Vida cotidiana de crianças no passado
Internet é realmente uma grande revolução das telecomunicações para mudar a vida das pessoas. Ela ajuda a conectar-nos mais perto juntos, então é claro que é bom para nós, mas com crianças, não tenho certeza ...
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A honra dos nobres
No período do Antigo Regime, as querelas entre os membros da aristocracia eram resolvidas por meio de duelos. Esses combates, que envolviam uma série de regras, eram uma espécie de última instância para solucionar casos de honras ofendidas
POR MARCOS ANTONIO LOPES
Honra à nobreza. Além de uma exigência, esse foi um dos grandes ideais da cultura nobiliárquica ao longo do Antigo Regime – governo que marcou a Europa durante a Idade Moderna (1453-1789). Acerca da glória e da reputação, um grande autor daquele tempo escreveu algumas observações esclarecedoras: Montesquieu (1689-1755) construiu uma teoria erudita sobre a honra, ainda que a tenha examinado a partir de um ângulo estritamente político. Ao analisar o princípio vital que moveria as ações dos indivíduos nos regimes políticos monárquicos, o filósofo francês considerou o sentimento da honra como o motor das ações aristocráticas.
A honra é a “paixão” dos súditos que compõem a nobreza nesse regime político; é a “mola” que os impulsiona sob o exercício do poder de um príncipe que observa as leis. Assim sendo, esse sentimento de grandeza, esplendor e glória existe no interior de uma monarquia como o próprio núcleo do sistema político e, para realizar-se plenamente, requer a atmosfera típica das sociedades aristocráticas, com suas cascatas de distinções, de precedências e de privilégios. No entanto, essa “mola”, essa “paixão”, é um anseio que cabe apenas a alguns poucos felizes. Montesquieu explicou que, no interior de uma monarquia tradicional – ou seja, não despótica –, a honra deriva de interesses particulares. Mas, ainda assim, tais interesses sempre levariam à realização do bem comum.
A HONRA NOS TEXTOS DE ÉPOCA
Com ou sem a presença de Montesquieu e de suas elevadas considerações filosóficas (autor que, diga-se de passagem, refletiu sobre a conduta virtuosa na condição de integrante da nobreza do sudoeste da França), é fácil observar como o anseio aristocrático da honra foi um dos temas mais recorrentes na literatura do Antigo Regime. E isso nos mais diferentes gêneros literários daquele tempo. Dos tardios romances de cavalaria, passando pelas peças teatrais e pelas obras eruditas de reflexão política (Do espírito das leis, de Montesquieu, por exemplo), para chegar aos livros de História e aos escritos poéticos, as reflexões sobre a honra ocupam um lugar central nos textos de época.
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O quadro O Duelo, de Leon Marie Dansaert (1830-1909), revela a importância dos combates sanguinolentos para promover a honra dos nobres em busca dos sentimentos de grandeza de uma monarquia
A idealização de um conjunto de normas, que guiaria o comportamento dos indivíduos pertencentes a um mesmo segmento social em cada passo de sua existência, poderia ser definida como a síndrome da nobreza, como uma espécie de obsessão de classe. Princípio regulador da vida social, a honra era também o motor que impulsionava as ações mais enérgicas, ou até mesmo heróicas, de indivíduos muito ciosos da posição que ocupavam no espaço hierárquico de uma sociedade estabelecida sobre os privilégios de sangue.
O sentimento arraigado da honra compunha a fachada principal do universo masculino. Mas o ideal de honra também existia para as mulheres, ligadas que estavam ao emaranhado de tradições do Antigo Regime, conjunto cultural de regras complexas e de numerosos interditos. Como diz a jovem e bela Carlota na peça de Molière (1622-1673), “eu preferia morrer a ser desonrada”1. Paradigmática do ideal de honradez feminina é El Cid, obra do escritor francês Pierre Corneille (1606-1684). El Cid é uma obra da primeira metade do século XVII e foi encenada no reinado de Luís XIII (1601-1643), tempo de intensos conflitos entre a nobreza e a realeza. Ambientada em um passado distante, no contexto das lutas entre cristãos e muçulmanos do século XI, o texto de Corneille revela muitos aspectos relativos à cultura da honra na França do século XVII. O homem da Idade Clássica, afirmou o historiador Philippe Ariès (1914-1984), tendia a conceber os tempos históricos de maneira sempre igual.
Como se sabe, em El Cid, a honra da família de Dom Rodrigo de Vivar (nobre guerreiro espanhol que viveu no século XI, também conhecido como El Cid e o campeador) foi ameaçada pelo pai de Climene, justamente a amada do herói da peça. Ao ver o pai morto por Dom Rodrigo em duelo, a heroína renuncia a desposá-lo. Essa é a parte dramática do enredo, na qual a figura da mulher se destaca em uma bem regulada encenação das leis de honra à l’Ancien Régime. Portanto, as questões relativas à submissão, à castidade, à fidelidade e a mais um rico conjunto de prendas que compunham o catálogo das virtudes da mulher ideal, também integravam a paisagem complexa dos sentimentos relativos à honra. Conscientes de tais valores estavam alguns dos mais atentos observadores daqueles velhos tempos, autores que tenderam a focar a coisa pelo prisma das leis estabelecidas pelos antigos costumes de suas respectivas sociedades.
A HONRA DAS DONZELAS
Mas com todos esses exemplos, não se pode esquecer de que quando o tema é a honra das mulheres, as Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes (1547-1616), formam uma rica enciclopédia. Com efeito, trata-se de uma série de espantosas aventuras de donzelas atormentadas pela defesa da honra que perderam, ou que estão em vias de perder. A questão, no caso, vem a ser sempre a integridade daquele fruto mais sagrado e por vezes incandescente que elas reservam apenas aos cavalheiros mais ilustres que têm a felicidade de gozar de suas mercês. Contudo, ocorre que por vezes esses briosos mancebos de altíssima estirpe, quando saídos das altas temperaturas, se esquecem de cumprir com a palavra empenhada. É quando as “pombas ingênuas” reconhecem-se apanhadas pela lábia de mestres formados na velha ciência da velhacaria. A aflição gera correria, desencontros, mal-entendidos, e a defesa da honra arrasta amantes, pais, irmãos e demais parentes direto aos hospitais ou aos cemitérios. Como bem percebera o romancista francês Alain-René Lesage (1668-1747), exímio conhecedor das tradições ibéricas: “o amor tem grande império sobre os espanhóis; porém a honra tem ainda mais”.2
" E, claro, duelos são travados com o propósito de que alguém seja, SE NÃO MORTO, AO MENOS FERIDO "
Joseph Conrad
Na fatídica história do espanhol El Cid, o jovem guerreiro tem a honra da sua família ameaçada pelo pai de sua amada. O herói da peça opta por manter o nome da família e mata seu futuro sogro e, conseqüentemente, perde o amor de sua prometida
Ora, as manchas da honra precisavam ser lavadas com o sangue dos malfeitores, a golpes de espada, de punhal ou de qualquer outro eficaz instrumento, porque a nobreza do sangue exigia ou a reparação imediata ou a vingança sem mais perda de tempo. “Quanto mais depressa melhor”, disse o fidalgo espanhol D. Juan de Gamboa diante do agravo feito contra a honra de Dona Cornélia, “porque o ferro deve ser malhado enquanto está quente, o ardor da cólera aumenta a coragem e a injúria recente estimula a vingança”.3
Em A força do sangue, texto também integrante da série de novelas cervantinas, o ideal da honra feminina atinge alturas difíceis de serem igualadas. Para citar uma troça do próprio Cervantes, aqui a honra feminina situa-se “a 10 milhas acima das nuvens”. A dramática história de Leocádia, a heroína parcialmente desventurada da peça, gira em torno dos episódios extraordinários que, como desencadeados magicamente, envolvem a ruína completa e a total restauração de sua honra, perdida e reencontrada nos braços do fidalgo D. Rodolfo.
Desonrada, a bela Leocádia se vê na triste condição de acobertar a injúria que sofreu porque não pôde queixar-se publicamente de sua condição: simplesmente desconhece aquele que foi o autor da perda de sua dignidade. Como bem parece pontuar o ficcionista, no que revela o aterramento histórico de sua literatura, o ethos aristocrático interdita a informação do episódio da violação da jovem Leocádia à justiça. Divulgar agravo de tal natureza era a maneira mais rápida e eficaz para aviltar uma família inteira. Diante da desonra consumada e da impossibilidade da reparação a quente, caberia apenas um silêncio prudente, “... pois é melhor a desonra que se ignora do que a honra exposta à opinião dos outros”.4 Dito em outros termos, “... mais ofende um grama de desonra pública do que uma arroba de infâmia secreta”.5
Incontáveis são as demais lições acerca da honradez do sexo frágil na obra do autor de Dom Quixote. Para encurtar os exemplos, muitíssimo numerosos, vale lembrar a novela intitulada O ciumento, porque é aqui que a compulsão pelo valor da honra toca as raias da obsessão. O personagem Filipe de Carrizales, velho rico e aposentado, decide escolher por esposa uma bela jovem de 15 anos. Casado, ele emprega parte de sua fortuna para fazer de sua casa uma fortaleza, destinada principalmente a impedir a aproximação de homens. Debaixo de seu teto, a virgindade é a primeira condição de suas servidoras, a comunicação com o mundo exterior se faz por meio de uma roda de convento e até a criação de animais machos está proibida.
Não havia ultrajes maiores do que aqueles que atingiam a honra. O mais terrível para os homens era mexer com suas mulheres
Obra de Jean Auguste Dominique Ingres (1780 –1867), intitulada Gianciotto descobre Paolo e Francesca. Ilustra como, até o século XIX, contos e novelas enalteciam a vergonha e a desonra em ter a mulher seduzida por outro homem
Naturalmente, o enredo da história desenrolase no sentido de revelar a trágica ineficácia de tão redobrados cuidados para a preservação da honra. Cervantes conclui, exemplarmente, que não bastam trancas e muralhas quando entram em cena certos engenhos da curiosidade feminina, aliás, muito bem-sucedidos para burlar tão cerrada interdição. É assim que os cercos são furados, as fortalezas despedaçadas e a honra mais do que ameaçada. Como disse Lesage acerca de certas benevolências das “sentinelas da honestidade”, quando há algum talento e ousadia, sempre é possível lograr a acomodação do vício com a reputação da virtude, a conciliação dos sentidos com a aparência do recato.6
A HONRA NA PONTA DA ESPADA
Escritores políticos quinhentistas como Maquiavel (1469-1527) e Jean Bodin (1530-1596) lançaram interditos aos próprios príncipes de seu tempo, no sentido de observarem uma conduta muito respeitosa para com as mulheres de seus súditos. Mézeray (1610-1683), influente historiador seiscentista francês, que teve sua obra histórica publicada até o século XIX, alertava seus contemporâneos para o mesmo problema ao sentenciar que não havia ultrajes maiores do que aqueles que atingiam a honra e, dentre estes, o mais terrível para os homens era mexer com suas mulheres. De fato, há muitos traços na literatura de época que evidenciam a indignação dos homens diante de tal circunstância.
Uma das cenas centrais da obra ficcional de Chordelos de Laclos (1741-1803), Ligações perigosas, que nem por isso deixa de ser representativa de aspectos da realidade cultural, retrata uma fatal cena de duelo entre o visconde de Valmont e o cavaleiro Danceny. Como motivo dessa jurisprudência de armas estava, naturalmente, a honra ultrajada de uma donzela. Em Don Juan, Molière descreve a fúria indignada do camponês Pierrô diante da sedução, pelo protagonista da história, de sua prometida, a belíssima Carlota.
Ainda que se tratasse de um aristocrata de alto coturno – considerando-se todas as distâncias reais e simbólicas presentes em uma sociedade marcada pelo privilégio –, o humilde camponês não se intimida em dirigir-lhe uma série de impropérios, em meio aos quais vai sendo mimoseado com vigorosos bofetões por parte do nobre sedutor. Isso para afirmar que o tema da honra no Antigo Regime pode revelar aspectos muitíssimo variados. Aqui interessa centrar a discussão em matizes relativos ao término gradativo dos antigos códigos de honra, a partir de uma presença mais eficaz e reguladora do poder político e das leis civis em franca ascensão.
Na época do Antigo Regime os duelos eram tidos como o ultimato em nome da honra. A vitória em batalha simbolizava a conquista da razão do embate, ou seja, entre os antagonistas havia uma incógnita que os levava a duelar, e estaria certo aquele que vencesse a disputa
Como se sabe, ao longo do Antigo Regime, o duelo era a “última razão” nos casos de honras abaladas, algo como o “poder judiciário” naquele campo em que predominavam as leis de nobreza. Era um instrumento que permitia restaurar prontamente uma reputação desfeita, fosse individual ou familiar, porque “a inteligência do homem está no coração”, lembra a propósito Máximo Gorki (1868-1936) em suas reflexões acerca da honra.7
A ação honrosa, apesar dos riscos fatais implicados, era orientada pelo preceito de que uma atitude valorosa seria executada. A sublimidade dos fins justificaria os meios violentos empregados. Acima de tudo, estava o sentimento do dever cumprido porque, no duelo, a solução das controvérsias é confiada às armas. O triunfo provará a justiça de uma causa entre antagonistas que não admitem nenhum árbitro acima deles. Apenas a vitória será um critério justo para estabelecer de que lado está a razão.
A pintura de Max Slevogt (1868 – 1932) descreve a cena em que Don Giovanni intimida o inimigo. Leporello se esconde atrás dele
A HONRA COMO FORÇA DA TRADIÇÃO
Ao tempo dos reis absolutistas, o exercício de um antigo sistema judiciário, que orientava e respaldava a prática de justiças privadas, baseadas fundamentalmente na honra, ainda escapava ao controle e à punição dos núcleos centrais do poder oficial. A prática de tal justiça, à revelia dos poderes constituídos, é exemplo da força tradicional de costumes arraigados ao longo de séculos, contrapondo-se à emergência das novas leis civis impostas pelo Estado monárquico ascendente. Naqueles tempos, acreditava-se mais nas coisas na medida em que eram mais antigas.
Essas coisas passadas veneráveis tornavam-se tradições tanto mais respeitáveis, escreveu Montesquieu, quanto mais as suas origens se perdiam em remotas antiguidades. Quase tudo tinha como fundamento uma tradição, uma lembrança do passado, um princípio de validade determinado pela antiguidade dos usos e costumes. “Nada vale o que já foi”, escreveu o historiador Philippe Ariès, e “uma falta contra o antigo costume é uma inovação perigosa”.8
As sociedades do Antigo Regime viviam sob o temor das novidades, cujas infiltrações perniciosas poderiam resultar na ruptura dos equilíbrios desejáveis. Daí o fechamento de tais sociedades em uma “carapaça de costumes”, segundo a expressão de Georges Duby (1919-1996), em atitudes conservadoras que se fossilizavam sob o manto protetor e apaziguador de antigas sabedorias, das quais os mais velhos eram os guardiões reconhecidos 9. Um escritor político como Maquiavel, que pouco sofreu de nostalgia do passado – apesar dos recorrentes elogios aos antigos romanos, “pela virtude que reinava naqueles tempos”10 –, nem por isso deixou de alertar para o perigo de se promulgar leis que se chocassem contra os costumes tradicionais.
Miniatura das Cerimônias das batalhas de Gages, manuscrito do século XV, na Biblioteca Nacional de Paris. Simbolizavam os duelos judiciais
O empenho da nobreza do Antigo Regime em preservar a reputação conferida por títulos honoríficos, pelas posições sociais, pelos nomes de família e por outros valores morais, em um tempo em que eram muito acentuadas as convicções acerca de sua própria dignidade, dava freqüentemente origem a combates mortais. As leis civis existentes não previam crimes contra a honra, e as questões entre as partes envolvidas em um conflito dessa natureza acabavam dirimidas pela jurisprudência dos “expedientes extraordinários”: as armas, a força e a violência, segundo a terminologia de Maquiavel.
Como notou Montesquieu, um atento observador dos costumes daqueles tempos: “sempre que se tratava de regularizar as questões, não prescreviam quase mais que uma maneira de decidir, que era o duelo, o qual cortava todas as dificuldades; (...) Proibiram-no os reis sob as mais severas penas, mas em vão, porque a honra, que sempre quer imperar, se subleva, e desobedece a lei. De sorte que se acham os franceses em um estado muito violento, porque as mesmas leis de honra obrigam a que se vingue um homem que a tem; mas, por outro lado, quando se vinga, castiga- o a justiça com as mais rigorosas penas”.11
A HONRA CONTRA O DESPOTISMO
Entretanto, há de se relativizar a identificação do Ancien Régime com o império exclusivo da força bruta. Elementos que compunham o sistema cultural da época, como, por exemplo, certas leis de nobreza, muitas vezes atuaram como barreiras naturais contra o arbítrio. Atento observador, Montesquieu fez referência a dois episódios da história da França, ocorridos no tempo de Montaigne (1533-1592), nos quais a honra atuou como freio moral eficaz contra o despotismo, contra a crueldade e, inclusive, contra o fanatismo religioso que foi, sem dúvida, o traço predominante do século XVI.
Como lemos em Do espírito das leis, “Crillon recusou-se a assassinar o Duque de Guise, mas se ofereceu a Henrique III para bater-se contra ele. Depois da noite de São Bartolomeu, tendo Carlos IX determinado a todos os governadores que exterminassem os huguenotes, o Visconde d’Orte, que governava na Bayonne, escreveu ao rei: ‘Sire, encontrei entre os habitantes e militares apenas bons cidadãos e valentes soldados e nenhum carrasco; assim, eu e eles suplicamos a Vossa Majestade empregar nossos braços e nossas vidas em coisas factíveis’”.12
E Montesquieu extrai dessa “grande e generosa coragem” dos súditos – a ponto de se interporem diante da ordem de um rei colérico e com sede de sangue – a seguinte lição: o sentimento da honra, que é o “princípio”, ou a “mola”, que predomina em uma monarquia, leva os súditos a considerar impossível a prática da covardia. E prossegue Montesquieu: é nobre, é prestigioso servir ao príncipe na guerra, e todas as ações referentes a isso levam à grandeza, mesmo quando ocorrem reveses. Mas a própria honra, que impõe essas leis de nobreza, ao ser violada, permite uma reação negativa diante do que não condiz com os seus valores.
Montesquieu pensava os duelos como uma maneira objetiva de se tratar as irregularidades de questões, pois anulava qualquer burocracia
Em oposição a essas singularidades do Antigo Regime, cabe considerar que não chegara ainda o tempo de se pensar naquilo que o filósofo inglês John Locke (1632-1704) iria professar como uma prefiguração dos ideais iluministas: a aplicação de penas brandas e avaliadas conforme as circunstâncias, com o objetivo de recuperar o transgressor da lei para o convívio na sociedade. Foi apenas na segunda metade do século XVIII que o jurista milanês Cesare Beccaria (1738-1794) deu maior complexidade a esse ideal de tolerância, em uma obra que se tornou célebre, e que foi saudada com entusiasmo pelos filósofos do Iluminismo: Dos delitos e das penas.
No livro, Beccaria defendeu a proporcionalidade entre crime e castigo, e a preocupação com a reinserção social do delinqüente. A lógica de Beccaria era “punir para recuperar”, excluindo de vez a tortura, a mutilação, e outras práticas menos condizentes com os ideais humanitários da filosofia das Luzes. A regra básica a extrair das lições de Beccaria era a de que não se deveria mais punir pequenos furtos do mesmo modo que o assassinato.13Deste modo, as novas leis civis criariam penas em conformidade com a natureza específica do crime. Isso representaria o triunfo da liberdade, na medida em que desapareceriam dos processos os caprichos do legislador, quase sempre expressos pelo emprego dos já referidos “meios extraordinários”.
A HONRA E O HOMEM CIVILIZADO MODERNO
A Idade Moderna, apesar do conteúdo inovador do Renascimento, conservou valores e princípios supersticiosos e obscurantistas em diversas dimensões da realidade cotidiana, bem como no plano das idéias. Apenas muito lentamente foi se formando o indivíduo moderno, como o cortesão descrito por Baldassare Castiglioni (1478-1529), o homem de boas maneiras, sofisticado nos gestos, na linguagem e nas roupas.14
A igreja esforçouse para estabelecer uma educação severa, proibindo algumas manifestações, diferenciando o sagrado do profano. A partir dessas medidas, pequenos furtos (como mostra a imagem acima) e crimes passaram a serem vistos como errôneos
O novo homem que emergiu do processo civilizador da época moderna foi moldado pelas interdições do Estado absolutista às vinganças privadas, pelo incremento das embaixadas diplomáticas, pelo aparecimento dos manuais de boas maneiras – de que dá exemplo o humanista cristão Erasmo de Roterdã (1466-1536) – e por uma série de outros fatores. Montesquieu, por exemplo, percebeu esses movimentos de civilização dos costumes pelo ângulo das trocas entre as nações emergentes na Europa desde os inícios do século XVI. Ele diz: “não nos espantemos se nossos costumes são menos rudes que outrora. O comércio fez que o conhecimento dos costumes de todas as nações penetrasse em toda parte; compararam-se mutuamente e disso resultaram grandes benefícios”.15
O Leviatã – metáfora extraída da Bíblia pelo filósofo inglês Th omas Hobbes (1588-1679), para definir as novas funções do Estado moderno –, instaurou progressivamente a nova ordem pública e “decretou” o fim das desordens regionais, até então comumente expressas pelas revoltas camponesas, pelas rebeliões aristocráticas, pelas vinganças privadas, à revelia das leis civis. O avanço dos códigos civis modernos sobre os antigos costumes mandou nobres de alto coturno para o cadafalso. Como observa o historiador Robert Muchembled, à época dos reis absolutistas os nobres freqüentemente exprimiam, ainda, seu vínculo às leis da vingança, da honra e do sangue 16. O fato é que esse comportamento permitia- lhes diferenciar-se do universo burguês.
O duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos
Como afirmou Hobbes, no Leviatã, o julgamento de todas as controvérsias deveria passar a pertencer à soberania do Estado, exclusivamente; e não há leis de honra que possam desconsiderá- la, haja vista que, ao poder soberano compete, também com exclusividade, “... conceder os títulos de honra e decidir qual a ordem de lugar e dignidade cabe a cada um, assim como quais os sinais de respeito, nos encontros públicos ou privados, que devem manifestar uns para com os outros”.17 Ao que parece, Hobbes não considerava a honra como a simples expressão de uma prerrogativa de casta, definida por redes hierárquicas. A sua idéia de honra, em uma concepção filosófica que prevê a atuação de um poder que a todos mantém sob rédeas curtas, carrega uma dimensão cívica voltada para a preservação de uma necessária e altamente desejada ordem pública em uma época de guerras civis.
A ARTE DO DUELO
Retratado em obras como Os três mosqueteiros, o combate chegou a ser considerado crime de lesa-majestade
As origens do duelo são antigas. A palavra vem do latim duellum, uma contração de duo (dois) e bellum (guerra). De acordo com o historiador francês François Billacois, o duelo é “uma luta entre dois ou vários indivíduos (mas sempre com número igual de rivais de ambos os lados), igualmente armados, com o propósito de provar a verdade ou o valor de uma questão disputada, a coragem e a honra de cada combatente”. Para ter em mente, um dos exemplos mais célebres de um duelo é o combate entre Aquiles e Heitor durante a lendária guerra de Tróia, narrada pelo poeta Homero.
Durante a Idade Média, os duelos eram travados mais comumente em torneios por homens montados em cavalos. Ao longo dos séculos XVI e XVII, essas batalhas estiveram ligadas essencialmente à aristocracia. Nobres de todas as hierarquias decidiam suas querelas segundo o padrão de uma justiça que ficou conhecida como a “jurisprudência dos sabres”. Obras literárias como História de Gil Blas de Santillana, de Alain-René Lesage (1668-1747), eOs três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (1802-1870), são paradigmáticas deste tema.
Durante a Idade Moderna, o duelo tornou-se um combate organizado entre dois adversários, no qual o desafio era conhecido com antecedência. A definição do local do embate e das armas a serem utilizadas também eram aspectos previamente definidos. Travados na presença de testemunhas (também chamadas de “padrinhos”), normalmente em número de quatro pessoas, os duelos se prestavam à rápida resolução de lances de honra. A maior cruzada contra essa prática social foi desencadeada na época de Cardeal de Richelieu (1585-1642), primeiro-ministro do rei francês Luís XIII (1601-1643). O duelo passou a ser visto como afronta à autoridade dos tribunais e punido com a pena capital. Os duelos dizimavam a nobreza de sangue e, no reinado de Luís XIII, passaram a ser tipificados como crime de lesa-majestade. Mas apesar da ameaça de severos castigos, nem as leis seculares do Estado absolutista nem as interdições eclesiásticas conseguiram coibir tal fenômeno.
HONRA, DUELOS E LEIS
Foi no contexto da ascensão dos Estados modernos que os duelos passaram a ser percebidos pelo poder soberano como uma negação e, mais ainda, como uma afronta aberta à autoridade dos tribunais. Tratava-se de um desacato passível de punições exemplares. Com efeito, no reinado de Luís XIII, Cardeal de Richelieu (1585-1642) proibiu os duelos, com o estabelecimento da pena capital para os infratores da lei. Essa nova regra foi recebida em seu tempo como um atentado às antigas leis de nobreza – ao chamado “ponto de honra” ou “grito do sangue” –, em uma sociedade que tinha na bravura um de seus traços definidores.
Na imagem acima, a capa do livro Leviatã, do filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651. A obra remete ao monstro bíblico Leviatã. Seu nome completo é Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trata da estrutura da sociedade organizada
Sob esse aspecto, a força das tradições se revela em toda a sua potência, já que a nova legislação – atropelando costumes reconhecidos por gerações – ainda não possuía autoridade bastante para assegurar a obediência de uma nobreza ciosa de suas prerrogativas. Assim sendo, as leis civis do Estado monárquico – ele próprio uma novidade histórica – necessitaram de um longo tempo para se tornarem reconhecidas. Essas barreiras culturais, que se opõem vigorosamente à obra dos legisladores, não são novidades da Idade Moderna. Lendo a obra de um sábio da Antiguidade, aPolítica, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) – da qual a passagem acima poderia ser uma paráfrase –, percebe-se que entre leis consuetudinárias e leis civis, um clima de tensão quase sempre foi a regra.
O fato evidente é que o duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos, normalmente devido à urgência de um contendor em decidir a sua pendência. Ao longo do Antigo Regime, pontos de honra eram comumente solucionados pelo manejo de instrumentos de morte. Não havendo a possibilidade de reconhecimento de um árbitro superior que decidisse sobre o mérito da querela, a justiça da causa pendia para o lado vitorioso no embate. Até o século XVII, tendia-se a ver nos resultados dos conflitos uma interferência misteriosa, quando a questão estava verdadeiramente na maior ou menor habilidade dos contendores com as armas escolhidas. Disso se apercebera Montesquieu ao afirmar que a razão não pode assistir um homem simplesmente porque é mais forte ou mais destro do que outro.18
Em um tempo de violência até então consentida pelos poderes constituídos – devido principalmente à ineficácia do aparelho repressivo do Estado monárquico emergente –, mesmo no espaço interno das igrejas assistiam-se a duelos mortais, o que exigia um trabalho constante de reconsagração desses ambientes pelos bispos. Nas igrejas, ao longo do Antigo Regime, entrava-se até mesmo a cavalo. Como explicam alguns historiadores, havia uma menor sensibilidade do homem dos séculos XVI e XVII em diferenciar o sagrado do profano. Somente com os esforços continuados da Igreja, por meio de uma educação vigilante e de uma série de interditos contra as profanações do espírito bárbaro da época, foi que se modificaram progressivamente certos comportamentos coletivos, como a proibição de festas e danças nos cemitérios
As reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante
A morte, sempre à espreita, só era temida quando de natureza violenta, ceifando a vida sem a preparação prévia da agonia, que enseja ao cristão repensar os desvios da existência, para alcançar a paz de consciência. Como ressalta o historiador francês Robert Muchembled, em casos de mortes em duelos, a estratégia do moribundo era compensar a falta da extrema-unção pelo perdão incondicional do agressor.19
Pintura de Jörg Breu d. Jüngere e Paulus Hector Mair, intitulada Combate Judicial em Augsburg. Eram normais duelos mortais em forma de decisão judiciária
A HONRA E O CÓDIGO DOS CONFRONTOS
Apesar de proibidos desde o século XVII, no reinado de Luís XIII, no século XIX essa regra ainda estava bem viva, e foi realçada pelo escritor francês Stendhal (1783-1842) no romance O vermelho e o negro: “... o duelo não passa de uma cerimônia. Tudo já é sabido antecipadamente, mesmo o que devem dizer ao tombar. Estendidos sobre o gramado, com a mão no coração, devem ter um perdão generoso para o adversário...”.20 No mesmo sentido vai a reflexão do escritor britânico Joseph Conrad (1857-1924), ao considerar que “um duelo – seja considerado uma cerimônia de culto à honra, seja reduzido, em sua essência moral, a uma modalidade de esporte viril –, requer a absoluta sinceridade das intenções, uma homicida austeridade de ânimo”.21
A interdição dos duelos continuou encontrando críticos na posteridade. Para aproveitar uma vez mais a riqueza temática de Do espírito das leis, é preciso dizer que seu autor, Montesquieu, um aristocrata do sudoeste da França, que em seus textos sempre se mostrou favorável ao abrandamento dos costumes rudes, apontou a desproporcionalidade da força empregada contra a desobediência de seus pares às normas baixadas pelo Estado régio, sob a liderança de Richelieu: “Quando se fez passar, no século passado, as leis capitais contra os duelos, bastaria talvez despojar um guerreiro dessa sua qualidade pela perda da mão, não havendo comumente nada mais triste para os homens do que sobreviver à perda de seu ofício”.22 Segundo Montesquieu, a mutilação do corpo de um aristocrata, em vez de sua execução, teria gerado resultado mais eficaz de respeito à nova lei.
No século XVII, os reis absolutistas assemelharam-se a “paladinos” da moderna justiça emergente, ao desenvolverem instrumentos mais eficazes de punição aos duelistas, e ao aplicarem mais ativamente a força coercitiva do aparato governamental contra a justiça privada: “... sob o absolutismo, os nobres vão bater-se cada vez menos. Não é mera coincidência que vá florescer, então, a etiqueta: ela é o meio pelo qual os reis vão domesticar a honra, fazendo-a fluir do trono em vez da iniciativa individual”.23
Ao longo do Antigo Regime, as vinganças privadas foram um aspecto marcante das relações sociais. Os “gritos do sangue” não esperavam por uma justiça que só se fazia sentir tardiamente: exigiam uma reparação imediata. “Comparável à morte”, escreveu a historiadora francesa Arlette Farge, “a desonra é um tema comum nos textos sobre a civilidade dos séculos XVII e XVIII”.24
Quadro O Duelo, de Juan Antonio Gonzalez (1842-1914
A IMPORTÂNCIA DA HONRA E DOS CONFRONTOS
A simples sensação da honra ferida é uma tortura para um nobre personagem da obra História de Gil Blas de Santillana, de Lesage. Sem provas de uma grave infração cometida contra si, a ilustre figura aristocrática vive na tormenta de uma vaga suspeita de um crime de alcova. E o personagem se põe a cismar acerca de como são dolorosas as questões impostas pela honra.
A tolerância para com atitudes desonrosas era mínima ou mesmo nula. Como disse Lucien Febvre (1878-1956): “a honra (...) é uma força de ação e uma força que se afirma na ação e não na especulação. A honra engaja o homem na ação. Ela engaja imediatamente, totalmente, sem discussão ou tergiversação. A honra não espera. A honra não hesita”.25 Assim sendo, não havia tempo a perder esperando uma reabilitação da imagem pessoal ou familiar, cujos horizontes de possibilidades eram indeterminados. Então as reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante.
Como se referiu o fidalgo Don Alonso na peça de Molière, “a honra mortalmente ferida não pode ceder a considerações. A reflexão nos faz covardes. Se a ti te repugna emprestar o braço a esta ação, tens apenas de sair da frente, deixando só comigo a glória da reparação”.26
Em síntese, pode-se considerar que os duelos foram uma espécie de árbitro de uma elite aguerrida. Compunham a parte culminante das leis de nobreza do Antigo Regime constituindo-se em traço social diferenciador, pelo estabelecimento e fixação de distinções hierárquicas em uma época de muitas e sensíveis transformações. Mesmo perseguidos e alcançados pelas leis do Estado, os duelos permaneceram como um traço cultural atávico que, vindo de antigas tradições, estendeu-se no tempo e no espaço. Impulsionado pelos códigos de honra, há notícias de tais embates em regiões distantes da Europa, incluindo-se as Américas.27
REFERÊNCIAS
1 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 39.
2 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. p. 588.
3 CERVANTES, Miguel de. “A Senhora Cornélia”. In: ——. Novelas exemplares. São Paulo: Abril Cultural, 1970. p. 207.
4 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 53.
5 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 56.
6 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. p. 147. Considerada a partir da ficção literária, a honra feminina foi também retratada em muitas obras do século XIX. A título de informação, por se tratar de recentes leituras, lembro-me dos Contos italianos, de Gorki, e de A vendeta, de Balzac.
7 Cf. GORKI, Máximo. Contos italianos. Florianópolis: Garapuvu, 1998. p. 50.
8 ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 100.
9 Cf. DUBY, Georges. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques Le Goff & Pierre Nora. (Org.). ——. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 133.
10 MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UnB, 1981. p. 197.
11 MONTESQUIEU. Cartas persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. p. 167.
12 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 52.
13 Cf. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena Editora, 1959.
14 Cf. BURKE, Peter. As fortunas d’o cortesão. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
15 MONTESQUIEU. Op. cit., p. 283.
16 Cf. MUCHEMBLED, Robert. L’invention de l’homme moderne. Paris: Arthème Fayard, 1988.
17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 149s.
18 MONTESQUIEU. Cartas persas. Op. cit., p. 167.
19 Cf. MUCHEMBLED, Robert. Société, culture et mentalités dans la France Moderne. Paris: Armand Colin, 1993.
20 Cf. STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
21 CONRAD, Joseph. Os duelistas. Porto Alegre: L & PM, 2008. p. 23.
22 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. p. 436.
23 RIBEIRO, Renato Janine. “A honra e o sangue”. In: ——. A etiqueta no Antigo Regime. São Paulo: Moderna, 1999. p. 40.
24 FARGE, Arlette. “Famílias, a honra e o sigilo”. In: Roger Chartier. & Philippe Ariès. História da vida privada. p. 589.
25 FEBVRE, Lucien. “Honra para o moralista”. In: ——. Honra e pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 66.
26 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Op. cit., p. 75.
27 VER GAYOL, Sandra. Honor y duelo em la Argentina moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.
POR MARCOS ANTONIO LOPES
Honra à nobreza. Além de uma exigência, esse foi um dos grandes ideais da cultura nobiliárquica ao longo do Antigo Regime – governo que marcou a Europa durante a Idade Moderna (1453-1789). Acerca da glória e da reputação, um grande autor daquele tempo escreveu algumas observações esclarecedoras: Montesquieu (1689-1755) construiu uma teoria erudita sobre a honra, ainda que a tenha examinado a partir de um ângulo estritamente político. Ao analisar o princípio vital que moveria as ações dos indivíduos nos regimes políticos monárquicos, o filósofo francês considerou o sentimento da honra como o motor das ações aristocráticas.
A honra é a “paixão” dos súditos que compõem a nobreza nesse regime político; é a “mola” que os impulsiona sob o exercício do poder de um príncipe que observa as leis. Assim sendo, esse sentimento de grandeza, esplendor e glória existe no interior de uma monarquia como o próprio núcleo do sistema político e, para realizar-se plenamente, requer a atmosfera típica das sociedades aristocráticas, com suas cascatas de distinções, de precedências e de privilégios. No entanto, essa “mola”, essa “paixão”, é um anseio que cabe apenas a alguns poucos felizes. Montesquieu explicou que, no interior de uma monarquia tradicional – ou seja, não despótica –, a honra deriva de interesses particulares. Mas, ainda assim, tais interesses sempre levariam à realização do bem comum.
A HONRA NOS TEXTOS DE ÉPOCA
Com ou sem a presença de Montesquieu e de suas elevadas considerações filosóficas (autor que, diga-se de passagem, refletiu sobre a conduta virtuosa na condição de integrante da nobreza do sudoeste da França), é fácil observar como o anseio aristocrático da honra foi um dos temas mais recorrentes na literatura do Antigo Regime. E isso nos mais diferentes gêneros literários daquele tempo. Dos tardios romances de cavalaria, passando pelas peças teatrais e pelas obras eruditas de reflexão política (Do espírito das leis, de Montesquieu, por exemplo), para chegar aos livros de História e aos escritos poéticos, as reflexões sobre a honra ocupam um lugar central nos textos de época.
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O quadro O Duelo, de Leon Marie Dansaert (1830-1909), revela a importância dos combates sanguinolentos para promover a honra dos nobres em busca dos sentimentos de grandeza de uma monarquia
A idealização de um conjunto de normas, que guiaria o comportamento dos indivíduos pertencentes a um mesmo segmento social em cada passo de sua existência, poderia ser definida como a síndrome da nobreza, como uma espécie de obsessão de classe. Princípio regulador da vida social, a honra era também o motor que impulsionava as ações mais enérgicas, ou até mesmo heróicas, de indivíduos muito ciosos da posição que ocupavam no espaço hierárquico de uma sociedade estabelecida sobre os privilégios de sangue.
O sentimento arraigado da honra compunha a fachada principal do universo masculino. Mas o ideal de honra também existia para as mulheres, ligadas que estavam ao emaranhado de tradições do Antigo Regime, conjunto cultural de regras complexas e de numerosos interditos. Como diz a jovem e bela Carlota na peça de Molière (1622-1673), “eu preferia morrer a ser desonrada”1. Paradigmática do ideal de honradez feminina é El Cid, obra do escritor francês Pierre Corneille (1606-1684). El Cid é uma obra da primeira metade do século XVII e foi encenada no reinado de Luís XIII (1601-1643), tempo de intensos conflitos entre a nobreza e a realeza. Ambientada em um passado distante, no contexto das lutas entre cristãos e muçulmanos do século XI, o texto de Corneille revela muitos aspectos relativos à cultura da honra na França do século XVII. O homem da Idade Clássica, afirmou o historiador Philippe Ariès (1914-1984), tendia a conceber os tempos históricos de maneira sempre igual.
Como se sabe, em El Cid, a honra da família de Dom Rodrigo de Vivar (nobre guerreiro espanhol que viveu no século XI, também conhecido como El Cid e o campeador) foi ameaçada pelo pai de Climene, justamente a amada do herói da peça. Ao ver o pai morto por Dom Rodrigo em duelo, a heroína renuncia a desposá-lo. Essa é a parte dramática do enredo, na qual a figura da mulher se destaca em uma bem regulada encenação das leis de honra à l’Ancien Régime. Portanto, as questões relativas à submissão, à castidade, à fidelidade e a mais um rico conjunto de prendas que compunham o catálogo das virtudes da mulher ideal, também integravam a paisagem complexa dos sentimentos relativos à honra. Conscientes de tais valores estavam alguns dos mais atentos observadores daqueles velhos tempos, autores que tenderam a focar a coisa pelo prisma das leis estabelecidas pelos antigos costumes de suas respectivas sociedades.
A HONRA DAS DONZELAS
Mas com todos esses exemplos, não se pode esquecer de que quando o tema é a honra das mulheres, as Novelas exemplares, de Miguel de Cervantes (1547-1616), formam uma rica enciclopédia. Com efeito, trata-se de uma série de espantosas aventuras de donzelas atormentadas pela defesa da honra que perderam, ou que estão em vias de perder. A questão, no caso, vem a ser sempre a integridade daquele fruto mais sagrado e por vezes incandescente que elas reservam apenas aos cavalheiros mais ilustres que têm a felicidade de gozar de suas mercês. Contudo, ocorre que por vezes esses briosos mancebos de altíssima estirpe, quando saídos das altas temperaturas, se esquecem de cumprir com a palavra empenhada. É quando as “pombas ingênuas” reconhecem-se apanhadas pela lábia de mestres formados na velha ciência da velhacaria. A aflição gera correria, desencontros, mal-entendidos, e a defesa da honra arrasta amantes, pais, irmãos e demais parentes direto aos hospitais ou aos cemitérios. Como bem percebera o romancista francês Alain-René Lesage (1668-1747), exímio conhecedor das tradições ibéricas: “o amor tem grande império sobre os espanhóis; porém a honra tem ainda mais”.2
" E, claro, duelos são travados com o propósito de que alguém seja, SE NÃO MORTO, AO MENOS FERIDO "
Joseph Conrad
Na fatídica história do espanhol El Cid, o jovem guerreiro tem a honra da sua família ameaçada pelo pai de sua amada. O herói da peça opta por manter o nome da família e mata seu futuro sogro e, conseqüentemente, perde o amor de sua prometida
Ora, as manchas da honra precisavam ser lavadas com o sangue dos malfeitores, a golpes de espada, de punhal ou de qualquer outro eficaz instrumento, porque a nobreza do sangue exigia ou a reparação imediata ou a vingança sem mais perda de tempo. “Quanto mais depressa melhor”, disse o fidalgo espanhol D. Juan de Gamboa diante do agravo feito contra a honra de Dona Cornélia, “porque o ferro deve ser malhado enquanto está quente, o ardor da cólera aumenta a coragem e a injúria recente estimula a vingança”.3
Em A força do sangue, texto também integrante da série de novelas cervantinas, o ideal da honra feminina atinge alturas difíceis de serem igualadas. Para citar uma troça do próprio Cervantes, aqui a honra feminina situa-se “a 10 milhas acima das nuvens”. A dramática história de Leocádia, a heroína parcialmente desventurada da peça, gira em torno dos episódios extraordinários que, como desencadeados magicamente, envolvem a ruína completa e a total restauração de sua honra, perdida e reencontrada nos braços do fidalgo D. Rodolfo.
Desonrada, a bela Leocádia se vê na triste condição de acobertar a injúria que sofreu porque não pôde queixar-se publicamente de sua condição: simplesmente desconhece aquele que foi o autor da perda de sua dignidade. Como bem parece pontuar o ficcionista, no que revela o aterramento histórico de sua literatura, o ethos aristocrático interdita a informação do episódio da violação da jovem Leocádia à justiça. Divulgar agravo de tal natureza era a maneira mais rápida e eficaz para aviltar uma família inteira. Diante da desonra consumada e da impossibilidade da reparação a quente, caberia apenas um silêncio prudente, “... pois é melhor a desonra que se ignora do que a honra exposta à opinião dos outros”.4 Dito em outros termos, “... mais ofende um grama de desonra pública do que uma arroba de infâmia secreta”.5
Incontáveis são as demais lições acerca da honradez do sexo frágil na obra do autor de Dom Quixote. Para encurtar os exemplos, muitíssimo numerosos, vale lembrar a novela intitulada O ciumento, porque é aqui que a compulsão pelo valor da honra toca as raias da obsessão. O personagem Filipe de Carrizales, velho rico e aposentado, decide escolher por esposa uma bela jovem de 15 anos. Casado, ele emprega parte de sua fortuna para fazer de sua casa uma fortaleza, destinada principalmente a impedir a aproximação de homens. Debaixo de seu teto, a virgindade é a primeira condição de suas servidoras, a comunicação com o mundo exterior se faz por meio de uma roda de convento e até a criação de animais machos está proibida.
Não havia ultrajes maiores do que aqueles que atingiam a honra. O mais terrível para os homens era mexer com suas mulheres
Obra de Jean Auguste Dominique Ingres (1780 –1867), intitulada Gianciotto descobre Paolo e Francesca. Ilustra como, até o século XIX, contos e novelas enalteciam a vergonha e a desonra em ter a mulher seduzida por outro homem
Naturalmente, o enredo da história desenrolase no sentido de revelar a trágica ineficácia de tão redobrados cuidados para a preservação da honra. Cervantes conclui, exemplarmente, que não bastam trancas e muralhas quando entram em cena certos engenhos da curiosidade feminina, aliás, muito bem-sucedidos para burlar tão cerrada interdição. É assim que os cercos são furados, as fortalezas despedaçadas e a honra mais do que ameaçada. Como disse Lesage acerca de certas benevolências das “sentinelas da honestidade”, quando há algum talento e ousadia, sempre é possível lograr a acomodação do vício com a reputação da virtude, a conciliação dos sentidos com a aparência do recato.6
A HONRA NA PONTA DA ESPADA
Escritores políticos quinhentistas como Maquiavel (1469-1527) e Jean Bodin (1530-1596) lançaram interditos aos próprios príncipes de seu tempo, no sentido de observarem uma conduta muito respeitosa para com as mulheres de seus súditos. Mézeray (1610-1683), influente historiador seiscentista francês, que teve sua obra histórica publicada até o século XIX, alertava seus contemporâneos para o mesmo problema ao sentenciar que não havia ultrajes maiores do que aqueles que atingiam a honra e, dentre estes, o mais terrível para os homens era mexer com suas mulheres. De fato, há muitos traços na literatura de época que evidenciam a indignação dos homens diante de tal circunstância.
Uma das cenas centrais da obra ficcional de Chordelos de Laclos (1741-1803), Ligações perigosas, que nem por isso deixa de ser representativa de aspectos da realidade cultural, retrata uma fatal cena de duelo entre o visconde de Valmont e o cavaleiro Danceny. Como motivo dessa jurisprudência de armas estava, naturalmente, a honra ultrajada de uma donzela. Em Don Juan, Molière descreve a fúria indignada do camponês Pierrô diante da sedução, pelo protagonista da história, de sua prometida, a belíssima Carlota.
Ainda que se tratasse de um aristocrata de alto coturno – considerando-se todas as distâncias reais e simbólicas presentes em uma sociedade marcada pelo privilégio –, o humilde camponês não se intimida em dirigir-lhe uma série de impropérios, em meio aos quais vai sendo mimoseado com vigorosos bofetões por parte do nobre sedutor. Isso para afirmar que o tema da honra no Antigo Regime pode revelar aspectos muitíssimo variados. Aqui interessa centrar a discussão em matizes relativos ao término gradativo dos antigos códigos de honra, a partir de uma presença mais eficaz e reguladora do poder político e das leis civis em franca ascensão.
Na época do Antigo Regime os duelos eram tidos como o ultimato em nome da honra. A vitória em batalha simbolizava a conquista da razão do embate, ou seja, entre os antagonistas havia uma incógnita que os levava a duelar, e estaria certo aquele que vencesse a disputa
Como se sabe, ao longo do Antigo Regime, o duelo era a “última razão” nos casos de honras abaladas, algo como o “poder judiciário” naquele campo em que predominavam as leis de nobreza. Era um instrumento que permitia restaurar prontamente uma reputação desfeita, fosse individual ou familiar, porque “a inteligência do homem está no coração”, lembra a propósito Máximo Gorki (1868-1936) em suas reflexões acerca da honra.7
A ação honrosa, apesar dos riscos fatais implicados, era orientada pelo preceito de que uma atitude valorosa seria executada. A sublimidade dos fins justificaria os meios violentos empregados. Acima de tudo, estava o sentimento do dever cumprido porque, no duelo, a solução das controvérsias é confiada às armas. O triunfo provará a justiça de uma causa entre antagonistas que não admitem nenhum árbitro acima deles. Apenas a vitória será um critério justo para estabelecer de que lado está a razão.
A pintura de Max Slevogt (1868 – 1932) descreve a cena em que Don Giovanni intimida o inimigo. Leporello se esconde atrás dele
A HONRA COMO FORÇA DA TRADIÇÃO
Ao tempo dos reis absolutistas, o exercício de um antigo sistema judiciário, que orientava e respaldava a prática de justiças privadas, baseadas fundamentalmente na honra, ainda escapava ao controle e à punição dos núcleos centrais do poder oficial. A prática de tal justiça, à revelia dos poderes constituídos, é exemplo da força tradicional de costumes arraigados ao longo de séculos, contrapondo-se à emergência das novas leis civis impostas pelo Estado monárquico ascendente. Naqueles tempos, acreditava-se mais nas coisas na medida em que eram mais antigas.
Essas coisas passadas veneráveis tornavam-se tradições tanto mais respeitáveis, escreveu Montesquieu, quanto mais as suas origens se perdiam em remotas antiguidades. Quase tudo tinha como fundamento uma tradição, uma lembrança do passado, um princípio de validade determinado pela antiguidade dos usos e costumes. “Nada vale o que já foi”, escreveu o historiador Philippe Ariès, e “uma falta contra o antigo costume é uma inovação perigosa”.8
As sociedades do Antigo Regime viviam sob o temor das novidades, cujas infiltrações perniciosas poderiam resultar na ruptura dos equilíbrios desejáveis. Daí o fechamento de tais sociedades em uma “carapaça de costumes”, segundo a expressão de Georges Duby (1919-1996), em atitudes conservadoras que se fossilizavam sob o manto protetor e apaziguador de antigas sabedorias, das quais os mais velhos eram os guardiões reconhecidos 9. Um escritor político como Maquiavel, que pouco sofreu de nostalgia do passado – apesar dos recorrentes elogios aos antigos romanos, “pela virtude que reinava naqueles tempos”10 –, nem por isso deixou de alertar para o perigo de se promulgar leis que se chocassem contra os costumes tradicionais.
Miniatura das Cerimônias das batalhas de Gages, manuscrito do século XV, na Biblioteca Nacional de Paris. Simbolizavam os duelos judiciais
O empenho da nobreza do Antigo Regime em preservar a reputação conferida por títulos honoríficos, pelas posições sociais, pelos nomes de família e por outros valores morais, em um tempo em que eram muito acentuadas as convicções acerca de sua própria dignidade, dava freqüentemente origem a combates mortais. As leis civis existentes não previam crimes contra a honra, e as questões entre as partes envolvidas em um conflito dessa natureza acabavam dirimidas pela jurisprudência dos “expedientes extraordinários”: as armas, a força e a violência, segundo a terminologia de Maquiavel.
Como notou Montesquieu, um atento observador dos costumes daqueles tempos: “sempre que se tratava de regularizar as questões, não prescreviam quase mais que uma maneira de decidir, que era o duelo, o qual cortava todas as dificuldades; (...) Proibiram-no os reis sob as mais severas penas, mas em vão, porque a honra, que sempre quer imperar, se subleva, e desobedece a lei. De sorte que se acham os franceses em um estado muito violento, porque as mesmas leis de honra obrigam a que se vingue um homem que a tem; mas, por outro lado, quando se vinga, castiga- o a justiça com as mais rigorosas penas”.11
A HONRA CONTRA O DESPOTISMO
Entretanto, há de se relativizar a identificação do Ancien Régime com o império exclusivo da força bruta. Elementos que compunham o sistema cultural da época, como, por exemplo, certas leis de nobreza, muitas vezes atuaram como barreiras naturais contra o arbítrio. Atento observador, Montesquieu fez referência a dois episódios da história da França, ocorridos no tempo de Montaigne (1533-1592), nos quais a honra atuou como freio moral eficaz contra o despotismo, contra a crueldade e, inclusive, contra o fanatismo religioso que foi, sem dúvida, o traço predominante do século XVI.
Como lemos em Do espírito das leis, “Crillon recusou-se a assassinar o Duque de Guise, mas se ofereceu a Henrique III para bater-se contra ele. Depois da noite de São Bartolomeu, tendo Carlos IX determinado a todos os governadores que exterminassem os huguenotes, o Visconde d’Orte, que governava na Bayonne, escreveu ao rei: ‘Sire, encontrei entre os habitantes e militares apenas bons cidadãos e valentes soldados e nenhum carrasco; assim, eu e eles suplicamos a Vossa Majestade empregar nossos braços e nossas vidas em coisas factíveis’”.12
E Montesquieu extrai dessa “grande e generosa coragem” dos súditos – a ponto de se interporem diante da ordem de um rei colérico e com sede de sangue – a seguinte lição: o sentimento da honra, que é o “princípio”, ou a “mola”, que predomina em uma monarquia, leva os súditos a considerar impossível a prática da covardia. E prossegue Montesquieu: é nobre, é prestigioso servir ao príncipe na guerra, e todas as ações referentes a isso levam à grandeza, mesmo quando ocorrem reveses. Mas a própria honra, que impõe essas leis de nobreza, ao ser violada, permite uma reação negativa diante do que não condiz com os seus valores.
Montesquieu pensava os duelos como uma maneira objetiva de se tratar as irregularidades de questões, pois anulava qualquer burocracia
Em oposição a essas singularidades do Antigo Regime, cabe considerar que não chegara ainda o tempo de se pensar naquilo que o filósofo inglês John Locke (1632-1704) iria professar como uma prefiguração dos ideais iluministas: a aplicação de penas brandas e avaliadas conforme as circunstâncias, com o objetivo de recuperar o transgressor da lei para o convívio na sociedade. Foi apenas na segunda metade do século XVIII que o jurista milanês Cesare Beccaria (1738-1794) deu maior complexidade a esse ideal de tolerância, em uma obra que se tornou célebre, e que foi saudada com entusiasmo pelos filósofos do Iluminismo: Dos delitos e das penas.
No livro, Beccaria defendeu a proporcionalidade entre crime e castigo, e a preocupação com a reinserção social do delinqüente. A lógica de Beccaria era “punir para recuperar”, excluindo de vez a tortura, a mutilação, e outras práticas menos condizentes com os ideais humanitários da filosofia das Luzes. A regra básica a extrair das lições de Beccaria era a de que não se deveria mais punir pequenos furtos do mesmo modo que o assassinato.13Deste modo, as novas leis civis criariam penas em conformidade com a natureza específica do crime. Isso representaria o triunfo da liberdade, na medida em que desapareceriam dos processos os caprichos do legislador, quase sempre expressos pelo emprego dos já referidos “meios extraordinários”.
A HONRA E O HOMEM CIVILIZADO MODERNO
A Idade Moderna, apesar do conteúdo inovador do Renascimento, conservou valores e princípios supersticiosos e obscurantistas em diversas dimensões da realidade cotidiana, bem como no plano das idéias. Apenas muito lentamente foi se formando o indivíduo moderno, como o cortesão descrito por Baldassare Castiglioni (1478-1529), o homem de boas maneiras, sofisticado nos gestos, na linguagem e nas roupas.14
A igreja esforçouse para estabelecer uma educação severa, proibindo algumas manifestações, diferenciando o sagrado do profano. A partir dessas medidas, pequenos furtos (como mostra a imagem acima) e crimes passaram a serem vistos como errôneos
O novo homem que emergiu do processo civilizador da época moderna foi moldado pelas interdições do Estado absolutista às vinganças privadas, pelo incremento das embaixadas diplomáticas, pelo aparecimento dos manuais de boas maneiras – de que dá exemplo o humanista cristão Erasmo de Roterdã (1466-1536) – e por uma série de outros fatores. Montesquieu, por exemplo, percebeu esses movimentos de civilização dos costumes pelo ângulo das trocas entre as nações emergentes na Europa desde os inícios do século XVI. Ele diz: “não nos espantemos se nossos costumes são menos rudes que outrora. O comércio fez que o conhecimento dos costumes de todas as nações penetrasse em toda parte; compararam-se mutuamente e disso resultaram grandes benefícios”.15
O Leviatã – metáfora extraída da Bíblia pelo filósofo inglês Th omas Hobbes (1588-1679), para definir as novas funções do Estado moderno –, instaurou progressivamente a nova ordem pública e “decretou” o fim das desordens regionais, até então comumente expressas pelas revoltas camponesas, pelas rebeliões aristocráticas, pelas vinganças privadas, à revelia das leis civis. O avanço dos códigos civis modernos sobre os antigos costumes mandou nobres de alto coturno para o cadafalso. Como observa o historiador Robert Muchembled, à época dos reis absolutistas os nobres freqüentemente exprimiam, ainda, seu vínculo às leis da vingança, da honra e do sangue 16. O fato é que esse comportamento permitia- lhes diferenciar-se do universo burguês.
O duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos
Como afirmou Hobbes, no Leviatã, o julgamento de todas as controvérsias deveria passar a pertencer à soberania do Estado, exclusivamente; e não há leis de honra que possam desconsiderá- la, haja vista que, ao poder soberano compete, também com exclusividade, “... conceder os títulos de honra e decidir qual a ordem de lugar e dignidade cabe a cada um, assim como quais os sinais de respeito, nos encontros públicos ou privados, que devem manifestar uns para com os outros”.17 Ao que parece, Hobbes não considerava a honra como a simples expressão de uma prerrogativa de casta, definida por redes hierárquicas. A sua idéia de honra, em uma concepção filosófica que prevê a atuação de um poder que a todos mantém sob rédeas curtas, carrega uma dimensão cívica voltada para a preservação de uma necessária e altamente desejada ordem pública em uma época de guerras civis.
A ARTE DO DUELO
Retratado em obras como Os três mosqueteiros, o combate chegou a ser considerado crime de lesa-majestade
As origens do duelo são antigas. A palavra vem do latim duellum, uma contração de duo (dois) e bellum (guerra). De acordo com o historiador francês François Billacois, o duelo é “uma luta entre dois ou vários indivíduos (mas sempre com número igual de rivais de ambos os lados), igualmente armados, com o propósito de provar a verdade ou o valor de uma questão disputada, a coragem e a honra de cada combatente”. Para ter em mente, um dos exemplos mais célebres de um duelo é o combate entre Aquiles e Heitor durante a lendária guerra de Tróia, narrada pelo poeta Homero.
Durante a Idade Média, os duelos eram travados mais comumente em torneios por homens montados em cavalos. Ao longo dos séculos XVI e XVII, essas batalhas estiveram ligadas essencialmente à aristocracia. Nobres de todas as hierarquias decidiam suas querelas segundo o padrão de uma justiça que ficou conhecida como a “jurisprudência dos sabres”. Obras literárias como História de Gil Blas de Santillana, de Alain-René Lesage (1668-1747), eOs três mosqueteiros, de Alexandre Dumas (1802-1870), são paradigmáticas deste tema.
Durante a Idade Moderna, o duelo tornou-se um combate organizado entre dois adversários, no qual o desafio era conhecido com antecedência. A definição do local do embate e das armas a serem utilizadas também eram aspectos previamente definidos. Travados na presença de testemunhas (também chamadas de “padrinhos”), normalmente em número de quatro pessoas, os duelos se prestavam à rápida resolução de lances de honra. A maior cruzada contra essa prática social foi desencadeada na época de Cardeal de Richelieu (1585-1642), primeiro-ministro do rei francês Luís XIII (1601-1643). O duelo passou a ser visto como afronta à autoridade dos tribunais e punido com a pena capital. Os duelos dizimavam a nobreza de sangue e, no reinado de Luís XIII, passaram a ser tipificados como crime de lesa-majestade. Mas apesar da ameaça de severos castigos, nem as leis seculares do Estado absolutista nem as interdições eclesiásticas conseguiram coibir tal fenômeno.
HONRA, DUELOS E LEIS
Foi no contexto da ascensão dos Estados modernos que os duelos passaram a ser percebidos pelo poder soberano como uma negação e, mais ainda, como uma afronta aberta à autoridade dos tribunais. Tratava-se de um desacato passível de punições exemplares. Com efeito, no reinado de Luís XIII, Cardeal de Richelieu (1585-1642) proibiu os duelos, com o estabelecimento da pena capital para os infratores da lei. Essa nova regra foi recebida em seu tempo como um atentado às antigas leis de nobreza – ao chamado “ponto de honra” ou “grito do sangue” –, em uma sociedade que tinha na bravura um de seus traços definidores.
Na imagem acima, a capa do livro Leviatã, do filósofo inglês Thomas Hobbes, publicado em 1651. A obra remete ao monstro bíblico Leviatã. Seu nome completo é Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil, trata da estrutura da sociedade organizada
Sob esse aspecto, a força das tradições se revela em toda a sua potência, já que a nova legislação – atropelando costumes reconhecidos por gerações – ainda não possuía autoridade bastante para assegurar a obediência de uma nobreza ciosa de suas prerrogativas. Assim sendo, as leis civis do Estado monárquico – ele próprio uma novidade histórica – necessitaram de um longo tempo para se tornarem reconhecidas. Essas barreiras culturais, que se opõem vigorosamente à obra dos legisladores, não são novidades da Idade Moderna. Lendo a obra de um sábio da Antiguidade, aPolítica, de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) – da qual a passagem acima poderia ser uma paráfrase –, percebe-se que entre leis consuetudinárias e leis civis, um clima de tensão quase sempre foi a regra.
O fato evidente é que o duelo servia para solucionar controvérsias não passíveis de serem resolvidas por meios pacíficos, normalmente devido à urgência de um contendor em decidir a sua pendência. Ao longo do Antigo Regime, pontos de honra eram comumente solucionados pelo manejo de instrumentos de morte. Não havendo a possibilidade de reconhecimento de um árbitro superior que decidisse sobre o mérito da querela, a justiça da causa pendia para o lado vitorioso no embate. Até o século XVII, tendia-se a ver nos resultados dos conflitos uma interferência misteriosa, quando a questão estava verdadeiramente na maior ou menor habilidade dos contendores com as armas escolhidas. Disso se apercebera Montesquieu ao afirmar que a razão não pode assistir um homem simplesmente porque é mais forte ou mais destro do que outro.18
Em um tempo de violência até então consentida pelos poderes constituídos – devido principalmente à ineficácia do aparelho repressivo do Estado monárquico emergente –, mesmo no espaço interno das igrejas assistiam-se a duelos mortais, o que exigia um trabalho constante de reconsagração desses ambientes pelos bispos. Nas igrejas, ao longo do Antigo Regime, entrava-se até mesmo a cavalo. Como explicam alguns historiadores, havia uma menor sensibilidade do homem dos séculos XVI e XVII em diferenciar o sagrado do profano. Somente com os esforços continuados da Igreja, por meio de uma educação vigilante e de uma série de interditos contra as profanações do espírito bárbaro da época, foi que se modificaram progressivamente certos comportamentos coletivos, como a proibição de festas e danças nos cemitérios
As reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante
A morte, sempre à espreita, só era temida quando de natureza violenta, ceifando a vida sem a preparação prévia da agonia, que enseja ao cristão repensar os desvios da existência, para alcançar a paz de consciência. Como ressalta o historiador francês Robert Muchembled, em casos de mortes em duelos, a estratégia do moribundo era compensar a falta da extrema-unção pelo perdão incondicional do agressor.19
Pintura de Jörg Breu d. Jüngere e Paulus Hector Mair, intitulada Combate Judicial em Augsburg. Eram normais duelos mortais em forma de decisão judiciária
A HONRA E O CÓDIGO DOS CONFRONTOS
Apesar de proibidos desde o século XVII, no reinado de Luís XIII, no século XIX essa regra ainda estava bem viva, e foi realçada pelo escritor francês Stendhal (1783-1842) no romance O vermelho e o negro: “... o duelo não passa de uma cerimônia. Tudo já é sabido antecipadamente, mesmo o que devem dizer ao tombar. Estendidos sobre o gramado, com a mão no coração, devem ter um perdão generoso para o adversário...”.20 No mesmo sentido vai a reflexão do escritor britânico Joseph Conrad (1857-1924), ao considerar que “um duelo – seja considerado uma cerimônia de culto à honra, seja reduzido, em sua essência moral, a uma modalidade de esporte viril –, requer a absoluta sinceridade das intenções, uma homicida austeridade de ânimo”.21
A interdição dos duelos continuou encontrando críticos na posteridade. Para aproveitar uma vez mais a riqueza temática de Do espírito das leis, é preciso dizer que seu autor, Montesquieu, um aristocrata do sudoeste da França, que em seus textos sempre se mostrou favorável ao abrandamento dos costumes rudes, apontou a desproporcionalidade da força empregada contra a desobediência de seus pares às normas baixadas pelo Estado régio, sob a liderança de Richelieu: “Quando se fez passar, no século passado, as leis capitais contra os duelos, bastaria talvez despojar um guerreiro dessa sua qualidade pela perda da mão, não havendo comumente nada mais triste para os homens do que sobreviver à perda de seu ofício”.22 Segundo Montesquieu, a mutilação do corpo de um aristocrata, em vez de sua execução, teria gerado resultado mais eficaz de respeito à nova lei.
No século XVII, os reis absolutistas assemelharam-se a “paladinos” da moderna justiça emergente, ao desenvolverem instrumentos mais eficazes de punição aos duelistas, e ao aplicarem mais ativamente a força coercitiva do aparato governamental contra a justiça privada: “... sob o absolutismo, os nobres vão bater-se cada vez menos. Não é mera coincidência que vá florescer, então, a etiqueta: ela é o meio pelo qual os reis vão domesticar a honra, fazendo-a fluir do trono em vez da iniciativa individual”.23
Ao longo do Antigo Regime, as vinganças privadas foram um aspecto marcante das relações sociais. Os “gritos do sangue” não esperavam por uma justiça que só se fazia sentir tardiamente: exigiam uma reparação imediata. “Comparável à morte”, escreveu a historiadora francesa Arlette Farge, “a desonra é um tema comum nos textos sobre a civilidade dos séculos XVII e XVIII”.24
Quadro O Duelo, de Juan Antonio Gonzalez (1842-1914
A IMPORTÂNCIA DA HONRA E DOS CONFRONTOS
A simples sensação da honra ferida é uma tortura para um nobre personagem da obra História de Gil Blas de Santillana, de Lesage. Sem provas de uma grave infração cometida contra si, a ilustre figura aristocrática vive na tormenta de uma vaga suspeita de um crime de alcova. E o personagem se põe a cismar acerca de como são dolorosas as questões impostas pela honra.
A tolerância para com atitudes desonrosas era mínima ou mesmo nula. Como disse Lucien Febvre (1878-1956): “a honra (...) é uma força de ação e uma força que se afirma na ação e não na especulação. A honra engaja o homem na ação. Ela engaja imediatamente, totalmente, sem discussão ou tergiversação. A honra não espera. A honra não hesita”.25 Assim sendo, não havia tempo a perder esperando uma reabilitação da imagem pessoal ou familiar, cujos horizontes de possibilidades eram indeterminados. Então as reparações tinham de ser cobradas no calor da hora, na seqüência das injúrias cometidas pelo desafiante.
Como se referiu o fidalgo Don Alonso na peça de Molière, “a honra mortalmente ferida não pode ceder a considerações. A reflexão nos faz covardes. Se a ti te repugna emprestar o braço a esta ação, tens apenas de sair da frente, deixando só comigo a glória da reparação”.26
Em síntese, pode-se considerar que os duelos foram uma espécie de árbitro de uma elite aguerrida. Compunham a parte culminante das leis de nobreza do Antigo Regime constituindo-se em traço social diferenciador, pelo estabelecimento e fixação de distinções hierárquicas em uma época de muitas e sensíveis transformações. Mesmo perseguidos e alcançados pelas leis do Estado, os duelos permaneceram como um traço cultural atávico que, vindo de antigas tradições, estendeu-se no tempo e no espaço. Impulsionado pelos códigos de honra, há notícias de tais embates em regiões distantes da Europa, incluindo-se as Américas.27
REFERÊNCIAS
1 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Porto Alegre: L&PM, 1997. p. 39.
2 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1999. p. 588.
3 CERVANTES, Miguel de. “A Senhora Cornélia”. In: ——. Novelas exemplares. São Paulo: Abril Cultural, 1970. p. 207.
4 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 53.
5 CERVANTES, Miguel de. “A força do sangue”. In: ——. Novelas exemplares. Op. cit., p. 56.
6 Cf. LESAGE, Alain-René. História de Gil Blas de Santillana. p. 147. Considerada a partir da ficção literária, a honra feminina foi também retratada em muitas obras do século XIX. A título de informação, por se tratar de recentes leituras, lembro-me dos Contos italianos, de Gorki, e de A vendeta, de Balzac.
7 Cf. GORKI, Máximo. Contos italianos. Florianópolis: Garapuvu, 1998. p. 50.
8 ARIÈS, Philippe. O tempo da História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989. p. 100.
9 Cf. DUBY, Georges. “História social e ideologias das sociedades”. In: Jacques Le Goff & Pierre Nora. (Org.). ——. História. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978. p. 133.
10 MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Editora UnB, 1981. p. 197.
11 MONTESQUIEU. Cartas persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960. p. 167.
12 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979. p. 52.
13 Cf. BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Atena Editora, 1959.
14 Cf. BURKE, Peter. As fortunas d’o cortesão. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
15 MONTESQUIEU. Op. cit., p. 283.
16 Cf. MUCHEMBLED, Robert. L’invention de l’homme moderne. Paris: Arthème Fayard, 1988.
17 HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Nova Cultural, 2004. p. 149s.
18 MONTESQUIEU. Cartas persas. Op. cit., p. 167.
19 Cf. MUCHEMBLED, Robert. Société, culture et mentalités dans la France Moderne. Paris: Armand Colin, 1993.
20 Cf. STENDHAL. O vermelho e o negro. São Paulo: Abril Cultural, 1981.
21 CONRAD, Joseph. Os duelistas. Porto Alegre: L & PM, 2008. p. 23.
22 MONTESQUIEU. Do espírito das leis. p. 436.
23 RIBEIRO, Renato Janine. “A honra e o sangue”. In: ——. A etiqueta no Antigo Regime. São Paulo: Moderna, 1999. p. 40.
24 FARGE, Arlette. “Famílias, a honra e o sigilo”. In: Roger Chartier. & Philippe Ariès. História da vida privada. p. 589.
25 FEBVRE, Lucien. “Honra para o moralista”. In: ——. Honra e pátria. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 66.
26 MOLIÈRE. Don Juan: o convidado de pedra. Op. cit., p. 75.
27 VER GAYOL, Sandra. Honor y duelo em la Argentina moderna. Buenos Aires: Siglo XXI, 2008.
Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/18/artigo130568-6.asp