Como a trilha sonora do século 20 dominou o mundo
Fabio Marton
Hoje pode ser coisa de aficionados e intelectuais, mas, até perder seu trono para o pop e o rock’n’roll nos anos 60, o jazz foi a música mais popular do mundo. De Los Angeles até Moscou, o jazz passou por cima de todas as tradições locais, roubando o espaço até da venerável música clássica. E, mesmo onde o nacionalismo impediu que ele afogasse as tradições, como no Brasil e no resto da América Latina, deixou uma marca indelével. Como um estilo nascido em humildes origens, de negros pobres numa das regiões mais pobres dos Estados Unidos, se tornou a música do mundo?
Pai pobre, pai rico
O jazz surgiu em Nova Orleans, sul dos EUA, no início do século 20. A cidade “tinha um balanço especial entre as culturas branca e negra e entre as músicas clássica e popular, que parecem ter sido características ideais para o surgimento do Jazz”, afirma o historiador Mervyn Cooke, da Universidade de Cambridge, autor de The Chronicle of Jazz (sem tradução), em entrevista a AVENTURAS NA HISTÓRIA.
Mas não era só esse balanço que estava em questão. Ele também existia em Havana, Salvador e Rio de Janeiro, que deram origem a outros ritmos. Certas coisas boas nascem da adversidade. Algo que diferenciava Nova Orleans é que estava situada num país protestante e segregacionista, onde os conflitos raciais eram exacerbados. Logo após a Guerra Civil e a subsequente abolição da escravidão, foram criados os Black Codes, leis que restringiam os direitos dos negros. Essas leis proibiram os tambores africanos – que sobreviveriam no Brasil e em Cuba. Em vez disso, o mesmo ritmo africano teve de se adaptar a instrumentos europeus. Nas igrejas segregadas dos negros surgiram os spirituals, canções africanas sem a percussão, que deram origem ao blues, sua versão secular. E, de forma impressionante, o ritmo dos tambores foi transferido para o piano. Era o ragtime, uma marcha com acompanhamento politônico, feito com outra mão ou um segundo pianista, um ritmo tipicamente africano adaptado ao instrumento. O ragtime era tocado pelos negros e mestiços mais abastados, que tinham a educação musical formal. Os pobres ficavam com os blues.
Mas foram necessárias outras condições peculiares. Nova Orleans tem festivais de rua, herança de sua colonização francesa e católica (a região foi comprada de Napoleão em 1803). Os protestantes que fundaram os EUA não celebravam o Carnaval, ali chamado Mardi Gras. Outra tradição única de Nova Orleans é o uso de música em velórios.
Nos tempos da colonização francesa e escravidão, usavam-se bandas marciais nessas ocasiões, que tocavam marchas. Quando os negros foram libertados, tomaram parte na celebração com os mesmos instrumentos, o que ficou conhecido como as brass bands. Nessas ocasiões, os adeptos do blues e do ragtime se encontravam. Alguns seguiam a partitura, e os que não sabiam se viravam. Era o nascimento do improviso, uma das características definidoras do jazz. “Havia muitos estilos de música que misturavam tradições ocidentais e africanas, mas o jazz dominou, porque era o mais flexível de todos”, afirma Ted Gioia, autor de diversos livros sobre o jazz.
Um impulso da guerra
O jazz nasceu em Nova Orleans, mas poderia ter continuado a ser uma especialidade regional, como o gumbo e o jambalaya, pratos típicos da cidade. Foi a Primeira Guerra que abriu caminho para a dominação global.
Primeiro, o jazz fincou os pés na Europa. Músicos do exército norteamericano apresentaram o som aos ouvidos europeus. Segundo, uma contingência de guerra levou ao fechamento de Storyville, o bairro da luz vermelha de Nova Orleans. Uma base militar foi aberta na cidade, e, pelos regulamentos do Exército, os prostíbulos tiveram de sair. Isso fez com que muitos músicos, desempregados, tivessem de se mudar, se estabelecendo em Chicago, que se tornaria a nova capital do jazz. Mas, talvez, o mais importante é a mudança de atitude surgida no pós-guerra. O trauma do confronto quebrou uma secular cultura de estabilidade. As pessoas não queriam mais viver como seus pais, sob inabaláveis valores morais que não se alteravam entre as gerações. Nos EUA e na Europa, os anos 20 foram uma época de hedonismo, e sua trilha sonora foi o jazz.
“O jazz é ideal para dançar, e foi associado com danças novas e na moda, e daí encampado por consumidores joviais”, afirma Mervyn Cooke. A dança do jazz era nova. E isso tem a ver com sua origem. “Na música europeia, as partes de um compasso são divididas de forma proporcional. A música africana é naturalmente assimétrica”, diz Hermilson Nascimento, professor do Departamento de Música do Instituto de Artes da Unicamp. Isso quer dizer que, com a música europeia, pode-se dançar valsa, um passo para lá, outro para cá. Com uma música africana e seu ritmo sincopado, com divisões assimétricas, a dança é mais livre – e nunca antes havia sido experimentada.
Reações tradicionalistas
Na década de 30, o jazz passou a ser associado a tudo o que era novo. “O avant-garde cultural o saudava como a música da era da máquina, a música do futuro, a força revitalizadora da selva primitiva, e assim por diante”, escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm em A História Social do Jazz. Fundado em 1931, o Hot Club de France revelou Django Reinhardt, o primeiro grande nome do jazz europeu. Por toda a Europa, artistas norte-americanos passaram a fazer turnês, atraindo multidões.
Na Alemanha nazista, o jazz foi proibido em 1933 – não só Hitler se opunha ao modernismo em geral e considerava os negros inferiores, mas muitos artistas brancos do jazz eram judeus. Na União Soviética, Stalin tinha ideias similares a respeito da arte moderna, tida por burguesa e incompreensível para o povo. O “realismo soviético” foi aplicado à música, e o jazz foi perseguido nos anos 30 e 40. Na época, o Brasil vivia a ditadura nacionalista de Vargas, tentando construir uma identidade não europeia. O jazz também estava estabelecido por aqui, dando origem a um ritmo híbrido, a música de gafieira. Mas o samba foi “purificado” das influências externas meio que por decreto – o primeiro desfile das escolas de samba, em 1932, proibia instrumentos de sopro. Críticos e a propaganda governamental só valorizavam o “autêntico”.
O jazz não roubaria o lugar da música nativa, como na Europa, mas brasileiros continuariam a ouvir e aderir, mesmo sob patrulha nacionalista. Nos anos 50, não faltou quem criticasse a bossa nova por suas supostas similaridades com o cool jazz – talvez por isso ela tenha se tornado o maior sucesso de exportação da cultura do Brasil.
A vitória dos EUA na Segunda Guerra colocou o país em sua atual posição de domínio sobre a cultura do Ocidente. O jazz foi vendido como a música da liberdade, e Louis Armstrong fez concertos patrocinados pela CIA. Nem precisava. O jazz já havia vencido sozinho.
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Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/origens-jazz-800642.shtml
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