“Outros deram à minha política a denominação de política dos governadores. Talvez tenha sido mais acertado se dissessem política dos estados. Esta denominação exprimiria melhor o meu pensamento.” Foi desse modo que o presidente Manuel Ferraz de Campos Sales (1898-1902) definiu, em seu livro Da propaganda à presidência (1908), o arranjo político inaugurado em seu governo. Um arranjo que haveria de durar até 1930 e que, apesar de sua estabilidade e durabilidade, não ficou imune à crítica dos contemporâneos.
Sylvio Romero, um dos mais prestigiosos intelectuais brasileiros nos anos iniciais da República, convidado em maio de 1908 a proferir conferência sobre a situação política e social do país, escolheu como ângulo de ataque – atividade de sua predileção – o tema das oligarquias. Para ele, o Brasil de então era uma ditadura desarticulada, de joelhos perante o exército e repartida em oligarquias fechadas, em que “campeiam o filhotismo, a denegação da justiça, o desconhecimento de direito aos adversários, a opressão das oposições, a impunidade dos amigos e correligionários”.
Embora forte, a acusação não era original. O mais ácido crítico das oligarquias, e do arranjo político que com elas estabeleceu o presidente Campos Sales, foi exatamente seu irmão, Alberto Sales, que em 1901 diagnosticou o divórcio completo entre a política e a moral. Ele reconhecia como reprováveis os pactos firmados entre os governadores e o Congresso, em que eram esquecidos e desprezados os deveres constitucionais para que todos pudessem se entregar “à gatunagem e à licença, enchendo as algibeiras com o produto do imposto e afugentando os honestos com a perseguição política”. Para ele, “o mundo oficial nos estados, que devia representar o escol da população”, não passava à época, com caríssimas exceções, de “verdadeiros grupos de bandidos, organizados à sombra da Constituição e das leis”.
De que mundo falavam Sylvio Romero e Alberto Sales? Pela datação de suas opiniões, percebemos que elas estavam referidas aos anos iniciais da experiência republicana. Há aqui um curioso contraste entre a novidade do regime e o desencanto com as suas práticas. A chave para o entendimento desse paradoxo pode ser encontrada no próprio desenho e na operação da célebre política dos governadores, ou dos estados, da lavra de Campos Sales.
Na história republicana brasileira, o governo de Campos Sales representa o início da rotinização do regime, ou seja, o estabelecimento das normas de funcionamento político da República Velha, que tinha na alternância de presidentes entre Minas e São Paulo e no voto de cabresto seus maiores exemplos. Embora tenha cabido ao presidente Floriano Peixoto (1891-4) a fama de Consolidador da República, em função da neutralização das ameaças de restauração da monarquia ocorridas em seu governo, coube ao governo de Campos Sales estabelecer as rotinas políticas e institucionais da nova ordem.
O sistema político, embora já configurado em termos formais pela Carta de 1891 – que estabelecia, como dispositivos fundamentais, a República como forma de governo, o presidencialismo como sistema de governo, o federalismo e a divisão dos poderes –, ganha contornos mais concretos através de um pacto não escrito entre o presidente e os chefes políticos estaduais. A formulação desse pacto trazia o reconhecimento, por parte de Campos Sales, da preexistência de uma distribuição natural do poder na sociedade brasileira. Embora as bases legais do poder político tenham sido estabelecidas pela Constituição de 1891, importava a Campos Sales considerar as suas bases reais, segundo ele contidas nos estados e em seus chefes políticos.
A escolha dos estados como base de sustentação da República decorre de uma avaliação da experiência dos dez primeiros anos do regime, marcados por forte instabilidade.
Vários são os fatores da desordem da política brasileira entre 1889 e 1898. Antes de tudo, a Proclamação teve como conseqüência necessária a ruptura com as tradições institucionais do Império, mas sem a introdução imediata de novas regras, o que implicou, de imediato, duas novas fontes de instabilidade: a ação política direta dos militares e uma feroz luta pelo controle político dos estados.
O desafio maior, legado pela caótica primeira década republicana à posteridade do regime, dizia respeito a como definir um novo marco de unidade política nacional. Na tentativa de criar novas instituições, os inventores da Carta de 1891 foram extremamente zelosos em imaginar as partes componentes do novo sistema político em sua total independência. O valor autonomia − presente nas dilatadas atribuições do Legislativo, na virtual irresponsabilidade política do Executivo e na intocabilidade legal dos estados − falou mais alto que o valor integração. O somatório das partes do sistema político deveria ser conseqüência automática e espontânea de sua máxima diferenciação.
A experiência da primeira década republicana provou o contrário. No final do governo Prudente de Moraes (1894-8), ficou evidente que a liberdade do Executivo, do Legislativo e dos poderes estaduais não tendia ao equilíbrio institucional, gerando conflitos de soberania e, por extensão, incerteza.
A nova institucionalização republicana proposta por Campos Sales evitava o fortalecimento das instituições representativas clássicas. A estabilidade, a seu juízo, derivaria de um acordo entre o governo nacional e os chefes estaduais.
O principal objetivo de Campos Sales foi o de resolver o seguinte problema: sendo o presidente e o Congresso escolhidos pelo voto direto dos cidadãos, como garantir o controle do primeiro sobre o segundo?
Com relação a esse dilema, já antes da eleição, e através de seu Manifesto eleitoral, redigido e apresentado em outubro de 1897, Campos Sales defendeu a seguinte teoria: os estados são autônomos, o Parlamento é digno e fundamental, mas quem manda é o presidente. Para tal, uma vez eleito, é necessário entender-se com os chefes estaduais e controlar o Congresso.
O próprio funcionamento da Câmara contribuía para tornar o resultado das eleições legislativas – a serem realizadas em 1900 – imponderável. Segundo a Carta de 1891, a decisão final a respeito da composição do Congresso cabia a ele próprio, através da Comissão de Verificação de Poderes. Na verdade, as eleições eram controladas pelos executivos estaduais, durante as apurações, e pelo Legislativo nacional, no reconhecimento final dos eleitos e na degola dos inimigos. Esse era o coração do Legislativo, poder dotado da magia de engendrar a si mesmo.
A comissão era composta por cinco parlamentares, no início da instalação da nova Câmara, nomeados pelo parlamentar mais idoso entre os presumidamente eleitos, que ocupava então a presidência da Casa. Como notou Campos Sales, a questão estava assim entregue a um certificado de idade.
A inovação política promovida pelo presidente consistiu em alterar o regimento interno da Câmara. O objetivo era restringir, ao mesmo tempo, o alto grau de aleatoriedade e o poder que a Câmara tinha sobre a sua renovação. Através de reforma do regimento, o presidente da Câmara passa a ser o da legislatura anterior (Vaz de Mello, mineiro e aliado do presidente) e o diploma que atesta a eleição dos deputados passa a ser a ata geral da apuração da eleição, assinada pela maioria da Câmara Municipal, encarregada por lei de coordenar a apuração eleitoral.
As eleições, dessa forma, já vêm praticamente decididas antes que a Comissão delibere a respeito dos reconhecimentos. Na maior parte dos casos, a degola da oposição é feita na expedição dos diplomas pelas juntas apuradoras, controladas pelas situações locais. Em caso de dúvida a respeito da eleição de algum postulante, o novo modelo socorre-se da teoria da presunção, também da lavra de Campos Sales: caso ocorra disputa entre candidatos que exibem diplomas e lutam pela mesma vaga, opera a presunção a favor daquele que se diz eleito pela política dominante no respectivo estado. A Câmara é a expressão da direção política dos chefes estaduais.
A legitimidade da Câmara não derivava, portanto, das formalidades legais, mas da ação dos ordenadores de voto. Mandato legítimo é todo aquele que tem por origem a política oficial de seu estado. Para a montagem dessa verdadeira reforma política, Campos Sales dirigiu-se diretamente aos chefes estaduais mais importantes para tornar a modificação do regimento efetiva.
A política que daí resulta recebe ampla aceitação dos chefes dos poderes estaduais. Ela garante aos grupos detentores do poder condições de eternização nos governos estaduais. Estavam definidas as bases do grande condomínio oligárquico caracterizado, segundo Rui Barbosa, pelo “absolutismo de uma oligarquia tão opressiva em cada um de seus feudos quanto a dos mandarins e paxás”.
As primeiras eleições realizadas à sombra desse pacto, em 1900, foram assim descritas pelo jornalista Alcindo Guanabara: “o que se passa nas seções eleitorais é mera comédia para aparentar que se observa a lei”. Como de hábito, aparecem na Câmara duplicatas de diplomas, submetidas agora a um novo poder: a guilhotina Montenegro, assim chamada a propósito do desempenho do líder da maioria, Augusto Montenegro. Sua eficácia foi total, segundo o mesmo jornalista: “Estado por estado, os oposicionistas (...) foram executados sem demorado sofrimento”. A Câmara, assim configurada, passa a ser um espelho da distribuição natural do poder.
Com Campos Sales, a República encontrou a sua rotina. Como toda ordem emergente, esta também tratou de negar o passado. O singular, nesse caso, foi que, do ponto de vista da construção institucional, as regras definidas pelo pacto oligárquico não tiveram como contraponto o regime que a República substituiu. A referência negativa para a nova ordem não foi o antigo regime, mas a infância do próprio regime republicano. A lógica política do pacto oligárquico e a definição do governo como instrumento de administração podem, pois, ser enquadradas como sendo a busca por um princípio de ordem, um equivalente funcional do Poder Moderador.
Campos Sales foi o presidente menos votado em toda a história republicana. Foi eleito com apenas 174.578. votos, 116.305 a menos que seu antecessor, Prudente de Moraes, e 141.670 a menos que seu sucessor, Rodrigues Alves (1902-6). Tratava-se, com certeza, de uma República com cidadãos impotentes em termos políticos, porém não desprovidos de capacidade de expressão. É o que atesta a descrição feita pelo publicista José Maria dos Santos, quando da despedida de Campos Sales, em 1902, da capital da República.
Quando o seu bota-fora surgiu na praça fronteiriça à estação, levantou-se da massa popular, que se comprimia por trás dos cordões de polícia, uma assuada verdadeiramente indescritível. Por cima das linhas de soldados, vinha-lhe em meio aquela fragorosa corrente de injúrias, toda uma saraivada de projéteis, (...) desde ovos e legumes adquiridos nas quitandas da vizinhança, até frutos verdes arrancados às jaqueiras do campo de Santana.
Essa manifestação da plebe carioca, que se estendeu furiosa por dez quilômetros, acompanhando o comboio, é parte obrigatória de qualquer avaliação do governo Campos Sales.
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