Democracia, imperialismo, educação, arte e até malhação: as raízes do nosso mundo surgiram na cidade mais poderosa da Grécia antiga.
É a festa da democracia em Atenas e todos os cidadãos, dos magnatas aos mais humildes, foram convidados. Quem passa pela ágora, a praça do mercado, logo vê os dez portões pelos quais entram os que vão votar. É dia de eleição e há um clima de ansiedade no ar: o cidadão que receber 6 mil votos ou mais será expulso sumariamente da cidade e do território em torno controlado por ela, por dez anos. Trata-se de um pleito de ostracismo. Os eleitores só precisam rabiscar o nome do "candidato" ao exílio num caco de cerâmica, o chamado ôstrakon (ou ôstraka, no plural), e depositá-lo num grande jarro. Um grupo de camponeses hesita perto dos portões: entrar ou não entrar? Eles não sabem escrever e estão inseguros, mas um homem de túnica elegante se aproxima para dar uma mãozinha. "Percebo que os senhores têm dificuldade com a escrita e seria uma injustiça não poderem participar. Eis aqui alguns votos já prontos", diz, enquanto oferece a eles as cédulas em que, maliciosamente, inscreveu, provavelmente, o nome do seu inimigo. Agradecidos, os camponeses já podem votar. A cena fictícia se passa na Atenas de 2500 anos atrás. Mas qualquer semelhança com o conhecido voto de cabresto, flagelo da democracia contemporânea, não é mera coincidência. Muito do pensamento e da vida do Ocidente, no século 21, foi antecipado pelos gregos, em especial pelos atenienses do século 5 a.C.
A lista é comprida. Além do sistema de participação política (com seus méritos e problemas), Atenas criou um modelo educacional voltado para a cidadania, levou para o teatro os dilemas existenciais da humanidade, aperfeiçoou a filosofia e a retórica, elevou o culto do corpo ao status de arte, integrou os relacionamentos homossexuais à sociedade com pouco ou nenhum preconceito. Também estava lá a mistura contemporânea de democracia com imperialismo, muitas vezes associada aos Estados Unidos, em que a ideia da liberdade vale muito internamente, mas pouco na política externa e no trato com os vizinhos.
Liberdade, liberdade
O grande sucesso da democracia ateniense, que acabou por transformá-la num império marítimo, é resultado direto da surra que as cidades-estado helênicas deram nos persas, quando eles invadiram a Grécia em 480 a.C. Uma das chaves da vitória foram os 200 navios de Atenas. "E esses navios eram remados justamente pela classe mais baixa entre os cidadãos atenienses, os chamados tetes", explica o historiador britânico Robin Waterfield, autor de Athens - A History ("Atenas - Uma História", inédito no Brasil). Nessa época, o governo da cidade já era democrático: as decisões relevantes para a sociedade eram tomadas por maioria simples da Assembleia, onde qualquer homem livre ateniense poderia participar diretamente, votando.
Mas nem todos eram iguais, distribuídos já em classes de acordo com sua riqueza. E a crescente influência exercida pelos integrantes da Marinha fez com que o equilíbrio de poder dependesse cada vez mais dos que a tripulavam. Durante muito tempo, os membros da nobreza foram as principais figuras da política ateniense, mas a vitória contra o rei persa Xerxes levou esses líderes a fazer de tudo para agradar os tetes, trabalhadores assalariados. É que as naus de Atenas, movidas por eles, também libertaram dos persas as cidades gregas da Ásia, que imploraram para se tornarem aliadas e protegidas dessa frota imbatível na guerra e no comércio marítimo. Formaram, assim, a Liga de Delos.
Os membros dessa aliança contribuíam, inicialmente, com navios e soldados, e depois com dinheiro para as forças armadas comuns. Não demorou, Atenas começou a desviar esses fundos para a construção de templos e para enriquecer seus cidadãos. "Além disso, os atenienses interferiam na política interna dos seus aliados, favorecendo governos simpáticos aos seus interesses e, às vezes, instalando guarnições militares nas terras aliadas", diz Waterfield. A aliança deu lugar a um imenso império, que justificava a força para "defender" a democracia em território alheio. Os lucros para Atenas e as vantagens políticas para os tetes, antes marginalizados, eram tão grandes que poucos se incomodavam com o contraste entre a valorização da democracia em casa e o uso de mão de ferro fora dela.
Política de sorte
À parte essa contradição na política externa, o fato é que, em seu auge, a partir da segunda metade do século 5 a.C., o governo democrático ateniense foi um dos mais radicais da História. "As pessoas usam o fato de que os escravos, as mulheres e os estrangeiros não tinham direitos políticos em Atenas para dizer que a democracia da cidade não era lá essas coisas, mas esquecem que nenhum governo constitucional deu direitos a esses grupos até o século 19", lembra Donald Kagan, professor de História e Estudos Clássicos da Universidade Yale (EUA). "Sob todos os aspectos, a democracia grega colocava o poder diretamente nas mãos dos cidadãos, de uma maneira que nós, que vivemos em democracias modernas, temos até dificuldade de imaginar", diz ele.
Para começar, quase não existiam eleições para cargos públicos em Atenas. A maioria era ocupada por sorteio. A ideia é que as votações favorecem pessoas influentes e ricas, com recursos para fazer campanha. A sorte seria, então, mais democrática. Conceito parecido está por trás da invenção do ostracismo. Trata-se de um instrumento para punir qualquer cidadão acusado de querer tomar o poder. É claro que alguns tentavam manipular o sistema: a cena inicial deste texto foi inspirada na descoberta real de centenas de ôstraka, ou votos de ostracismo, que pediam o exílio da mesma pessoa, escritos por poucas mãos - indício de grupos se organizando para "queimar" inimigos políticos.
Nessa época, o único cargo eletivo era o de estratego, ou general (reelegível, após um ano, indefinidamente). De resto, os mandatos duravam um ano, sem direito à reeleição (novo sorteio), o que conferia alta rotatividade aos cargos. Não havia burocracia estatal em Atenas. Até os juízes eram selecionados aleatoriamente. Mas, se todos podiam votar, nem todos podiam ser votados. Só podiam ser escolhidos para todos os cargos os mais ricos, em geral donos de terras, chamados pentacosiomedimnos, seguidos pelos cavaleiros e pelos zeugitas (comparáveis a uma "classe média"). "Temia-se que os tetes, por serem muito pobres, viessem a aceitar subornos", diz Waterfield.
Mas os órgãos que realmente mandavam eram o Conselho, formado por 500 cidadãos sorteados (inclusive entre a classe pobre), e a Assembleia, da qual todo cidadão (homem, filho de pai e mãe atenienses, com mais de 18 anos) era membro permanente. Até as decisões dos generais passavam por ela. O Conselho preparava a legislação a ser submetida à Assembleia, que era soberana para vetar a medida ou pedir modificações. "Como muitos dos cerca de 40 mil cidadãos atenienses viviam na zona rural e não eram ricos para possuir cavalos, entre 5 mil e 6 mil pessoas compareciam a uma Assembleia", diz Kagan. O quórum necessário para tomar decisões mais sérias, como declarações de guerra, era de 6 mil votos.
Toda essa gente se reunia 40 vezes por ano, nas encostas da Pnyx, uma colina no centro de Atenas. Escravos municipais iam buscar a multidão, que ficava enrolando, conversando na praça: eles carregavam cordas lambuzadas com tinta vermelha e iam "fechando" os grupos. "Ninguém queria ficar com a roupa manchada, por isso as pessoas iam deixando a ágora", afirma Kagan. Povão reunido, o arauto dizia apenas: "Quem quer falar?" Qualquer um podia se dirigir à Assembleia e, após os discursos, as leis eram aprovadas por maioria simples.
Malhação e paquera
Votar e ser eleito para cargos públicos soa familiar ao ocidental. "Mas e se a ida à academia fosse considerada uma das obrigações normais do cidadão, quase como pagar impostos?", pergunta o britânico Nigel Spivey, professor da Universidade de Cambridge, em seu livro The Ancient Olympics ("As Olimpíadas antigas", sem tradução). "Havia a expectativa política nas cidades-estado gregas de que os bons cidadãos deviam manter a boa forma, ou eumorphia", diz.
Na prática, figurões da Atenas do século 5 a.C., como o filósofo Sócrates (470-399 a.C.), o general Péricles (495-429 a.C.) ou o dramaturgo Sófocles (496-406 a.C.), passavam algumas horas por dia pelados e com o corpo coberto de azeite nos ginásios e nas palestras (ringues de luta). Para o ideal grego do kalôs kai agathôs (algo como "o belo e o bom/competente"), uma mente sábia não bastava: um corpo forte e bonito tinha de acompanhá-la. Entre os esportes, havia a corrida de um estádio (cerca de 200 metros), salto e luta livre. No fim de um treinamento, usava-se um estrigilo (raspador metálico, curvo como uma foice) para tirar a mistura de óleo e sujeira da pele. A limpeza podia, ainda, ser complementada por um banho de banheira.
Tal como no mundo moderno, as "academias" viravam locais de paquera, mas só entre homens. Senhores de meia-idade visitavam os ginásios e as palestras para admirar os jovens e cortejá-los. Não havia contradição no fato de um homem maduro, casado e com filhos se apaixonar por um rapaz. Esse amor literalmente pederasta (em grego, algo como paixão por meninos) era encarado como necessário ao desenvolvimento do adolescente. O mais velho (erastés, ou amante) serviria como tutor do rapaz (erómenos, ou amado), ensinando-lhe virtudes. Nenhum dos lados deveria parecer "afeminado" - o que atraía desdém social não era a relação homossexual, mas a eventual perda de virilidade. Como o sexo anal era considerado uma forma de submissão, digna de escravos, o romance entre dois homens livres idealmente envolvia apenas o chamado coito interfemural, pelo contato entre coxas (é assim que o sexo entre homens aparece em vasos e outros exemplos da arte grega).
As mulheres ficavam de fora desses jogos românticos. Com exceção das prostitutas, as atenienses, como na canção Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, eram vistas como esposas e produtoras de filhos, a maior parte do tempo dentro de casa, trabalhando (veja infográfico na pág. 34). "A melhor coisa que se pode dizer de uma mulher é que não se fale dela em absoluto", teria dito o estratego Péricles (495-429 a.C.), principal político de Atenas em seu apogeu.
Vinho e teatro
As atenienses também não participavam de duas manifestações fundamentais da cultura grega: o simpósio, uma festa só para homens (com exceção de prostitutas e escravas), e o teatro. O simpósio consistia em jogar conversa fora e beber o máximo de vinho possível, sem cair embriagado. Como? Diluindo vinho na água. Os gregos consideravam a bebida alcoólica pura uma coisa para bárbaros, porque ela podia provocar a perda do autocontrole e a moderação já era, então, tida como uma virtude.
Nos famosos festivais de teatro de Atenas, todos os papéis eram desempenhados por homens - e ainda há dúvidas se as mulheres podiam integrar a plateia. As peças eram sempre encenadas em honra de Dionísio, o deus do vinho e das emoções fortes, e apenas uma vez. O Teatro de Dionísio, em Atenas, acomodava de 15 mil a 20 mil pessoas ao ar livre, de todas as classes sociais (menos os escravos).
É fácil perceber como a arte dramática ateniense moldou o teatro e o cinema ocidentais. Os gregos antigos foram os primeiros a entender o que gera audiência: a capacidade de o público se identificar com os personagens. Segundo o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), ao experimentar, por meio deles, sentimentos fortes e acontecimentos trágicos, esperava-se que as pessoas purificassem as próprias emoções. Mais importante, as peças faziam a plateia refletir sobre os problemas centrais da condição humana, como a natureza do destino ou conflitos entre a compaixão e a Justiça. Nas tragédias ou na comédia - gênero que tem Aristófanes (446-386 a.C.) como grande representante -, os dramaturgos discutiam temas de interesse da cidade, satirizavam o governo ou até as mazelas da democracia. Tal como na Assembleia, a marca fundamental do teatro ateniense era uma grande liberdade de expressão, esse valor que, afinal, está no coração do Ocidente moderno.
Educação para a cidadania
Os meninos aprendiam a questionar e a defender suas ideias
Os fundadores da cultura ocidental, nascidos e criados em Atenas durante o apogeu da cidade, eram educados para serem os mais fortes e inteligentes, mas capazes de saber o que era melhor para o conjunto de sua sociedade. Além do básico - ler, escrever, contar, um pouco de música e canto -, os meninos atenienses aprendiam sobretudo os valores de sua cidade e classe social. Antes do século 5 a.C., quando apenas uma pequena elite tinha acesso à educação, esses valores eram basicamente os refletidos nos poemas atribuídos a Homero (século 9 ou 8 a.C.), a Ilíada e a Odisseia, que funcionavam como uma espécie de Bíblia da aristocracia grega. Os textos de Homero ensinavam a ser competitivo e a chegar na frente. O lema do maior herói homérico, Aquiles, era "sempre ser o melhor e superior aos outros". Melhor em quê? Primeiro, em coragem na batalha, mas inteligência e esperteza também eram valorizadas, como mostra o segundo maior herói do poeta, Ulisses (ou Odisseu, em grego), capaz de convencer a todos com sua lábia e de elaborar estratagemas engenhosos, como o do cavalo de Tróia, citado na Odisseia. Beleza, força e agilidade completavam o ideal homérico de aristocrata, pronto a vencer qualquer disputa. Com o fortalecimento da democracia em Atenas, ser o primeiro ainda é importante, mas é preciso convencer os cidadãos de que as suas ideias são as melhores. Surgem os sofistas, que ensinavam a arte de argumentar na Assembleia. Eis aí uma semelhança intrigante com o mundo de hoje: para muitos sofistas, como Protágoras (485-410 a.C.), o certo e o errado eram questão de ponto de vista, e o importante era saber defendê-lo. Diferentemente deles, pensadores como Sócrates e Platão (428/7-348/7 a.C.) acreditavam, contudo, que a mente humana é capaz de conhecer a verdade, por meio do questionamento incessante das ideias estabelecidas. Num método envolvendo perguntas e respostas, Sócrates tentava levar seus interlocutores a encontrar por si próprios as soluções para as questões propostas, sistema que ainda hoje inspira modelos educacionais. Seus sucessores fundaram círculos de mestres e alunos (o mais famoso é a Academia, capitaneada por Platão), para formar pessoas capazes de saber o que era melhor para o conjunto dos seres humanos e, principalmente, para a cidade.
A lista é comprida. Além do sistema de participação política (com seus méritos e problemas), Atenas criou um modelo educacional voltado para a cidadania, levou para o teatro os dilemas existenciais da humanidade, aperfeiçoou a filosofia e a retórica, elevou o culto do corpo ao status de arte, integrou os relacionamentos homossexuais à sociedade com pouco ou nenhum preconceito. Também estava lá a mistura contemporânea de democracia com imperialismo, muitas vezes associada aos Estados Unidos, em que a ideia da liberdade vale muito internamente, mas pouco na política externa e no trato com os vizinhos.
Liberdade, liberdade
O grande sucesso da democracia ateniense, que acabou por transformá-la num império marítimo, é resultado direto da surra que as cidades-estado helênicas deram nos persas, quando eles invadiram a Grécia em 480 a.C. Uma das chaves da vitória foram os 200 navios de Atenas. "E esses navios eram remados justamente pela classe mais baixa entre os cidadãos atenienses, os chamados tetes", explica o historiador britânico Robin Waterfield, autor de Athens - A History ("Atenas - Uma História", inédito no Brasil). Nessa época, o governo da cidade já era democrático: as decisões relevantes para a sociedade eram tomadas por maioria simples da Assembleia, onde qualquer homem livre ateniense poderia participar diretamente, votando.
Mas nem todos eram iguais, distribuídos já em classes de acordo com sua riqueza. E a crescente influência exercida pelos integrantes da Marinha fez com que o equilíbrio de poder dependesse cada vez mais dos que a tripulavam. Durante muito tempo, os membros da nobreza foram as principais figuras da política ateniense, mas a vitória contra o rei persa Xerxes levou esses líderes a fazer de tudo para agradar os tetes, trabalhadores assalariados. É que as naus de Atenas, movidas por eles, também libertaram dos persas as cidades gregas da Ásia, que imploraram para se tornarem aliadas e protegidas dessa frota imbatível na guerra e no comércio marítimo. Formaram, assim, a Liga de Delos.
Os membros dessa aliança contribuíam, inicialmente, com navios e soldados, e depois com dinheiro para as forças armadas comuns. Não demorou, Atenas começou a desviar esses fundos para a construção de templos e para enriquecer seus cidadãos. "Além disso, os atenienses interferiam na política interna dos seus aliados, favorecendo governos simpáticos aos seus interesses e, às vezes, instalando guarnições militares nas terras aliadas", diz Waterfield. A aliança deu lugar a um imenso império, que justificava a força para "defender" a democracia em território alheio. Os lucros para Atenas e as vantagens políticas para os tetes, antes marginalizados, eram tão grandes que poucos se incomodavam com o contraste entre a valorização da democracia em casa e o uso de mão de ferro fora dela.
Política de sorte
À parte essa contradição na política externa, o fato é que, em seu auge, a partir da segunda metade do século 5 a.C., o governo democrático ateniense foi um dos mais radicais da História. "As pessoas usam o fato de que os escravos, as mulheres e os estrangeiros não tinham direitos políticos em Atenas para dizer que a democracia da cidade não era lá essas coisas, mas esquecem que nenhum governo constitucional deu direitos a esses grupos até o século 19", lembra Donald Kagan, professor de História e Estudos Clássicos da Universidade Yale (EUA). "Sob todos os aspectos, a democracia grega colocava o poder diretamente nas mãos dos cidadãos, de uma maneira que nós, que vivemos em democracias modernas, temos até dificuldade de imaginar", diz ele.
Para começar, quase não existiam eleições para cargos públicos em Atenas. A maioria era ocupada por sorteio. A ideia é que as votações favorecem pessoas influentes e ricas, com recursos para fazer campanha. A sorte seria, então, mais democrática. Conceito parecido está por trás da invenção do ostracismo. Trata-se de um instrumento para punir qualquer cidadão acusado de querer tomar o poder. É claro que alguns tentavam manipular o sistema: a cena inicial deste texto foi inspirada na descoberta real de centenas de ôstraka, ou votos de ostracismo, que pediam o exílio da mesma pessoa, escritos por poucas mãos - indício de grupos se organizando para "queimar" inimigos políticos.
Nessa época, o único cargo eletivo era o de estratego, ou general (reelegível, após um ano, indefinidamente). De resto, os mandatos duravam um ano, sem direito à reeleição (novo sorteio), o que conferia alta rotatividade aos cargos. Não havia burocracia estatal em Atenas. Até os juízes eram selecionados aleatoriamente. Mas, se todos podiam votar, nem todos podiam ser votados. Só podiam ser escolhidos para todos os cargos os mais ricos, em geral donos de terras, chamados pentacosiomedimnos, seguidos pelos cavaleiros e pelos zeugitas (comparáveis a uma "classe média"). "Temia-se que os tetes, por serem muito pobres, viessem a aceitar subornos", diz Waterfield.
Mas os órgãos que realmente mandavam eram o Conselho, formado por 500 cidadãos sorteados (inclusive entre a classe pobre), e a Assembleia, da qual todo cidadão (homem, filho de pai e mãe atenienses, com mais de 18 anos) era membro permanente. Até as decisões dos generais passavam por ela. O Conselho preparava a legislação a ser submetida à Assembleia, que era soberana para vetar a medida ou pedir modificações. "Como muitos dos cerca de 40 mil cidadãos atenienses viviam na zona rural e não eram ricos para possuir cavalos, entre 5 mil e 6 mil pessoas compareciam a uma Assembleia", diz Kagan. O quórum necessário para tomar decisões mais sérias, como declarações de guerra, era de 6 mil votos.
Toda essa gente se reunia 40 vezes por ano, nas encostas da Pnyx, uma colina no centro de Atenas. Escravos municipais iam buscar a multidão, que ficava enrolando, conversando na praça: eles carregavam cordas lambuzadas com tinta vermelha e iam "fechando" os grupos. "Ninguém queria ficar com a roupa manchada, por isso as pessoas iam deixando a ágora", afirma Kagan. Povão reunido, o arauto dizia apenas: "Quem quer falar?" Qualquer um podia se dirigir à Assembleia e, após os discursos, as leis eram aprovadas por maioria simples.
Malhação e paquera
Votar e ser eleito para cargos públicos soa familiar ao ocidental. "Mas e se a ida à academia fosse considerada uma das obrigações normais do cidadão, quase como pagar impostos?", pergunta o britânico Nigel Spivey, professor da Universidade de Cambridge, em seu livro The Ancient Olympics ("As Olimpíadas antigas", sem tradução). "Havia a expectativa política nas cidades-estado gregas de que os bons cidadãos deviam manter a boa forma, ou eumorphia", diz.
Na prática, figurões da Atenas do século 5 a.C., como o filósofo Sócrates (470-399 a.C.), o general Péricles (495-429 a.C.) ou o dramaturgo Sófocles (496-406 a.C.), passavam algumas horas por dia pelados e com o corpo coberto de azeite nos ginásios e nas palestras (ringues de luta). Para o ideal grego do kalôs kai agathôs (algo como "o belo e o bom/competente"), uma mente sábia não bastava: um corpo forte e bonito tinha de acompanhá-la. Entre os esportes, havia a corrida de um estádio (cerca de 200 metros), salto e luta livre. No fim de um treinamento, usava-se um estrigilo (raspador metálico, curvo como uma foice) para tirar a mistura de óleo e sujeira da pele. A limpeza podia, ainda, ser complementada por um banho de banheira.
Tal como no mundo moderno, as "academias" viravam locais de paquera, mas só entre homens. Senhores de meia-idade visitavam os ginásios e as palestras para admirar os jovens e cortejá-los. Não havia contradição no fato de um homem maduro, casado e com filhos se apaixonar por um rapaz. Esse amor literalmente pederasta (em grego, algo como paixão por meninos) era encarado como necessário ao desenvolvimento do adolescente. O mais velho (erastés, ou amante) serviria como tutor do rapaz (erómenos, ou amado), ensinando-lhe virtudes. Nenhum dos lados deveria parecer "afeminado" - o que atraía desdém social não era a relação homossexual, mas a eventual perda de virilidade. Como o sexo anal era considerado uma forma de submissão, digna de escravos, o romance entre dois homens livres idealmente envolvia apenas o chamado coito interfemural, pelo contato entre coxas (é assim que o sexo entre homens aparece em vasos e outros exemplos da arte grega).
As mulheres ficavam de fora desses jogos românticos. Com exceção das prostitutas, as atenienses, como na canção Mulheres de Atenas, de Chico Buarque, eram vistas como esposas e produtoras de filhos, a maior parte do tempo dentro de casa, trabalhando (veja infográfico na pág. 34). "A melhor coisa que se pode dizer de uma mulher é que não se fale dela em absoluto", teria dito o estratego Péricles (495-429 a.C.), principal político de Atenas em seu apogeu.
Vinho e teatro
As atenienses também não participavam de duas manifestações fundamentais da cultura grega: o simpósio, uma festa só para homens (com exceção de prostitutas e escravas), e o teatro. O simpósio consistia em jogar conversa fora e beber o máximo de vinho possível, sem cair embriagado. Como? Diluindo vinho na água. Os gregos consideravam a bebida alcoólica pura uma coisa para bárbaros, porque ela podia provocar a perda do autocontrole e a moderação já era, então, tida como uma virtude.
Nos famosos festivais de teatro de Atenas, todos os papéis eram desempenhados por homens - e ainda há dúvidas se as mulheres podiam integrar a plateia. As peças eram sempre encenadas em honra de Dionísio, o deus do vinho e das emoções fortes, e apenas uma vez. O Teatro de Dionísio, em Atenas, acomodava de 15 mil a 20 mil pessoas ao ar livre, de todas as classes sociais (menos os escravos).
É fácil perceber como a arte dramática ateniense moldou o teatro e o cinema ocidentais. Os gregos antigos foram os primeiros a entender o que gera audiência: a capacidade de o público se identificar com os personagens. Segundo o filósofo Aristóteles (384-322 a.C.), ao experimentar, por meio deles, sentimentos fortes e acontecimentos trágicos, esperava-se que as pessoas purificassem as próprias emoções. Mais importante, as peças faziam a plateia refletir sobre os problemas centrais da condição humana, como a natureza do destino ou conflitos entre a compaixão e a Justiça. Nas tragédias ou na comédia - gênero que tem Aristófanes (446-386 a.C.) como grande representante -, os dramaturgos discutiam temas de interesse da cidade, satirizavam o governo ou até as mazelas da democracia. Tal como na Assembleia, a marca fundamental do teatro ateniense era uma grande liberdade de expressão, esse valor que, afinal, está no coração do Ocidente moderno.
Educação para a cidadania
Os meninos aprendiam a questionar e a defender suas ideias
Os fundadores da cultura ocidental, nascidos e criados em Atenas durante o apogeu da cidade, eram educados para serem os mais fortes e inteligentes, mas capazes de saber o que era melhor para o conjunto de sua sociedade. Além do básico - ler, escrever, contar, um pouco de música e canto -, os meninos atenienses aprendiam sobretudo os valores de sua cidade e classe social. Antes do século 5 a.C., quando apenas uma pequena elite tinha acesso à educação, esses valores eram basicamente os refletidos nos poemas atribuídos a Homero (século 9 ou 8 a.C.), a Ilíada e a Odisseia, que funcionavam como uma espécie de Bíblia da aristocracia grega. Os textos de Homero ensinavam a ser competitivo e a chegar na frente. O lema do maior herói homérico, Aquiles, era "sempre ser o melhor e superior aos outros". Melhor em quê? Primeiro, em coragem na batalha, mas inteligência e esperteza também eram valorizadas, como mostra o segundo maior herói do poeta, Ulisses (ou Odisseu, em grego), capaz de convencer a todos com sua lábia e de elaborar estratagemas engenhosos, como o do cavalo de Tróia, citado na Odisseia. Beleza, força e agilidade completavam o ideal homérico de aristocrata, pronto a vencer qualquer disputa. Com o fortalecimento da democracia em Atenas, ser o primeiro ainda é importante, mas é preciso convencer os cidadãos de que as suas ideias são as melhores. Surgem os sofistas, que ensinavam a arte de argumentar na Assembleia. Eis aí uma semelhança intrigante com o mundo de hoje: para muitos sofistas, como Protágoras (485-410 a.C.), o certo e o errado eram questão de ponto de vista, e o importante era saber defendê-lo. Diferentemente deles, pensadores como Sócrates e Platão (428/7-348/7 a.C.) acreditavam, contudo, que a mente humana é capaz de conhecer a verdade, por meio do questionamento incessante das ideias estabelecidas. Num método envolvendo perguntas e respostas, Sócrates tentava levar seus interlocutores a encontrar por si próprios as soluções para as questões propostas, sistema que ainda hoje inspira modelos educacionais. Seus sucessores fundaram círculos de mestres e alunos (o mais famoso é a Academia, capitaneada por Platão), para formar pessoas capazes de saber o que era melhor para o conjunto dos seres humanos e, principalmente, para a cidade.
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