Dos barcos leves da Antiguidade aos transatlânticos, o homem convive com o perigo dos naufrágios. Hoje, cada embarcação que repousa no fundo do mar conta uma parte da história das navegações
por Maria Carolina Cristianini
Titanic, de 1998, é o filme mais visto de todos os tempos (só no Brasil, atraiu mais de 16 milhões de espectadores). Ele conta a trágica saga do transatlântico que, em 1912, bateu no gelo e afundou noAtlântico Norte. Bem ao gosto de Hollywood, a história tem aventura, suspense e drama – mas não é assim tão original. Desde o começo das navegações pelo oceano, por volta de 4000 a.C., os homens têm que encarar a ameaça dos naufrágios.
É provável que os primeiros a explorar o mar longe da costa tenham sido moradores das ilhas doPacífico, viajando em pequenas embarcações em busca de novos locais de pesca. Na Antiguidade, algumas civilizações se tornaram verdadeiros impérios navais, como a dos fenícios. Naquela época, as navegações costumavam ser costeiras, e o perigo maior estava em ser jogado pelas ondas contra os rochedos.
Durante a Idade Média, as nações mais poderosas da Europa deixaram as águas e seus perigos um pouco de lado. “O mar era secundário porque o poder estava nas mãos de quem tinha terras, nos feudos”, diz Leandro Domingues Duran, pesquisador de História Marítima da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). O fim do período medieval, no século 15, foi marcado pela chegada das grandes navegações. Portugal e Espanha saíram na frente, colocando a América nos mapas e nas rotasmarítimas.
Mesmo com incêndios, tempestades e a ameaça de ataques de militares inimigos e piratas, navegar era preciso. Até o século 20, os navios seguiram como protagonistas das relações entre os países. Amaré começou a mudar em junho de 1919, quando os ingleses Arthur Whitten Brown e John Alcock se tornaram os primeiros a cruzar o Atlântico pelo ar sem escalas, saindo do Canadá e pousando na Irlanda. O glamour dos transatlânticos foi ofuscado pela agilidade do avião – que, além de transportar pessoas e carga em tempos de paz, mostrou-se mortal em tempos de guerra. Hoje, para estudar os milênios em que os navios dominaram o mundo, os arqueólogos têm que olhar para o fundo do mar. Veja, a seguir, oito casos que contam um pouco da história das navegações.
Mistério mediterrâneo
Muita coisa mudou nos últimos 3 mil anos – mas o inverno na costa mediterrânea da Turquia continua hostil aos marinheiros. Provavelmente foram as chuvas e os ventos fortes dessa estação que fizeram oUluburun naufragar, por volta de 1300 a.C. Ele foi achado em 1983, quando um pescador de esponjas notou algo estranho no fundo de um precipício marinho. Com suas 24 âncoras de pedra, o barco foi batizado com o nome da região em que foi encontrado, perto da cidade turca de Kas.
Mais antigo naufrágio já estudado, o Uluburum ainda é um enigma para a arqueologia marinha. “O mais provável é que ele estivesse em missão diplomática e comercial em direção a Micenas, na Grécia”, diz Julio Gralha, professor de História Antiga da Unicamp. Acredita-se que o barco levasse presentes de um soberano sírio para um dirigente grego.
As pesquisas no Uluburun começaram ainda em 1983, lideradas pelo arqueólogo americano George F. Bass. No barco foram achadas 10 toneladas de cobre e estanho, provenientes do Chipre – provavelmente uma das escalas da viagem. Também foram resgatados objetos de vidro característicos da Síria e da Palestina. Entre os artigos de luxo encontrados havia um escaravelho dourado com o nome da egípcia Nefertiti, que reinou no Egito na segunda metade do século 14 a.C.
Mestres dos mares
Nem o nome adiantou. Batizado em homenagem ao deus fenício protetor dos navegadores, o Melkarthfoi a pique em meados do século 5 a.C., provavelmente numa tempestade que o jogou contra os rochedos no Mediterrâneo. Esse era um risco constante mesmo para os fenícios, exímios navegadores. Por viver numa faixa estreita entre a montanha e o mar (que hoje fica no Líbano e na Síria), eles não tinham terras boas para a agricultura. Mas, a partir de 1400 a.C., construíram uma grande rede de comércio marítimo no Mediterrâneo, comprando matérias-primas baratas e vendendo produtos manufaturados.
O Melkarth foi descoberto em 1998, pela equipe da Odyssey Marine Exploration, empresa americana especializada na busca de embarcações naufragadas. Ele estava rodeado por cerca de 200 ânforas. De acordo com o mergulhador americano Greg Stemm, diretor de operações da Odyssey, esses jarros de cerâmica, usados para transportar produtos como mel e vinho, eram típicos da antiga colônia fenícia de Cartago, no norte da África.
Caravela pioneira
A invasão da cidade de Constantinopla pelos turcos-otomanos, em 1453, criou um grande problema para o Ocidente. O porto daquela cidade ligava o Mediterrâneo ao Mar Negro e servia como porta de entrada para a Ásia. Com essa passagem bloqueada, o Atlântico virou o principal caminho para encontrar novas rotas até as riquezas do Oriente. Portugal, então, despontou como potência marítima.
O trunfo dos lusitanos eram as ágeis caravelas, das quais o Ria de Aveiro A foi uma versão pioneira, construída em carvalho. De acordo com a análise dos destroços, a caravela afundou entre 1424 e 1469, vítima de um incêndio. A tripulação, que não devia passar de cinco homens, não deve ter tido chances de sobrevivência: apenas um em cada dez marinheiros portugueses da época sabia nadar.
O barco ganhou esse nome porque foi achado na Ria de Aveiro, uma laguna próxima à cidade de Aveiro – a façanha coube a um pescador, em 1992. A cerâmica presente na embarcação virou referência para os estudiosos, já que em sítios arqueológicos terrestres, que ficam expostos, é quase impossível encontrar muitas peças de uma mesma época juntas e inteiras.
Morte na armada
Em julho de 1588, sob as ordens do rei Filipe II, zarparam da Espanha 130 barcos, com cerca de 25 mil homens. Seu objetivo, após dois anos de preparativos, era mais do que ambicioso: invadir a Inglaterra. Mas, na noite de 27 de julho, a Armada Espanhola, chamada de “invencível”, foi apanhada de surpresa pelos britânicos e derrotada. Os navios espanhóis que sobraram bateram em retirada rumo à terra natal. Entre eles, a galera Girona.
Com 531 tripulantes, o navio não resistiu aos ventos fortes de uma tempestade e teve o leme quebrado. Para fazer os reparos, a tripulação seguiu rumo à Escócia. No caminho, socorreu os marinheiros de outros dois barcos da frota, o que resultou numa superpopulação a bordo, beirando 1300 pessoas. Em 28 de outubro, uma nova tempestade jogou a galera contra um rochedo. O Girona partiu-se ao meio. Acredita-se que menos de dez tripulantes tenham sobrevivido.
Em 1965, o mergulhador belga Robert Sténuit começou a procurar o Girona. Conversando com os moradores do norte da costa irlandesa, que conheciam histórias sobre o naufrágio, ele chegou à baía de Port Na Spaniagh, na região de Antrim. Lá, em 1967, achou o navio. Entre os mais de 12 mil objetos recuperados, estavam dois canhões de bronze e uma pequena fortuna em jóias e pedras preciosas.
Tesouro das Américas
A derrota para os ingleses freou a expansão do Império Espanhol, mas não o impediu de continuar explorando suas colônias na América. Galeões voltavam para a Espanha cheios de prata, ouro, pedras preciosas e produtos agrícolas. Normalmente, viajavam em comboio por questão de segurança. Em 4 de setembro de 1622, junto a outros 27 barcos, o Nossa Senhora de Atocha zarpou de Havana (hoje capital de Cuba) com a missão de proteger a retaguarda da frota.
Após a partida, o clima começou a piorar. O mar ficou revolto e, no dia seguinte, o Atocha e outras quatro embarcações entraram numa grande tempestade. Era um furacão. Com as velas danificadas e os mastros partidos, o galeão já não podia manobrar. Em 6 de setembro, foi lançado contra recifes e afundou rapidamente. Das 265 pessoas a bordo, apenas cinco se salvaram.
A carga submersa ficou conhecida como o Tesouro das Américas: incluía 24 toneladas de prata e 125 barras de ouro. Os esforços para encontrar o Atocha só cessaram em 1985, quando a equipe da Treasure Salvours, empresa americana especializada em buscas submarinas, o localizou no sul da Flórida, recuperando parte do tesouro.
Armas inúteis
“O desejo de Deus será cumprido.” Foi o que o capitão inglês John Wordsworth disse ao saber que o seu Earl of Abergavenny afundaria em minutos. O navio era um dos maiores da Companhia Inglesa das Índias Orientais – organização comercial fundada em 1599 que, após dois séculos de disputa contra holandeses, conseguira dominar as rotas que levavam à Índia e à China. A embarcação tinha zarpado de Portsmouth, na Inglaterra, em 1º de fevereiro de 1805, rumo à China. Levava uma fortuna em moedas de prata e mercadorias.
No século 19, mesmo os navios mercantes ingleses eram fortemente armados com canhões – o Earl of Abergavenny tinha 30. Naquela época, por causa dos ataques de piratas, essa precaução era necessária (entre 1805 e 1815, nada menos que 5314 embarcações britânicas foram capturadas por corsários). Mas isso nada adiantou contra as forças da natureza. Após quatro dias de mau tempo, ventos danificaram os mastros e o comandante decidiu voltar. Na noite do dia 5 de fevereiro, a embarcaçãochocou-se contra rochedos no cabo de Portland, ao sul da Inglaterra. Os porões se encheram de água e, às 23h, o navio afundou. Das 402 pessoas a bordo, pelo menos 260 morreram.
No final de 1805, após tentativas fracassadas de resgatar as mercadorias, entrou em cena o inglês John Braithwaite. Para descer até o Earl of Abergavenny, ele usou um sino de mergulho – uma espécie de escafandro primitivo, com uma mangueira de ar ligada à superfície. Com a engenhoca, ele recuperou boa parte da carga.
O fim do mito
No início do século 20, cerca de 1 milhão de imigrantes chegavam anualmente aos Estados Unidos. Muitos eram europeus que queriam fazer negócios ou procurar trabalho. Na luta pela liderança no transporte de passageiros no Atlântico Norte, a empresa inglesa White Star Line construiu três navios: o Olympic, o Titanic e o Britannic. O segundo ficaria muito famoso, mas não pelos motivos desejados.
Com 46 mil toneladas, o Titanic era considerado insubmergível. Ele partiu para sua viagem inaugural em 10 de abril de 1912, de Southampton, na Inglaterra, rumo a Nova York. No dia 14, o capitão Edward J. Smith recebeu seis avisos de outros navios sobre a existência de icebergs na região, mas não achou que gelo flutuante pudesse ameaçar o Titanic. Sua confiança iria por água abaixo. Às 23h40, o sino dos vigias tocou três vezes, indicando algo estranho no caminho. Era um enorme iceberg. A ordem foi dar marcha à ré a toda potência. De nada adiantou. A massa de gelo bateu contra o casco, fazendo cortes e buracos em seis compartimentos da proa, logo invadidos pela água.
Às 2h20 do dia 15, o Titanic submergiu, matando 1522 das 2227 pessoas a bordo. Mais de 70 anos se passaram até que, em setembro de 1985, o explorador americano Robert Ballard conseguiu localizar os destroços da tragédia, a 3,5 quilômetros de profundidade. Uma sonda fotografou partes do Titanic, como caldeiras e chapas de aço. As imagens confirmaram que, conforme relatos da época, o navio se partiu em dois antes de afundar.
A gota d’água
Quando a companhia White Star Line encomendou o Titanic, um dos objetivos era superar o Lusitânia, orgulho da rival Cunard Line. Esse luxuoso transatlântico de 1906 fazia uma vez por mês o trajeto entre Liverpool, na Inglaterra, e Nova York, nos Estados Unidos. Ele conseguiu sobreviver aos icebergs do Atlântico Norte, mas não escapou de um destino trágico.
Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, submarinos alemães saíram à caça de barcos britânicos. Mesmo sabendo do perigo, no dia 1º de maio do ano seguinte, 1962 pessoas embarcaram no Lusitânia e saíram dos Estados Unidos rumo à Inglaterra. Nos seis primeiros dias da viagem, 23 navios mercantes foram atacados no Atlântico Norte. O Lusitânia quase escapou, mas, perto da Irlanda, foi atingido por um torpedo alemão. Em 18 minutos, foi a pique.
Foram resgatados 764 sobreviventes. Entre os mortos, estavam 128 cidadãos americanos. O naufrágio acabou sendo um dos argumentos para que, em 1917, os Estados Unidos decidissem entrar na Primeira Guerra – ao lado dos ingleses e contra os alemães. O primeiro a explorar os destroços foi o mergulhador americano John Light, em 1960.
Origem: Fenícia
Carga: ânforas (vasos de cerâmica) com produtos variados
Comprimento: 15 metros
Data do naufrágio: meados do século 5 a.C.
Localização: região oeste do Mar Mediterrâneo (encontrado em 1998)
Origem: Síria
Carga: lingotes de cobre e estanho, vidro, jóias e frascos de perfume
Comprimento: 16 metros
Data do naufrágio: cerca de 1300 a.C.
Localização: costa da Turquia, próximo à cidade de Kas, (encontrado em 1983)
Nossa Senhora de Atocha
Origem: Espanha
Carga: prata, ouro, moedas e jóias
Mortos: 260 pessoas
Comprimento: 33,5 metros
Peso: 550 toneladas
Data do naufrágio: 6 de setembro de 1622
Localização: sul da Flórida, nos Estados Unidos (encontrado em 1985)
Girona
Origem: Espanha
Carga: 50 canhões, chumbo e cerâmica
Mortos: cerca de 1290 pessoas
Comprimento: 45 metros
Peso: 800 toneladas
Data do naufrágio: 28 de outubro de 1588
Localização: região de Antrim, ao norte da Irlanda (encontrado em 1967)
Ria de Aveiro A
Origem: Portugal
Carga: cerâmica
Mortos: três a cinco pessoas
Comprimento: 18 metros
Data do naufrágio: entre 1424 e 1469
Localização: Ria de Aveiro, Portugal (encontrado em 1992)
Origem: Inglaterra
Carga: passageiros
Mortos: 1522 pessoas
Comprimento: 270 metros
Peso: 46329 toneladas
Data do naufrágio: 15 de abril de 1912
Localização: Atlântico Norte (encontrado em 1985)
Earl of Abergavenny
Origem: Inglaterra
Carga: metais (como prata, cobre e estanho), porcelana, bebidas e vidro
Mortos: cerca de 260 pessoas
Comprimento: 176 metros
Peso: 1400 toneladas
Data do naufrágio: 5 de fevereiro de 1805
Localização: sul da Inglaterra
Lusitânia
Origem: Inglaterra
Carga: passageiros e munição
Mortos: 1198 pessoas
Comprimento: 240 metros
Peso: 31550 toneladas
Data do naufrágio: 7 de maio de 1915
Localização: litoral sul da Irlanda
Fonte: