Há 450 anos, os tamoios, liderados pelo guerreiro Cunhambebe, lutaram bravamente contra a chegada da armada lusitana, mas acabaram derrotados
“Um grande rei selvagem; o mais temido do país." Assim o francês André Thevet descreveu Cunhambebe, o líder que, no século XVI, uniu as tribos tamoios para resistir à ocupação dos portugueses
Por Dirley Fernandes
Imagine que estamos em meados de 1555. O cenário é uma praia – provavelmente a que viria se chamar, depois, “do Galeão” – na maior ilha da baía de Guanabara. Dali, se descortinam as matas e serras daquela região de beleza intocada. Nada indica que estamos às vésperas de um embate entre franceses e portugueses que definiria o futuro da colonização do litoral brasileiro. Na disputa entre europeus, os índios iriam exercer o papel coadjuvante de fornecedores de milhares – talvez centenas de milhares – de cadáveres. A dança da guerra já havia começado.
Como aquele pedaço de terra ainda não fora presenteado ao futuro governador Salvador Correa de Sá, a Ilha do Governador era então conhecida por nomes indígenas, como Paranapuã e Maracajás. O chefe dos índios maracajás, Maracajaguaçu, estava naquela praia, conversando com um oficial português.
Contava-lhe sobre o cerco que sua tribo vinha sofrendo dos inimigos tamoios. Por isso, ele tinha pedido ajuda aos lusitanos para levar seu povo da ilha e da Guanabara. Vasco Coutinho tinha enviado do Espírito Santo quatro navios para conduzi-los a Vitória.
O povo maracajá integrava o ramo linguístico tupi, do qual faziam parte também os tupinambás. Os dois povos eram conhecidos por nomes que indicavam sua relação de parentesco: respectivamente, temiminó (neto) e tamoio (avô, antigo...). Os tupis tinham ocupado a Guanabara e expulsado os povos conhecidos como sambaquis em uma de suas grandes ondas expansionistas pelo litoral brasileiro, cinco séculos antes da chegada dos europeus à baía.
Em algum ponto do passado, no entanto, temiminós e tamoios haviam se tornado inimigos e passaram a se enfrentar em uma guerra permanente em que ambos os lados se batiam ferozmente para “vingar a morte de nossos antepassados”.
Na metade do século XVI, os maracajás estavam isolados na futura Ilha do Governador – onde existiriam, segundo o cosmógrafo francês André Thevet, morador por algum tempo da Guanabara daqueles tempos, 36 tabas. A tribo contaria, segundo estimativas relativamente confiáveis, com cerca de 8 mil indivíduos, cercados por 70 mil tamoios. Por isso os líderes viam a fuga como a única saída para a sobrevivência. Um mensageiro levou ao Espírito Santo a promessa de conversão ao cristianismo em troca do auxílio conta os tamoios. Os portugueses, necessitados de braços fortes para o arco e o machado, toparam na hora.
Enquanto isso, o mais poderoso dos inimigos de Maracajaguaçu, o chefe tamoio Cunhambebe era aclamado líder da Confederação dos Tamoios. Cunhambebe estendia sua influência da aldeia Ariró (onde hoje fica Angra dos Reis) às tabas de Cabo Frio e Bertioga. Thevet o descreveu como “um grande rei selvagem, o mais temido de todo o país”. A Confederação dos Tamoios foi a união de tribos com o propósito de resistir à ocupação portuguesa na capitania de São Vicente, que se consolidava pela aliança com os guaianases – marcada pelo episódio do casamento entre o explorador português João Ramalho e Bartira, filha do chefe Tibiriçá. O antropólogo Pierre Clastres especularia que aquele princípio de organização intertribal poderia ter sido a raiz de um grande Estado indígena no país. Poderia, não fossem as alianças indígenas daquele tempo tão frágeis e mutáveis e tão arraigado o tribalismo entre aqueles povos. E tivessem eles disposto de mais tempo.
Por que eles eram inimigos? Essa foi a pergunta que se fez Américo Vespúcio, depois de ter se tornado um dos primeiros europeus a cruzar a barra da Guanabara, em janeiro de 1502. Se não ficavam com os despojos, se não comerciavam escravos (ainda), se não se apoderavam das terras do inimigo aqueles homens, por que se batiam? “Para vingar seus antepassados” seria a resposta que qualquer índio daria, sem pestanejar e considerando mesmo a pergunta um tanto quanto desprovida de sentido, já que o conceito de propriedade privada que guiava o raciocínio do navegador florentino era para eles de todo desconhecido. A necessidade da vingança era ensinada às crianças e ritualizada na antropofagia, exercendo o caráter de elemento de coesão da tribo.
O relato do ritual antropofágico no filme Como era gostoso meu francês difere muito pouco das narrativas que sobreviveram a respeito dos costumes dos “gentios” daquele tempo, inclusive no que se refere à mulher que era concedida ao prisioneiro para cuidar de todas as suas necessidades antes que fosse – dias, semanas ou meses depois de capturado – devidamente sacrificado e devorado em grandes festas rituais. Se essa mulher, porventura, engravidasse do prisioneiro, o filho também seria, a seu tempo, devorado.
Na região do atual estado do Rio de Janeiro, os tupis dominavam a Guanabara e os outros povos só tinham vez para lá das fronteiras geográficas naturais – como os botocudos, que tinham aldeias sertão adentro, na região do rio Macacu, ou os goitacás, do outro lado da lagoa Feia, ou ainda os guarus, para lá da serra do Mar. Os grandes rivais eram outros tupis – os tupiniquins “paulistas”, entre eles os do subgrupo litorâneo guaianases, vizinhos dos tamoios nas praias entre Angra dos Reis e São Vicente. Muitos desses guaianases, por volta de 1555, já viviam sob o regime de aldeamento – reunidos sob a tutela dos jesuítas e exercendo trabalho semiescravo (nas palavras de Mem de Sá, em “aldeas grandes onde vivem com modo político e levantam igrejas e casas aos Padres da Companhia”).
Já a relação entre os franceses do monge, soldado e douto diplomata Villegaingnon e os tamoios da Guanabara é permeada por uma liberalidade de que dá conta o próprio governador Mem de Sá em carta à regente D. Catarina, após a destruição do Forte Coligny, na qual solicitava que a Guanabara fosse povoada, a fim de evitar o reagrupamento da aliança franco-tamoia. “Ele (Villegaignon) leva muito diferente ordem com o Gentio do que nós levamos; é liberal em extremo com eles e faz-lhes muita justiça (...) É muito do Gentio, a quem manda ensinar a todo o gênero de ofícios e de armas e ajuda-os nas suas guerras. O Gentio é muito e dos mais valentes da costa”.
Após aquele apelo de Maracajaguaçu, quatro embarcações lusitanas levaram os índios até a capitania do Espírito Santo. Ali, eles se espalharam desde o atual município de Anchieta até a foz do rio Doce, com o chefe maior se aldeando no atual município da Serra (aldeia Nossa Senhora da Conceição). Sete anos depois, parte deles está aldeada sob a liderança de um dos supostos filhos Maracajaguaçu, o célebre Arariboia. A aldeia de Arariboia chamava-se São João (hoje, Carapina) e tinha, claro, capela e supervisão dos jesuítas. Os temiminós eram “índios de pazes”, ajudando os portugueses na defesa do território e trabalhando em troca de proteção e pequenas recompensas.
Dali, o grande chefe só partiria com seus “quatro mil arcos” para ajudar a expulsar os franceses da Guanabara. Em 20 de janeiro de 1567, o chefe revisitaria a ilha que tinha deixado 12 anos antes, para encenar o último episódio da luta dos portugueses contra os tamoios nas águas da baía. Depois que as tropas portuguesas e temiminós, com o socorro de Mem de Sá, haviam destroçado a aldeia de Uruçumirim, na praia do Flamengo, partiram para a fortificada Paranapucuí, na ilha do Governador, onde os inimigos, diante do poderio redobrado dos portuguesas, se renderam. Mil tamoios foram escravizados.
Naquele momento, Cunhambebe já estava morto. Uma “peste” (varíola?) que dizimou centenas de índios de sua tribo também o vitimou em algum momento do fim dos anos 1550. Seu filho, também Cunhambebe, tornou-se chefe de sua tribo e aliado de Aimberê, o novo líder máximo dos tamoios, que morreu comandando sua gente na batalha de Uruçumirim.
A guerra logo seria retomada, com os temiminós ajudando os portugueses a estender o seu domínio até Cabo Frio, a fim de “limpar” toda a Guanabara da presença dos tamoios e franceses. Em 1575, 400 portugueses e 700 “gentios amigos” liquidaram o último foco de resistência tupinambá, em Cabo Frio, fazendo 4 mil prisioneiros – segundo testemunho do frei Vicente do Salvador –, que foram repartidos entre os portugueses.
Martim Afonso (nome cristão de Arariboia) já tinha sido enviado para uma área na margem da baía oposta à das muralhas do morro do Castelo onde, em 1573, sempre ao lado dos jesuítas, fundou a aldeia de São Lourenço, que daria origem à cidade de Niterói. A presença dos índios ali atendia ao plano de vigilância da Guanabara traçado pelos portugueses.
Um século depois da morte de Arariboia – por afogamento, na versão mais corrente –, as terras temiminós já haviam sido atacadas por grileiros que se apossaram de boa parte do terreno. Em 1866, decretou-se a extinção do aldeamento, um dos últimos que restavam no Rio de Janeiro. Os poucos descendentes do antigo chefe ali residentes, em estado entre a pobreza e a miséria, se perderam pelas ruas do Rio de Janeiro, onde eram chamados de “caboclos”. Dos seus “primos” tamoios, já não se tinha notícia havia dois séculos.
Dirley Fernandes
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/indios_da_guanabara.html
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