Seu pecado: amar demais.
Mata Hari entrou para a história como uma superespiã condenada à morte. Nada disso: a holandesa foi mesmo bode expiatório e liberal demais para sua época.
Margaretha Geertruida Zelle McLeod vestiu-se com elegância para sua morte, naquela manhã de outono de 15 de outubro de 1917. Saia longa, corselete de renda, chapéu de feltro, botinas, casaco e luvas até os cotovelos. O terror de momentos atrás, quando soube que sua pena capital seria executada na penitenciária francesa de Saint-Lazare, transformara-se em calma.
Frente aos 12 soldados do pelotão de execução que apontavam seus fuzis para ela, ouviu a sentença em que era “condenada à morte por unanimidade por espionagem”. Enviou um beijo aos carrascos e sorriu para as freiras que a acompanhavam. Às 6h12, a ordem de execução foi dada por um brusco movimento descendente de sabre. Um dos soldados desmaiou. Onze tiros ecoaram, certeiros. O marechal Petey caminhou até o corpo estendido e disparou na têmpora o tiro de misericórdia.
Em seus 41 anos, Margaretha foi falsa bailarina oriental e espiã fracassada. Colecionou amantes e mentiras e acabou vítima de seu próprio personagem e do espírito de sua época. Julgada em um processo repleto de falhas, a vedete foi ingênua a ponto de ser transformada, contra sua vontade, em perigosa inimiga da segurança nacional. Durante seu julgamento, o procurador Henri Mornet declarou para um júri já adepto de sua causa: “Vocês têm diante de si talvez a maior espiã do século”. Margaretha já havia se defendido: “Uma cortesã, eu admito. Uma espiã, jamais!”. Mas era tarde: a lenda de Mata Hari já estava há muito criada.
Margaretha nasceu em 7 de agosto de 1876, em Leeuwarden, cidade de 27 mil habitantes no norte da Holanda, filha do chapeleiro Adam Zelle e de Antje van der Meulen. De seu pai, herdara a personalidade pretensiosa e ambiciosa e a facilidade de esbanjar dinheiro. Da mãe, o aspecto exótico – ela era descendente de uma antiga tribo da Ásia que migrara para a Escócia e a Irlanda. A infância de sonhos ruiu com a falência dos negócios da família. A crise provocou a separação dos pais. Às vésperas de completar 15 anos, em 1891, a mãe morreu. O pai já vivia com outra mulher, em Amsterdã, e Margaretha foi acolhida por um casal de tios e enviada para estudar na cidade universitária de Leyden, para se tornar professora de escola maternal.
Com mais de 1,70 metro de altura, ombros largos e seios pequenos, a jovem Margaretha não era exatamente bonita. Mas os cabelos negros, o olhar e os lábios sensuais e a pele escura faziam-na sexy. Aos 19 anos incompletos, casou-se com o capitão Rudolph McLeod, 39.
Em maio de 1897, já com seu primeiro filho, Norman, a família mudou-se para a Indonésia, para onde a empresa em que o capitão trabalhava, a Companhia das Índias Orientais, o transferira. Em Toempoeng, perto de Bali, nasceu Juana-Luisa, apelidada de Non, abreviação de nonah (“menina” no idioma malaio). Na Ásia, por diversão, Margaretha começou a vestir trajes malaios e a imitar danças locais para oficiais, o que era malvisto pelas esposas dos funcionários holandeses. O casamento não ia bem: ela e o marido discutiam muito e, quando bebia, ele costumava ser violento.
Em Medan, uma tragédia. A babá, amante do capitão, tentou matar seus dois filhos, colocando veneno no molho do arroz. Non sobreviveu, mas Norman não. O casamento se degradava a cada dia e, em março de 1902, a família voltou para a Europa. O casal se separou em agosto do mesmo ano. Contra a decisão judicial, o capitão John se recusou a pagar pensão alimentar e seqüestrou Non da mãe, que tinha sua guarda. Abalada, Margaretha partiu para Paris em 1903, aos 27 anos.
Instalada em uma modesta pensão familiar, saiu em busca de trabalho como modelo para artistas. Só arrumou serviço para posar nua. Não conseguiu o dinheiro que achou que obteria e voltou para a Holanda, onde conheceu e tornou-se amante de um ricaço, o barão Henri de Marguerie. Em 1904, resolveu tentar de novo a vida em Paris. Com apenas 50 centavos na bolsa, Margaretha desembarcou no Grand Hôtel, com vista para a Opera, e enviou uma mensagem para o barão, que se encarregou de pagar suas diárias e também novos vestidos.
Hábito de fantasiar
Com o orientalismo em moda na Europa, Margaretha decidiu dançar para ganhar a vida. Sua primeira performance de strip-tease, na casa de uma cantora, já foi um sucesso. Fascinados pelo espetáculo, os diretores do Museu Guimet colocaram o cenário do prestigioso local à disposição de Margaretha e insistiram para que ela adotasse um nome artístico, como era comum na época. Ela optou pelo mesmo nome que usara quando dançava para oficiais na Indonésia: Mata Hari, expressão malaia que significa “olho da manhã”, mas pode também ser traduzida por “luz do dia”.
Sua primeira apresentação no Museu Guimet, em 13 de março de 1905, marca a virada de sua carreira artística. Com quatro bailarinas, Mata Hari dançava em trajes emprestados da coleção do museu: um cinto indiano de pedras preciosas enlaçava seu translúcido sári. Para disfarçar seus seios pequenos, criou um sutiã metálico e adornado de bijuterias, que não tirava jamais. Contorcia-se em cena e despia-se de seus xales até o momento em que, de costas para a audiência, deixava o sári cair.
Bastante solicitada nos salões da elite parisiense, em pouco tempo Mata Hari passou a dançar para um público composto de príncipes, como Albert I de Mônaco, e membros da aristocracia. Conquistou também o povo ao apresentar-se no Olympia, primeira casa de shows de música de Paris. Mesmo com seu limitado talento, virou celebridade. E, enquanto seguia sua carreira pelos palcos da Europa, acumulava amantes ricos em seu leito. De 1910 a 1911, desapareceu de cena para viver como amante permanente do banqueiro francês Félix Rousseau. Após a clausura, tentou reemplacar a carreira de dançarina, mas não teve sucesso. Sem dinheiro, partiu para Berlim atrás de um ex-amante, o proprietário de terras Albert Kiepert. No país, em maio de 1914 conseguiu agendar uma temporada de duas semanas no music-hall Metropol. A deflagração da Primeira Guerra Mundial, porém, abortou o projeto.
Em 28 de julho de 1914, um mês após o assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, o Império Áustro-Húngaro invadiu a Sérvia. O conflito generalizou-se rapidamente: de um lado a Tríplice Aliança (Alemanha, Itália e Áustria-Hungria), de outro, a Tríplice Entente (Inglaterra, França e Rússia). Mata Hari queria voltar para Paris e, em 6 de agosto, embarcou no trem para a Suíça. Na fronteira, fizeram-na descer para interrogatório. O trem partiu sem ela, mas com suas bagagens. As autoridades alemãs exigiam um documento oficial atestando sua nacionalidade holandesa (poucas pessoas na época possuíam um passaporte) e um visto suíço. Acabou voltando para a Holanda.
Em 1916, tentou novamente ir para Paris, dessa vez por Londres. O cônsul britânico recusou-lhe um salvo-conduto. Equivocadamente, os ingleses já suspeitavam que a bailarina era espiã. O serviço de contra-espionagem italiano enviara para Paris, com cópia para Londres, uma mensagem dizendo que Mata Hari, então residente em Berlim e que falava com um “leve sotaque alemão” estava em um navio com destino ao Egito, que faria escala em Nápoles. A confusão deve-se, no fundo, ao hábito de Mata Hari de inventar histórias sobre a própria vida. Nove anos antes, fizera um cruzeiro pelo Egito e dera uma entrevista ao jornal Le Temps, dizendo que, no momento, era “berlinense”. O jornal afirmara que o alemão falado por Mata Hari tinha quase nenhum sotaque.
Foi nessa “prova” amadora e inconsistente – sem uma única linha sobre espionagem – que os ingleses sustentaram sua desconfiança. Depois desse episódio, ela passou a ser seguida por pessoas do serviço secreto inglês, que procuravam indícios para culpá-la de espionagem a serviço da Alemanha. Já em Paris, quando chegou em 16 de junho de 1916, foi seguida por policiais franceses, alertados pelos ingleses, até 15 de janeiro de 1917. Nada de realmente suspeito pôde ser notado.
Mata Hari continuou entretendo-se com seus amantes até encontrar o grande e talvez único amor de sua vida, o oficial russo de 21 anos Vladimir de Masloff, o Vadim. A paixão deflagrou as circunstâncias que terminaram por levá-la à morte.
Espiã por acaso
Naquele mesmo ano, ferido no olho esquerdo, Vadim foi transferido para tratamento no hospital militar de Vittel, a 300 quilômetros de Paris. Para visitar o amado, Mata Hari precisava de uma autorização especial de acesso à zona militar. Pediu-a ao capitão Georges Ladoux, encarregado da organização da contra-espionagem. O oficial francês, já informado de que Mata Hari era suspeita de ser espiã alemã, disse à suposta inimiga que daria autorização para ir a Vittel caso ela trabalhasse como espiã para a França. Ela aceitou e foi clara: só o estava fazendo pelo dinheiro.
Mata Hari partiu como uma espiã amadora, sem qualquer missão específica, para a Espanha. Hospedada no Hotel Ritz em Madri e decidida a mostrar serviço, aproximou-se do capitão Hauptmann Kalle, adido militar da embaixada alemã. Mata Hari foi manipulada pelo oficial desde o primeiro encontro. Em conversas informais, Kalle lhe passou informações aparentemente importantes, mas na verdade falsas ou obsoletas. Por sua vez, além dos serviços na cama, ela forneceu impressões banais do que se passava na França, todas acessíveis em jornais ou ouvidas nas ruas, para convencer seu amante de que seu coração batia pela Alemanha. Em dezembro, enquanto ela esperava voltar para a França e receber a recompensa por seu trabalho, o capitão Ladoux interceptou mensagens enviadas por Kalle a Berlim. Referindo-se ao agente “H 21”, relatava as informações (superficiais) passadas por Mata Hari a ele.
Um detalhe indica que a correspondência entre Madri e Berlim fazia parte de uma estratégia dos alemães para incriminar Mata Hari como agente-duplo junto aos franceses. Em 1914, os ingleses já haviam conseguido decifrar o sistema codificado de mensagens alemão. Em 1916 os alemães perceberam isso e alteraram o código. O capitão Ladoux percebeu mais tarde – e escondeu do procurador e do júri que condenou Mata Hari – que as mensagens sobre o agente H 21 transmitidas por Kalle usavam o antigo código, aquele que os alemães sabiam que os franceses conheciam. Ou seja: eles faziam questão que seu conteúdo fosse lido pelas autoridades inimigas.
Em 4 de janeiro de 1917, Mata Hari voltou a Paris. O contexto na França era dos piores. A guerra se alastrava e o espírito de derrota imperava. O clima reinante era o de caça às bruxas e do uso de bodes expiatórios. O governo exigia a prisão do maior número possível de espiões estrangeiros para provar sua eficácia. Não prender Mata Hari seria reconhecer que o serviço de contra-espionagem perdera tempo e dinheiro ao investigar uma mera cortesã aspirante a espiã. Em 13 de fevereiro, por ordem do juiz de instrução Pierre Bouchardon, Mata Hari foi presa em Saint-Lazare.
Os sucessivos interrogatórios não revelaram nenhuma prova conclusiva de crime de espionagem contra a França. Só no fim de abril Ladoux revelou sobre as mensagens alemãs interceptadas. Fez isso, porém, sem revelar as verdadeiras intenções alemãs – o que não deixou dúvidas ao capitão Bouchardon de que a prisioneira era culpada. Foi então que Mata decidiu contar o que até então acobertara. Em uma noite de maio de 1916, segundo ela, recebera a inesperada visita em sua casa na Holanda do cônsul da Alemanha em Amsterdã, Karl Kroemer. O diplomata ofereceu 20 mil francos por informações confidenciais que ela obtivesse dos franceses. Ela deveria escrever seus relatórios e assinar com o código “H 21”. Mata Hari disse que concordara, mas só para pegar dinheiro dos alemães – e nunca teria dado informação alguma. O fato explicaria por que os alemães teriam usado o sistema de mensagens para “entregar” aos franceses a espiã que embolsou o dinheiro alemão sem ter feito espionagem para o kaiser. Mas, em seu julgamento, o júri composto de militares desconheceu ou ignorou as falhas e contradições do dossiê de acusação.
“Mata Hari foi vítima de um erro judiciário”, diz o próprio bisneto de Pierre Bouchardon, o historiador Philippe Collas, em Mata Hari – Sa Véritable Histoire (“Mata Hari – Sua verdadeira história”, inédito em português). “Mata Hari é culpada porque era imoral. Uma mulher liberada, um símbolo sexual, uma mulher livre.” “Foi condenada não por espionagem, mas por sua falta de vergonha”, disse o acadêmico americano Pat Shipman em Femme Fatale: Love, Lies, and the Unknown Life of Mata Hari (“Mulher fatal: amores, mentiras e a desconhecida vida de Mata Hari, sem tradução). A frase definitiva de sua inocência veio, porém, de um de seus maiores carrascos. Cerca de 30 anos após tê-la proclamado “a maior espiã do século” diante dos jurados, o procurador Henri Mornet declarou em uma entrevista sobre o julgamento: “Il n’y avait pas de quoi fouetter un chat” (“não havia com o que fustigar um gato”), a versão francesa de “fazer tempestade em um copo d’água” – expressão, todos sabemos, usada para dizer que não havia nada de grave no episódio Mata Hari.
Mata Hari real
Marthe Richard seduziu, espionou e se deu bem
A fama é de Mata Hari, mas foi uma outra jovem a verdadeira cortesã agente dupla que realmente trabalhou a serviço da França. Como boa espiã, no entanto, ela nunca foi pega. E ainda fez carreira política. Marthe Richard nasceu em 1889, em Bettenfeld, na Alemanha, mas adolescente já morava na França. Ficou viúva cedo, em 1916 – o marido morreu na Primeira Guerra. Como Mata Hari, tornou-se espiã por influência do capitão Georges Ladoux, amigo de um de seus amantes. A alemã e Mata Hari, inclusive, chegaram a estar hospedadas no mesmo hotel em Madri, em 1917. Marthe seduziu o septuagenário Hans van Krohn, um dos chefes da espionagem alemã na Espanha, que a recrutou como o agente “S 32”. Graças às suas informações, foram presos vários espiões alemães, foi descoberto o segredo da tinta invisível inimiga, destruído um submarino UB 52 e impedido o sucesso do bombardeamento da costa basca. Nos anos 1930, quando lançou suas memórias, Ma Vie d’Espionne au Service de la France (“Minha vida de espiã a serviço da França”, inédito em português), disse que como agente dupla poderia ter tido o mesmo destino de Mata Hari. “Mas eu tive direito à Legião de Honra e, ela, ao pelotão de execução”, afirmou. Sua carreira política começou em 1945, quando foi eleita para o conselho municipal de Paris. Mas ficou famosa por lutar pelo fechamento das casas de prostituição francesas. Marthe Richard morreu em 1982, aos 93 anos.
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