12.8.19
O Esquecido e o Lembrado na História da Guerra do Paraguai
Por Mário Maestri
Para reconstruir o passado, o historiador seleciona, hierarquiza e dá sentido a fatos históricos. Um processo que permite a historiografia aproximar-se ou afastar-se de seu objeto, ou seja, a reconstituição-explicação essencial dos fenômenos pretéritos. No primeiro caso, a historiografia constrói-se como ciência, nos limites que lhe são próprios. No segundo, apresenta-se como simples ideologia, isto é, desvio do sentido objetivo dos fatos determinado por intencionalidades conscientes, semi-conscientes ou inconscientes.
A historiografia é prática social que luta por sua construção como ciência no contexto do refinamento de suas técnicas e de seus métodos, embalada sempre pela incessante oposição entre os interesses sociais inevitavelmente antagônicos. Essas contradições explícitas entre narrativas de orientação científica e discursos de vieses ideológicos dão-se comumente em torno dos mesmos sucessos e a partir da mesma base documental, em claro paradoxo.
Toda narrativa historiográfica busca assumir posição social dominante, transformando-se em leitura hegemônica do passado, através da dominação, deslocamento e silenciamento das narrativas opostas, dissidentes e concorrentes. Vitória no campo das representações historiográficas que resulta habitualmente em não desprezíveis prebendas materiais e imateriais aos narradores que alcançam impor suas interpretações.
Mais comumente, o sucesso pleno ou parcial no confronto historiográfico não se conquista no contexto da solução da oposição dialógica e dialética entre as leituras em disputa, através da consolidação e legitimação das interpretações que mais se aproximem da essencialidade dos fatos. A historiografia dominante é também habitualmente a historiografia das classes dominantes. O que não resta a importância performativa da construção da historiografia como ciência e das constituição das contradições historiográficas.
Habitualmente, apesar da força imanente da busca mesmo tendencial da essência dos fenômenos, a maior ou menor legitimação de uma narrativa historiográfica é decidida pela maior ou menor força das classes sociais nelas interessadas. Não raro, por ter força para tal, a legitimação de uma leitura do passado se impõe literalmente através do amordaçamento dos seus principais oponentes. Nessa estranha disputa, o peso da aposta, no guichê, avança o jóquei e a sua montaria, na pista.
A grande guerra que ensanguentou a bacia do Prata de 1864 a 1870 foi questão histórica referencial e objetivamente determinante do agir do Estado imperial brasileiro nas suas últimas décadas de existência. Através daquele conflito militar, o Império do Brasil impôs sua hegemonia sobre aquela importante região, com desdobramentos e sequelas, exteriores e interiores, herdados pelo Estado republicano brasileiro, muitos dos quais se mantém até os dias de hoje.
No Brasil, por mais de um século, aqueles trágicos sucessos do Prata foram campo de caça privado de uma verdadeira proto-historiografia castrense, na versão mais comedida e qualificada da “história militar crítica”, com destaque para História da Guerra entre a Tríplice Aliança e o Paraguai, do general Tasso Fragoso, de 1934, ou nas narrativas fantasiosas e desbragadas do nacional-patriotismo. Nos últimos anos, o tema tem sido abordado por estudos de vocação acadêmica, não raro bafejados pelas mesmas injunções que condicionaram os estudos fundacionais sobre ele.
Ontem e hoje, as narrativas plenamente dominantes no Brasil sobre a grande guerra do Prata perfilharam a tese da total inocência do Estado imperial brasileiro naqueles sucessos. O Brasil teria sido atacado vilmente, em momento de plena paz, no sul do Mato Grosso e no oeste do Rio Grande do Sul pela tropas paraguaias, então sob o tacão de ferro de Francisco Solano López, ditador inebriado por desmedidos sonhos de hegemonia e de conquista no sul da América.
Nesse processo, determinou-se comumente como o marco zero do início da guerra a captura do paquete imperial Marquês de Olinda, em 12 de novembro de 1864, tendo a bordo o destinado presidente da província do Mato Grosso, sem qualquer declaração de guerra entre os dois países. Avançou-se e avança-se igualmente que jamais o Estado imperial teria tido predisposições belicosas contra a nação mediterrânea hispano-americana, ou contra qualquer outra, com destaque para o Uruguai.
Também a leitura interessada dos sucessos platinos de 1864-70 foi e é construída através do tradicional processo de selecionar, hierarquizar e dar sentido aos fatos históricos, a partir de razões e de interesses singulares, no geral estranhos ao sentido essencial dos mesmos, interpretados desde uma ótica supra-nacional. Nesse processo, foram múltiplas as operações historiográficas empreendidas, algumas de brutalidade e obtusidade apenas compreensível devido à força dos interesses sociais que as sustentavam e as sustentam.
Obscureceram-se e justificaram-se a participação dos criadores escravistas rio-grandenses estabelecidos no norte do Uruguai na Cruzada Libertadora de Venancio Flores, e, a seguir, a intervenção militar das tropas terrestre e marítimas imperiais, para manter aquele país na situação semi-colonial imposta quando da submissão de Manuel Oribe e Juan Manuel de Rosas, em 1851-2. No mesmo sentido, transformou-se a missão literalmente imperialista do conselheiro Saraiva, para submeter o governo constitucional uruguaio, em verdadeira operação de amor, paz e fraternidade. Uma verdadeira intervenção militar humanitária!
Impunha-se – e ainda se impõe – manter e consolidar a narrativa mítica da grande nação sul-americana estruturalmente pacifista. Sustentar a retórica de Estado imperial que jamais pretendera impor ao Paraguai os interesses mesquinhos de suas classes dominantes, através da pressão diplomática e do seu desdobramento militar. Era e é necessário negar a vontade do Estado imperial de, apoiado em sua indiscutível superioridade bélica, demográfica e econômica, impor-se sobre nação paraguaia pela força, como fizera tradicionalmente sobretudo em relação ao Uruguai, mas também quanto à Argentina, no que diz respeito ao Prata.
Entretanto, havia e continuava havendo, não uma pedra, mas um enorme escolho, no meio do cominho da consolidação da narrativa ideológica sobre o pacifismo visceral do Império quanto ao Paraguai. Em fins de 1854, fortalecido pela hegemonia no Prata obtida pela vitória sobre Manuel Oribe e Juan Manuel de Rosas na batalha de Monte Caseros, em 3 de fevereiro de 1852, o Estado imperial resolveu repetir, contra o Paraguai, a dura lição que acabara de receber do governo e da marinha inglesa.
Convencido do poder indiscutível de suas armas, o Estado imperial estrearia na tradicional diplomacia da canhoneira, ao enviar contra o então militarmente quase desprotegido Paraguai a talvez mais poderosa armada do Império que jamais navegara fora das águas territoriais do Brasil. Dezenas de navios de guerra e de apoio, centenas de poderosos canhões, milhares de marinheiros e de soldados partiram do Rio de Janeiro em direção a Asunción, no coração da América do Sul.
A expedição naval não resultou em um fracasso ainda maior talvez devido apenas à sensibilidade do almirante Pedro Ferreira de Oliveira, que viu entretanto naufragar para sempre sua carreira, ao fracassar na missão de impor a verdadeira missão impossível que lhe fora delimitada. A impossibilidade de tergiversar sobre o resultado e, sobretudo, sobre o sentido daqueles sucessos levou a historiografia nacional-patriótica, de ontem e de hoje, a optar sobretudo pelo desconhecimento ou minimização do sentido daquela ação de exercício majestático do Estado imperial brasileiro sobre o Paraguai.
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Nas últimas três décadas, houve forte proliferação dos programas de pós-graduação em História, sobretudo em nível de mestrado, com um incremento indiscutivelmente substantivo da produção historiográfica acadêmica sobre a história do Brasil colonial, imperial e republicano. Esse processo garantiu importante avanço qualitativo e quantitativo da produção historiográfica e indiscutível qualificação do ensino da disciplina, no paradoxal contexto da enorme desvalorização do magistério como prática profissional, em nível não universitário.
Nos últimos anos, no contexto de indiscutível stakhanovismo intelectual, os pós-graduandos vem-se na contingência de, além de cursar e aprovar diversos seminários, pensar, programar, preparar, redigir, qualificar e aprovar suas dissertações. Idealmente, tudo em apenas quatro magros semestres, sob a chibata dos orientadores, disciplinados a sua vez pelos coordenadores dos programas, obrigados a prestarem contas sobre o tempo médio de defesa dos trabalhos. Aventura realizada comumente pelos pós-graduandos em cursos pagos e geralmente semi-ocupados em atividades profissionais, a que são obrigados pela falta de financiamento público.
Não poucos pós-graduandos vencem esses handicaps negativos e propõem-se e realizam trabalhos de qualidade, sobre temas substantivos, superando a sedução de cumprimento formal das exigências para obter o grau de mestre em História, através de abordagem de questões comumente de somenos importância e menor complexidade. Sobretudo quando se encontram sob o domínio da influência das visões relativistas, culturalistas e solipsistas de que tudo é história, de que todos os temas são válidos, de que todas as discussões e narrativas sobre os fatos se equiparam.
Sem arredar pé de suas obrigações profissionais, Fabiano Barcellos Teixeira aceitou com galhardia o difícil repto de abraçar o estudo da expedição imperialista naval brasileira de 1854-5 contra o Paraguai, quase não tocada pela historiografia brasileira, como destacado, pelas razões igualmente assinaladas.
Com segurança, iluminou com sua investigação e narrativa aspectos fundamentais dos antecedentes, dos sucessos, das decorrências, da recepção historiográfica daqueles determinantes fatos. Sem qualquer apoio financeiro, deslocou-se ao Paraguai, identificando valiosa e desconhecida documentação sobre os sucessos no Arquivo Nacional de Asunción.
Fonte: http://consciencia.net/o-esquecido-e-o-lembrado-na-historia-da-guerra-do-paraguai/