Nashla Dahás
O resultado do jogo estava decidido bem antes do apito final. A transição da ditadura para a democracia, na virada dos anos 80, foi construída sobre os alicerces da conciliação.
Na perspectiva adotada pelos principais atores políticos e militares, o espaço democrático que se formava acolhia tanto os setores considerados moderados das Forças Armadas quanto militantes das variadas esquerdas não armadas, incluindo trabalhistas e comunistas. As responsabilidades pelo golpe de 1964 foram integralmente atribuídas aos radicalismos à esquerda e à direita. Águas passadas. Na lógica da abertura da ditadura e da liberalização da democracia, paz social significava ausência de conflitos. O preço a pagar era o perdão aos militares torturadores e o banimento de opções políticas radicais.
Trinta anos depois, a tortura é um “problema crônico” em delegacias e penitenciárias brasileiras, e aumenta o número de homicídios cometidos pela polícia em estados como Rio de Janeiro e São Paulo, segundo relatório divulgado pela organização Human Rights Watch no início de 2015. Para a diretora da entidade no Brasil, Maria Laura Canineu, “a tortura é herança da impunidade”.
Em 2010, cerca de metade da população de 11 capitais do Brasil concordava, totalmente ou em parte, com o uso da tortura pela polícia, como método para obter provas de suspeitos. Os dados são do Núcleo de Estudos de Violência da USP, e contrastam com o resultado de 1999, quando 71,2% da população discordavam completamente do uso de tortura. “Qualquer decisão legislativa ou judicial para responsabilizar os agentes da repressão [durante a ditadura militar] não deverá resultar da expressiva mobilização da sociedade”, conclui a cientista política Maria Celina D’Araújo, da PUC-Rio, em análise recente sobre esses dados. O filósofo Vladimir Safatle lembra que somos o único país sul-americano onde os torturadores não foram julgados, onde não houve justiça de transição e onde o Exército não fez seu mea culpa. Oficiais da ativa e da reserva ainda fazem elogios sistemáticos à ditadura militar, e décadas após o fim do regime convivemos com o ocultamento de cadáveres daqueles que morreram nas mãos das Forças Armadas. A incapacidade de reconhecer e julgar os crimes de Estado cometidos no passado transformou-se, segundo Safatle, em uma espécie de referência inconsciente para ações criminosas perpetradas por nossa polícia, pelo aparato judiciário, pelos setores do Estado. A ação militarizada no combate à violência, em especial, continua sendo aplaudida por boa parte da sociedade.
Convidamos especialistas no assunto a reinterpretar o evento “fim da ditadura no Brasil”. Completam-se três décadas em um novo contexto, com novos dados de pesquisa e novas perspectivas políticas, jurídicas e sociais que devem nos oferecer outras luzes sobre aquele processo e seu impacto em nossas vidas.
No dossiê a seguir, o leitor encontrará revisões e diferentes análises sobre aquilo que ficou conhecido como “abertura” ou “distensão” da ditadura, seus diferentes agentes e motivações. As abordagens privilegiam óticas menos lineares do processo de transição – que nem foi liderado exclusivamente por militares, nem apenas fruto da conquista de certos movimentos sociais.
Questionar o legado da ditadura nos dias de hoje não significa confundi-la com a democracia formal, nem desmerecer as conquistas da Constituição de 1988. Trata-se apenas de ir além da versão conciliadora assimilada na época da redemocratização, e reproduzida desde então.
Durante 20 anos a ditadura militar brasileira esforçou-se por institucionalizar uma visão de mundo sintetizada pela Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento. De acordo com o historiador Marcos Napolitano, a DSN voltou os exércitos nacionais dos países subdesenvolvidos para “a defesa interna contra a subversão comunista infiltrada”, em tempos de Guerra Fria. A fronteira a ser defendida passou do campo da geografia para o da ideologia, e o inimigo passou a ser primordialmente interno, ou seja, qualquer militante ou simpatizante do comunismo ou de movimento social ou partidário em favor de ideais à esquerda do regime era alvo potencial da violência do Estado. A liberdade, enquanto natureza conflitiva da sociedade, foi eliminada nas mais variadas dimensões da existência humana.
Não é mera coincidência que as palavras de ordem dos governos democráticos a partir de 1985 sejam até hoje exatamente segurança e desenvolvimento, ao mesmo tempo em que reformas sociais ou a ampliação da democracia participativa desde então são associadas à memória de um Brasil considerado radical e fracassado.
O cerne da virada política brasileira começa em 1974, quando a própria ditadura esboça um processo de redemocratização. Simultaneamente, o país convivia com mortes violentas de militantes de esquerda, cassações e fechamento do Congresso Nacional. Em seu discurso de posse, Ernesto Geisel, o “presidente da abertura”, não mencionou a volta à democracia, elogiou a “Revolução” e suas conquistas políticas e econômicas, reconhecendo apenas que estava na hora de um “generoso consenso nacional”.
Levou mais de uma década até que o último presidente militar, João Batista Figueiredo, promovesse a primeira eleição civil presidencial desde 1960, ainda pela via indireta. E outros cinco anos para que se considerasse a população apta a eleger o presidente da República. Ironia ou não, Fernando Collor, que enfim inaugurou formalmente a democracia brasileira, acabou retirado do poder por um impeachment.
A normalidade democrática definitivamente não está consolidada no Brasil. E não avançará enquanto não for analisado e revisto o complexo processo de transição de uma ditadura institucionalizada. Transição que não se reduz à conciliação de classes, ideologias e projetos nacionais como aquela que deu o tom da grande coalizão conservadora e anticomunista que derrubou João Goulart em 1964. Não há conciliação possível quando sujeitos continuam se sentindo violados por práticas sistemáticas de violência estatal e de bloqueio de liberdades individuais e coletivas, como o direito de ir e vir, o direito à saúde e à educação básicas de qualidade. Sem falar no direito à manifestação, à greve e mesmo à rebeldia contra um Estado opressor de forma socialmente reconhecida.
Da utopia democrática que parecia se concretizar no horizonte de 1985, alguma parte era miragem.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/capa/miragens-de-democracia-1
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