma nova legalidade fundada no senso comum autoritário de que o povo não é capaz de governar. Esta relação entre senso comum e legalidade é fundamental para compreendermos as raízes e as consequências do autoritarismo e suas possibilidades de superação.

“Somos iguais perante a lei e temos os mesmos direitos”. O Estado Constitucional de Direito possui duas características: traduz a vontade da maioria, mas também limita seu poder, garantindo a todos um conjunto de direitos fundamentais. Como produto do processo democrático e do exercício da política, o direito tem legitimidade. A legalidade democrática não é uma “imposição”, mas sim uma construção na qual cada um é coautor da lei que está obrigado a obedecer. Ela dialoga com um senso comum democrático no qual o cidadão se percebe como um entre iguais.

“Manda quem pode, obedece quem tem juízo”. A legalidade da ditadura foi imposta por uma minoria, por meio da força. Seu fundamento não são os acordos democráticos transformados em leis, mas sim a capacidade repressiva. Essa legalidade relaciona-se com um senso comum autoritário, articulado por setores sociais que se entendem diferenciados: “elites” que se consideram superiores. Não se veem como parte, mas à parte do povo, do “cidadão comum”.

A Doutrina Básica de 1979 da Escola Superior de Guerra é exemplo do senso comum autoritário: “A História brasileira dá (...) relevo ao papel das elites na formulação dos Objetivos Nacionais. (...) É claro que na atualidade as comunicações se vêm aperfeiçoando e a participação política do povo na vida nacional pode ser maior. Mesmo assim, não se restringe a responsabilidade, que cabe às elites, de auscultar e interpretar com fidelidade os interesses e as aspirações dos grupos sociais e de todo o povo brasileiro”. Apresentando-se como representante das “elites”, o governo militar eliminou a democracia e estabeleceu uma legalidade ilegítima, ancorada neste senso comum autoritário.
A legalidade democrática não é uma “imposição”, mas sim uma construção na qual cada um é coautor da lei que está obrigado a obedecer


Mas como essa legalidade se tornou eficiente?

“Ame-o ou deixe-o”. Numa ditadura, o emprego da força é maior na medida em que o consenso é menor. O Chile e a Argentina viveram golpes militares similares ao do Brasil, em 1973 e 1976, também “justificados” pela defesa da pátria contra a “ameaça comunista”. Nossos vizinhos são exemplos do uso indiscriminado da força para a manutenção da legalidade autoritária. Na Argentina a ditadura deixou 30 mil mortos e desaparecidos, no Chile, 10 mil. Comparados aos números oficiais brasileiros, que dão conta de 475 vítimas fatais, pode-se pensar que vivemos aqui uma ditadura mais amena, uma “ditabranda”. Este argumento é falso.


Parada militar de 1971, em foto de Orlando BritoNo Chile e especialmente na Argentina, a legalidade do regime autoritário sofreu maior resistência social. No Brasil houve mais cooperação entre as instituições e o regime, especialmente no sistema de Justiça. Enquanto nos países vizinhos os governos militares foram contestados pelo Poder Judiciário, obrigando as ditaduras a aposentar e a expulsar um grande número de membros da magistratura e do Ministério Público, e a criar inúmeros expedientes e tribunais de exceção, no Brasil a Justiça mostrou-se muito mais disposta a aplicar a legalidade do regime. Mas a escolha de diferentes meios repressivos não significa que nossa ditadura não foi violenta. Números oficiais da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça apontam que mais de 40 mil brasileiros foram vítimas de atos de exceção e que a tortura foi praticada de maneira indiscriminada.

A concessão de poderes quase ilimitados às forças de segurança, combinada com uma cultura de impunidade derivada do senso comum autoritário, promoveu uma maior institucionalização da violência. Uma das consequências é que práticas “clandestinas”, como o sequestro de opositores, foram bem menos frequentes no Brasil. Elas não eram necessárias, pois o sistema de Justiça estava disponível, e isso teve impacto no número de mortos e desaparecidos. De outro lado, o fim do regime não resultou no fim das práticas repressivas que ele institucionalizou. As atuais violações de direitos por forças de segurança, a criminalização de conflitos sociais e a histórica impunidade dos indivíduos “diferenciados” são heranças da legalidade assimétrica reforçada no período da ditadura. A naturalização dessas discrepâncias com a igualdade formal perante a lei explicita as relações entre o senso comum e a prática jurídica autoritária.

A maior adesão das instituições da Justiça à legalidade da ditadura pode ser explicada por duas perspectivas complementares que apontam para características sociais ainda existentes: uma ligada à formação de nossas elites burocráticas, outra ligada à sua ideologia.

“Aplico a lei por ser lei, não por ser justa”. A formação do jurista brasileiro historicamente privilegiou o formalismo. Os cursos de Direito dedicam pouco tempo para a reflexão crítica. Formam profissionais “técnicos”, que leem a lei ignorando seu contexto social e aplicam a legalidade autoritária afirmando ser ela “neutra”.

“Os fins justificam os meios”. Para além do tecnicismo de uns, a ideologia de outros também foi determinante. Predomina entre muitos juristas um senso comum autoritário, bem expresso pelo ministro Marco Aurélio Mello, do STF, quando definiu a ditadura como “um mal necessário”.

Mais que mudar leis, para eliminar a legalidade autoritária é preciso produzir um senso comum democrático. O Direito só será democratizado se reformas legais forem acompanhadas por transformações culturais e de mentalidade. A chamada “justiça de transição” articula mecanismos para esse fim. O Estado deve garantir o direito à verdade, reparar as vítimas e apurar as violações, reconhecendo como ilegais, na democracia, os atos validados pela legalidade autoritária. Estas medidas não buscam apenas a compensação individual das vítimas, mas também a reconstrução dos conceitos de justiça e igualdade perante a lei em toda a sociedade. Daí a importância de políticas de memória que exponham e questionem o legado autoritário. A consolidação de uma legalidade democrática depende do fortalecimento da democracia em si mesma.
Práticas “clandestinas”, como o sequestro de opositores, não eram necessárias, pois o sistema de Justiça estava disponível, e isso teve impacto no número de mortos e desaparecidos no Brasil


A impunidade dos crimes dos agentes da repressão é uma ilustração da persistência de uma legalidade autoritária e assimétrica: enquanto os perseguidos políticos foram identificados, processados, punidos e então anistiados, os agentes da repressão seguem intocados. Não são iguais perante a lei. A Corte Interamericana de Direitos Humanos considerou ilegal a anistia aos crimes contra os direitos humanos, mas o senso comum autoritário que ainda predomina na Justiça brasileira impede seu processamento doméstico.

Reformas institucionais também ajudam a desarticular a legalidade autoritária. Numa democracia, as Forças Armadas existem para defender os civis, e não para governá-los. Em 1999, o governo transformou este senso comum democrático em legalidade, criando o Ministério da Defesa e reforçando a cultura de comando civil sob as forças de segurança. No plano simbólico, falta uma retratação pública das Forças Armadas pelo golpe e pelas violações aos direitos humanos, colocando um ponto final institucional nos discursos de legitimação da “revolução de 1964”.

Uma legalidade democrática depende, por fim, da democratização da Justiça. Ela deve ser capaz de atender a toda a sociedade, e não apenas às elites. Entre os três Poderes, o Judiciário é aquele menos permeável ao controle social. É necessário superar a ideia de que a técnica proporciona neutralidade, e implementar mecanismos efetivos de controle e legitimação social da Justiça.

O discurso que define o Poder Judiciário como espaço burocrático de exercício apolítico de uma técnica foi um dos principais veículos de propagação da legalidade autoritária. Era um discurso compatível com seu papel durante a ditadura, mas não com suas responsabilidades em um Estado de Direito, no qual ficam mais evidentes suas prerrogativas políticas, entre elas interpretar a Constituição.
Fonte:  http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/direito-versus-democracia

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