Por Matheus Blach
O processo pelo qual a Igreja Católica veio para América pode ser observado através de uma divisão didática em três fases: transplantação; consolidação e cristianização do imaginário. O objetivo deste texto é abordar estes três momentos caracterizando a conquista espiritual espanhola na América. Entretanto, antes de analisar o processo em si, torna-se necessário entender o contexto da Igreja na Península Ibérica à época da chegada dos espanhóis ao “novo mundo”.
Portugal e Espanha foram pioneiros nas grandes navegações devido às condições políticas e econômicas que alcançaram. Foram os primeiros a formarem um Estado unificado com poder centralizado e exercito permanente, além de obterem motivações variadas partindo de diversas estruturas da sociedade, política, economia, religião e cultura. No âmbito da política e economia; de um lado contavam com uma burguesia comercial fraca que, apesar do interesse e coragem, não tinha condições “financeiras” de aventurar-se sozinha em busca de novas rotas para o comércio com as índias; e por outro lado, um Estado que buscava maior estabilidade econômica, que tinha grande interesse na expansão territorial e poder para financiar tais expedições. A convergência destes interesses foi uma das grandes motivações para as viagens de exploração ultramarina. Já no âmbito da religião e cultura, encontraremos dados mais relevantes ao que concerne o objetivo deste texto.
Para explicar a transplantação da Igreja para a América, Barnadas, ao fazer a contextualização da Península Ibérica no período, cita em primeiro lugar a Guerra de Reconquista. Segundo o autor essa foi uma “experiência decisiva” (BARNADAS, 1997). Mas esse contexto medieval com a transplantação da Igreja para a América? E ainda, qual a sua relação com a cultura, religião e mentalidade da época? Os fidalgos espanhóis – uma nobreza enfraquecida que contava apenas com seu título; ou baixa nobreza – vieram para a América buscando ascensão e prestigio diante da sociedade e eram dotados de um espírito cruzadista, missionário, que fora retomado pela Guerra de Reconquista. Ou seja, o imaginário dessa época, dita moderna, ainda era preenchido por obras literárias medievalistas que ressaltavam a antiga ordem dos Cavalheiros Templários, seu código de honra, atos heróicos, intenções catequizadoras e aventureiras. Além disso, a Igreja já temia a ameaça da Reforma Protestante e via nas missões catequizadoras uma forma eficiente de conquistar mais fiéis. A Guerra de Reconquista também proporcionou à Espanha uma característica aglutinadora para a nação, tornando assim, a religião Católica, o elemento identitário do espanhol que tinha como inimigo comum qualquer um que não fosse cristão, católico. O Estado promove o catolicismo como esse elemento aglutinador através de um discurso ideológico a fim de dar sentido à nação, coesão e sentimento comunitário. Ainda assim, Barnadas alerta:
“Seria simplificar demais identificar a Reconquista diretamente ao modelo geral da cruzada, mas houve nela a mesma interação de empresa mundana e propósito religioso.” (BARNADAS, 1997).
A interação de “empresa mundana” e “propósito religioso”, ou seja, entre o Estado e a Igreja presente nas Cruzadas e na guerra de Reconquista também esteve presente na transplantação da Igreja Católica para a América, foi o Padroado Régio. Esta aliança entre a Igreja e o Estado surge de interesses das duas partes. Apesar de constituir um Estado “moderno”, dotado de idéias laicas, “antiteocracráticas”, a coroa espanhola, paradoxalmente, abria enormes áreas de influencia à Igreja Católica na política e o mesmo acontecia em ordem inversa, ou seja, ambas as partes interferiam freqüentemente nos assuntos da outra. A Igreja dava à Coroa a legitimidade de suas ações diante da população, justificava a conquista e em troca o Estado oferecia à Igreja certos privilégios como cargos na alta burocracia do governo no novo mundo e o direito de catequizar e de levar a fé católica aos povos conquistados além de garantir a sua segurança. Sobre o assunto Barnadas nos diz que “tanto a Igreja quanto o Estado tinham a necessidade dos serviços que se prestavam mutuamente.” (BARNADAS, 1997).
A Coroa reservava para si o direito de designar aqueles que receberiam os cargos mais importantes na igreja, aqueles que iriam compor o clero secular, pois era importante que fossem pessoas de confiança e que tivessem desenvolvido determinadas competências para assumir certas responsabilidades. Uma das características da transplantação esta diretamente ligada a esse fator. Foram criadas na América, dentro do território de dominação espanhola, as Dioceses que eram grandes áreas autônomas administradas por um bispo designado pela Coroa, era a forma que a igreja funcionava na América. (BARNADAS, 1997). O bispo tinha autoridade, dentro da sua Diocese ou sua jurisdição, para interferir em assuntos religiosos, políticos, jurídicos, culturais, sociais, econômicos e a sua atuação se dava através de assembléias, os chamados sínodos e concílios. As assembléias eram convocadas para a discussão e tomadas de decisões importantes. Os sínodos agiam no âmbito local e os concílios eram reuniões gerais com o clero secular presente para as decisões mais importantes da Igreja. De modo geral a atuação do clero secular aqui teve um caráter de contra-reforma diante da ameaça luterana. O objetivo era restaurar a pratica do catolicismo. A religião transplantada para a América iria se redimir de seus erros do passado e construir o reino cristão definitivo, ”para muitos, o Novo Mundo era a oportunidade que a Providência oferecia para o estabelecimento do verdadeiro “reino do evangelho”, ou “cristianismo puro”: a restauração da Igreja primitiva” (BARNADAS, 1997). As Dioceses contavam ainda, com os seminários, que tinham a “função potencialmente dupla de colégio-hospedaria” (BARNADAS, 1997) para a formação do clero.
Serge Gruzinski demonstra de forma brilhante como, na prática o Padroado Régio favoreceu a Coroa e a Igreja. Segundo o autor através da perseguição religiosa – neste caso a iconoclastia, o que veremos detalhadamente mais adiante – os espanhóis encontraram “… a justificativa moral para o saque aos tesouros indígenas e a exploração desavergonhada das populações” (GRUZINSKI, 1992), ou seja, a Igreja com a sua expansão da fé católica combatia a adoração dos ídolos presente nas religiões dos nativos recebendo apoio militar da Coroa que se aproveita disto para, entre outros, apoderar-se de forma legitima dos ídolos dos nativos que eram ornamentados ou totalmente feitos com pedras e metais preciosos.
A interação entre as duas estruturas foi de tal importância que para Barnadas “a política eclesiástica tornou-se mais um aspecto da política colonial” (BARNADAS, 1997). Mais adiante perceberemos isso com maior clareza, quando tratarmos da Santa Inquisição e identificarmos seu caráter “político-administrativo-estratégico”. Contudo, a Igreja ainda estava submetida à autoridade da Coroa, a aliança parecia ser mais interessante para o Estado. Mas diante da ameaça do protestantismo, da dificuldade da Igreja local em estabelecer uma relação mais estreita com Roma e da impossibilidade de investir por conta própria na expansão da fé católica no novo mundo a Igreja consegue através do Padroado Régio vantagens que de outra forma estavam fora de cogitação àquela época. Com o Padroado Régio, a instituição das Dioceses e os concílios e sínodos a Igreja havia conseguido alcançar a América e construir os alicerces da estrutura que viria a consolidar aqui.
Dada a transplantação da Igreja Católica para a América a instituição entrou em uma fase de relativa estabilidade, visível, por exemplo, pelo fato de que o número de assembléias convocadas neste período diminuiu drasticamente em relação à fase anterior, a Igreja vivia o momento de sua consolidação na América. Segundo Barnadas:
“Onze concílios provinciais foram celebrados no continente entre 1551 e 1629 [...] nenhum foi convocado durante o século e meio seguinte uma prova em si mesmo de que a Igreja estava agora bem estabelecida” (BARNADAS, 1997).
Com uma maior influencia local, inclusive mais que as Dioceses, as Paróquias exerceram um papel importantíssimo na consolidação da Igreja. O Clero Secular as constrói para os espanhóis que viviam aqui. Através delas estabelecem o controle administrativo direto da população local. Para Barnadas elas são “a base da organização da Igreja” (BARNADAS, 1997). Havia também as doctrinas, fundadas e administradas por membros do clero regular, ou seja, aqueles que não obtiveram grandes cargos na burocracia estatal, geralmente integrantes das ordens religiosas, muitos dos quais tinham feito voto de pobreza. As doctrinas estabeleciam uma relação mais próxima com os nativos, enquanto as Paróquias se constituíam em ambientes urbanos, estas estavam ligadas as áreas rurais, onde a população indígena, explorada vivia e trabalhava para os colonos. Através delas o clero exercia sua função civilizadora da sociedade indígena, ensinava os preceitos religiosos do catolicismo e o modo de vida europeu, organizavam a vida social local, impunham os moldes das relações nas comunidades, realizavam batismos, casamentos, cuidavam da vida dos convertidos e vigiavam as praticas dos que ainda cultuavam os deuses das religiões ameríndias. Essa proximidade estabelecida com a população indígena é uma dos fatores que colocam as ordens religiosas em destaque na consolidação da igreja e na cristianização do imaginário como veremos mais adiante. As ordens religiosas além de estarem mais próximas da população tinham um forte impulso missionário, levar a civilização, a fé católica, ensinar, educar, catequizar era importantíssimo para eles e em suas áreas de domínio a exploração do trabalho, a escravização tendiam a ser mais amenas em relação ao que ocorria nas haciendas dos colonos. Com isso eles tiveram grande influência direta sobre os indígenas e facilitaram muito a institucionalização da Igreja Católica na América.
“Pode-se dizer, sem exagero, que a maior parte do ônus da cristianização da América recaiu sobre essas [...] ordens religiosas. Formaram a reserva estratégica da Igreja, fornecendo homens para a obra missionária na linha de frente, onde quer que fossem abertas áreas de colonização. No caso dos Jesuítas, a proselitismo veio somar-se à importância de sua contribuição no campo da educação” (BARNADAS, 1997).
Através da educação os povos ameríndios foram absorvendo a cultura e a religião católica, o ensino se tornou uma ferramenta de suma importância para a Igreja. As ordens religiosas constituíram universidades na América, porém se dedicavam essencialmente a teologia e filosofia e não havia incentivo algum a pesquisa, pois era considerada uma ameaça a Coroa “educar demais” o povo da colônia. A única função das universidades era a de legitimar o sistema colonial. Apesar disso:
“…cada um desses centros acadêmicos fomentou uma certa atividade intelectual em sua área e lançou as bases de algum tipo de tradição local de pensamento avançado” (BARNADAS, 1997).
Outro fator crucial para a consolidação da Igreja foi o seu enriquecimento. Muitas vezes ao morrer os colonos deixavam grandes riquezas à Igreja em troca dos serviços providos, por exemplo, a missa, o enterro e o dote para as filhas não casadas. Além disso, através do Padroado Régio a Igreja detinha do direito de receber certas tributações como o dízimo. Diversas minas, haciendas e tesouros foram sendo acumulados pela Igreja no decorrer do tempo ao ponto em que em certo momento atuava como uma instituição financeira de crédito, havia se tornado um verdadeiro banco, fazendo empréstimos a juros:
“Começaram utilizando os rendimentos dos legados em bens imóveis para manter as obras de caridade (juzgados de capellanias) e acabaram por se tornar a principal fonte de credito e de investimento de capital na América espanhola colonial” (BARNADAS, 1997).
A presença na America da Santa Inquisição ocorreu durante a perseguição iconoclasta da Igreja aos ídolos das religiões dos nativos. Porém, apesar de ter seu conteúdo de combate ideológico e moral entre as diferentes práticas religiosas e o catolicismo, o seu principal desdobramento para a consolidação da Igreja foi estratégico e político, “sua principal tarefa era suprimir o judaísmo e o protestantismo” (BARNADAS, 1997). Como dito anteriormente, através do Padroado Régio a Santa Inquisição se tornou uma ferramenta política que defendia interesses de ambas as partes, Estado e Igreja. Em síntese, foi uma estratégia de contenção de ameaças, ideológicas e principalmente de soberania política e territorial, pois evitava a todo custo a infiltração de “estrangeiros” na colônia e rebeliões dos nativos, negros e escravos.
Diante das circunstâncias apresentadas apreendemos como se deu a conquista espiritual da Espanha sobre a América colonial nas estruturas políticas e econômicas. Analisaremos agora, no âmbito sócio-cultural, o terceiro momento. A cristianização do imaginário dos povos ameríndios foi resultado da tensão entre as imposições da Igreja Católica e a resistência da tradição nativa gerando um processo de novas leituras e re-significados da cultura. Uma das principais características deste processo foi o empenho da Igreja em combater a idolatria, ou seja, conforme citado anteriormente, a iconoclastia. Para a Igreja “ a adoração aos ídolos era considerada uma aberração estética, [...] uma alienação do espírito [...] e uma impostura cultural” (GRUZINSKI, 1992). Ou seja, segundo os espanhóis os ídolos eram feios, manifestações de Satanás e não representavam Deus, não tinham significado algum. A Igreja também proibia diversas práticas consideradas “feitiçaria”, por exemplo, a interpretação dos sonhos. Apesar de combater simbologia oriunda da cultura nativa, foi através do uso de imagens e símbolos cristãos, diante das dificuldades de comunicação, que a Igreja promoveu a catequização desses povos. Diversos manuscritos, esculturas, afrescos e monumentos foram destruídos e substituídos em detrimento da difusão dos templos, quadros e livros católicos. As imagens católicas estavam expostas por toda a parte e, diferentemente das práticas religiosas tradicionais, promoviam maior acesso e participação da população na religião, o que causou fascínio nos indígenas, logo um facilitador para a conversão. Porém, houve diversas formas de resistência dos nativos que, apesar de se declararem convertidos para não sofrerem represálias, continuavam adeptos às religiões ancestrais. Essa tensão promoveu o sincretismo entre as culturas religiosas. Segundo Gruzinsky, o exemplo mais conhecido é a da Virgem de Guadalupe, a padroeira da América Latina, que seria a representação da Nossa Senhora dos Europeus com características étnicas indígenas, também contamos no Brasil a Nossa Senhora Aparecida, que é negra.
Portanto percebemos que o choque cultural entre os dois mundos gerou imposições, superações e transculturações das estruturas de ambas as sociedades. A complexidade das novas estruturas foi dotada de diversos elementos de duas sociedades distintas que se encontraram. As fases da conquista espiritual da América, transplantação, consolidação e cristianização do imaginário ocorreram de forma que cada uma influenciou as outras formando um complexo processo de transformação da sociedade que foi abarcado pela Igreja Católica, presente em todos os níveis das estruturas coloniais consolidadas na América.
Referências Bibliográficas
BARNADAS, Josep M. (1997), “A Igreja Católica na América espanhola colonial”, in BETHELL, Leslie (org.), America Latina colonial, São Paulo: EDUSP, pp. 521-551
GRUZINSKI, Serge (1992), “A guerra da imagens e a ocidentalização da América” in VAINFAS, Ronaldo (org.), América em tempo de conquista, RJ: Jorge Zahar, pp. 198-207
Fonte: História Magister Vitae