14.9.09

Repressão às drogas está na origem do narcotráfico, dizem pesquisadores

Para eles, cruzada antidrogas é uma criação do século XX.
G1 conta a história do narcotráfico até os dias de hoje.

É difícil de acreditar atualmente, diante da recente polêmica gerada pela instalação de bases militares norte-americanas na Colômbia sob a justificativa de combate ao narcotráfico na região, que no início do século passado era possível ir a uma farmácia dos Estados Unidos ou de grande parte do mundo e comprar cocaína ou derivados do ópio sem grande dificuldade.

No século XIX, o comércio do ópio, droga produzida a partir da papoula, deu origem a duas guerras que opuseram potências ocidentais, principalmente Inglaterra, França e Portugal, que forneciam a droga, ao governo imperial chinês, que queria limitar o acesso dos súditos ao psicoativo. Nas duas Guerras do Ópio, ocorridas entre 1839-1842 e 1856-1860, a China foi derrotada.


Foi ao longo do século XX que os Estados Unidos assumiram a dianteira da cruzada antidrogas, impondo aos demais países na Europa e na América convenções que dariam origem à chamada guerra às drogas. Para especialistas consultados pelo
G1, esta política do “proibicionismo” está na origem do comércio ilegal destas substâncias, mais tarde chamado de narcotráfico.


“O que é chamado hoje de tráfico clandestino de drogas é decorrência da proibição. Proíba-se o tabaco ou chocolate, e haverá tráfico de tabaco e de chocolate”, afirma o historiador pela USP Henrique Carneiro, pesquisador de História da Alimentação, das Bebidas e das Drogas. Para ele, o narcotráfico é “um subproduto da proibição, que aumentou a renda desse fluxo comercial ao torná-lo proibido”.


“A lógica é simples: tem gente desejando um produto. À medida que se proíbe, se alimenta esse mercado [ilícito]. O cigarro, por exemplo, é uma droga legal, mas, na Europa, em que os impostos são muito altos para desestimular o hábito de fumar, há um mercado ilícito. Esse tipo de mercado está sempre relacionado a graus de controle”, diz o pesquisador do Núcleo de de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Neip), Thiago Rodrigues, autor de “Narcotráfico – uma guerra na guerra” (Ed. Desatino).


No livro, o autor relaciona algumas das leis e convenções que limitaram o acesso a estas substâncias até a posterior proibição. Um dos primeiros, o Food and Drug Act americano (Lei Federal sobre Alimentos e Drogas), de 1906, ainda não instituía a proibição, mas regulamentava a produção e venda, inaugurando a intervenção governamental no tema.

Com a aprovação nos EUA da Lei Seca, em 1919, segundo o autor, brotariam as organizações ilegais que se dedicariam a suprir o mercado ilícito de álcool, como as máfias. “A revogação da Lei Seca, em 1933, não significou um retrocesso nas políticas repressoras do governo. Ao contrário, a relegalização do álcool foi acompanhada pelo endurecimento das medidas legais sobre psicoativos já proibidos, como a cocaína, e outros que não sofriam restrições diretas, como a maconha”, escreve no livro.

Mas foi a convenção internacional realizada pela Organização das Nações Unidas em 1961 que estabeleceu as regras que pautariam as políticas sobre drogas em vários países. O critério era proibir drogas que não tinha uso médico. As substâncias que não foram consideradas como de uso médico passaram, a partir de então, a ter seu uso proibido ou submetido a controle.

“A partir daí, países que foram assinando, incluindo o Brasil, passaram a se organizar a partir deste tratado internacional. Depois, a Convenção de Viena em 1988 deu as bases para o regime legal das drogas. Esta convenção foi renovada em março, em Viena, e mantém as listas e substâncias que são totalmente banidas continuam sendo alvo da guerra às drogas”, disse.

A chamada “guerra às drogas” foi declarada pelo então presidente dos EUA Richard Nixon em 1972, fortalecendo assim a deflagração explícita de combate ao tráfico, com operações internacionais de alcance cada vez maior.

Foto: Carlos Ariel Salazar

Plantação de coca na região amazônica da Colômbia (Foto: Carlos Ariel Salazar)

América Latina

O fortalecimento do combate às drogas vindas do México e da Jamaica, principalmente à heroína e à maconha, criou dificuldades na produção nestes países. Com isso, o plantio da coca no litoral colombiano, já tradicional, recebeu um forte impulso.

“Na América Latina havia condições preexistentes que auxiliaram a expansão da economia narcotraficante”, escreve Rodrigues em seu livro. Entre as vantagens, o pesquisador cita a questão climática, com regiões quentes e úmidas, para o cultivo da cannabis, e altiplanos frios e secos, próprios para o cultivo de coca. Some-se a isso o know-how aplicado na cultura milenar das folhas de coca nos Andes.

Na virada dos anos 1970 para os 80, a cocaína, bastante consumida nos primeiros anos do proibicionismo, voltou à cena como estimulante em um mercado de trabalho cada vez mais frenético. Segundo Rodrigues, a droga “parecia se encaixar com precisão à voracidade dos circuitos financeiros de Wall Street”.

A economia do tráfico, então, assumiu um novo circuito. Tradicionais regiões de plantação de coca na Bolívia e Peru aumentaram sua produção para o mercado ilícito; a pasta produzida era repassada a vendedores colombianos, que a transformavam na droga, encaminhada aos centros consumidores dos EUA e da América Latina.

Países como Brasil, Equador, Panamá e Venezuela serviam ainda de entreposto logístico da droga e eram centros de consumo de menor importância.

Brasil

A guerra norte-americana ao tráfico assume características ainda mais rigorosas com a queda do Muro de Berlim, em 1989. O vácuo deixado pelo fim do perigo comunista foi gradativamente ocupado pela ameaça do narcotráfico.

Sob a influência dos EUA, a política de repressão brasileira passou a mandar para a mesma prisão guerrilheiros de esquerda e também seqüestradores ou assaltantes sem qualquer vínculo político. Segundo Rodrigues, foi neste contexto que surgiu a Falange Vermelha, mais tarde rebatizada de Comando Vermelho (uma referência aos companheiros de cela marxistas), uma das primeiras organizações a se estruturar como empresa do tráfico no Rio de Janeiro.

A esta altura, o país já despontava não mais como corredor para o tráfico internacional de drogas, mas como um grande mercado produtor e consumidor. Tendência esta que se repetiu nos demais países latino-americanos, que eram até então considerados de passagem, segundo o pesquisador do Neip.

“O Brasil, além de mercado importante, tem uma expressividade na produção de algumas drogas. Parte da maconha consumida no Brasil é produto brasileiro, principalmente vinda do chamado polígono da maconha, e também de outras substâncias, principalmente sintéticas, que podem ser produzidas num ambiente urbano, não são um agrobusiness”, diz Thiago Rodrigues.

Descriminalização x legalização

O surgimento de organizações como a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia ( veja vídeo abaixo ), que reúne entre seus membros ex-presidentes de países latinos, e revisões nas leis antidrogas de vários países, como Colômbia, Argentina e Méxicoapontam para um esgotamento da guerra às drogas.

Para o historiador Henrique Carneiro, no entanto, as medidas adotadas até agora são ainda “paliativas”. “Elas limitam o processo de criminalização aos meros consumidores, mas continuam deixando o problema do abastecimento irresolvido. A atitude que acho que seria mais coerente seria a legalização de todas as substancias, com formas diferenciadas de acesso.”

Na opinião de Thiago Rodrigues, a discussão atual sobre o combate ao comércio ilegal de drogas deve passar por um reconhecimento da associação entre repressão e narcotráfico.

“A partir daí, vão se derrubar preconceitos, idéias fixas a respeito disso, verdades construídas ao longo das ultimas décadas, que impedem que as pessoas pensem sem muitas amarras a respeito do tema. Se não houver essa disponibilidade, a gente vai continuar tendo facções criminosas e balas perdidas.”


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