Irresistível para as mulheres, insuperável pelos homens, ele entrou para a história como protagonista de fantásticas aventuras amorosas. Porém, até hoje persistem as dúvidas sobre se tudo não passou de imaginação, exagero ou mera literatura
por Clézio Veloso
Se para representar a Idade Média proliferaram os contos de cavalaria, que inundaram nossa imaginação com jovens em armaduras brilhantes lutando pela honra de suas donzelas, quando pensamos no século 18 vêm-nos à mente reis coroados e nobres envolvidos apenas com o diz-que-diz das cortes européias, amores proibidos e duelos entre cavalheiros. Se esse século virasse um filme (na verdade, já rendeu vários), o ator principal bem poderia ser Giacomo Giovanni Casanova. Ninguém soube viver tão bem como esse aventureiro nascido em Veneza, que se tornou mundialmente conhecido como o maior conquistador de todos os tempos. Sua fama surgiu com a publicação de um livrochamado Memórias, cuja autoria é atribuída a Casanova.
A obra, considerada um dos mais importantes retratos europeus daquele período, veio à luz cerca de 30 anos depois de sua morte e narra as proezas de um homem que nunca trabalhou ou derramou uma gota de suor e ainda assim amealhou fortunas e adquiriu conhecimentos. Mas foi ao lado de damas da corte, princesas e rameiras com as quais se deitou que ele construiu sua fama de conquistador. Mesmo desprovido de elementos particulares de sedução, não teria havido mulher que resistisse aos seus encantos.
Uma história perfeita demais para ser verdade. E é provável que ela não seja real mesmo. Praticamente tudo que sabemos sobre a vida de Casanova é narrado nas Memórias. Ali, ele surge como um gênio, poliglota, intelectual, aventureiro, espião, milionário e, é claro, conquistador. Todos os ingredientes necessários para fazer de qualquer livro um best seller – e de Casanova um personagem eterno. O problema é que nem mesmo a autoria da obra é completamente consensual. E, sobre seu conteúdo polêmico, ainda se discute que parte Casanova realmente viveu e o que ele (ou foram seus editores?) inventou.
De fato, Giacomo Giovanni Casanova surgiu para o mundo com a publicação póstuma de suasMemórias. Até então apenas os moradores da pequena cidade de Dux, na Boêmia, tinham ouvido falar dele. Ali, onde passou os últimos anos de sua vida como bibliotecário do conde Joseph Charles de Waldstein, ele é descrito em correspondências da época como um homem rabugento e com o costume de contar histórias que ninguém levava em consideração. “Um veneziano de fértil imaginação, devotado às suas narrativas e a constantes intrigas. Neste porto de tranqüilidade, ele estava sempre a procurar querelas”, escreveu o príncipe de Ligne, que era sobrinho do conde.
Os cidadãos de Dux quiseram até expulsá-lo da vizinhança, porque dizia obscenidades às meninas que encontrava. Brigou com os padres da igreja local e intrigou-os com o conde. Recusava-se a pagar o que comprava, reclamava dos criados, da comida e da falta de atenção. Seria esse velho rabugento e encrenqueiro, que vivia enfurnado entre livros empoeirados, o maior amante de todos os tempos?
Menino prodígio
O que se sabe do verdadeiro Casanova é muito pouco. Nascido em Veneza (que então era um reino independente, mas hoje faz parte da Itália), em 2 de abril de 1725, ele era filho de um casal de atores, Gaetano Giuseppe Giacomo e Zanetta Farussi. Na época, os artistas iam aonde os nobres e reis estavam. Assim, os pais de Casanova viviam viajando de cidade em cidade, se apresentando às cortes em Lyon, Viena e Paris. Mas sempre voltavam para casa. “Em Veneza, o jovem Giacomo deve ter conhecido artistas de rua, andarilhos, jogadores e malandros, que viviam de pequenos golpes”, escreveu James Rives Childs, autor de Casanova – Uma Nova Perspectiva, uma das mais completas biografias sobre o conquistador. “Em Memórias, Casanova descreve em detalhes situações com as quais deve ter convivido na intimidade”, afirma Childs.
No final do século 18, Veneza era uma cidade cosmopolita. Seu movimentado porto recebia viajantes de toda a Europa, árabes do norte da África e mercadores turcos. Vendia-se e comprava-se de tudo. Enriquecia-se rápido, faziam-se amigos, cultivavam-se rivais. “Havia um clima de festa quase constante. Tanto nos grandes bailes promovidos pelos nobres quanto nos carnavais de rua, que arrastavam multidões mascaradas”, diz Childs.
A partir daí, entramos num período de sua vida que somente as Memórias relatam. Segundo o próprio Casanova, ele teria aprendido a ler e a escrever aos 8 anos de idade. Em 1734, após a morte do pai, ele foi colocado num internato em Pádua. Lá teria estudado sob a orientação de padres e obtido, aos 17 anos, o grau de doutor eclesiástico, na Universidade de Pádua. Nessa época, ele teria adquirido os primeiros conhecimentos de química, matemática, esgrima, filosofia e equitação. Também teria aprendido o latim, o grego, o francês, o hebreu, um pouco de inglês e também do espanhol.
Aos 20 anos, ele já vivia solto pelo mundo. No campo profissional foi um privilegiado, exercendo tantas atividades quantos eram os seus talentos. Pequeno industrial, violinista, jogador de cartas, diplomata, espião, empresário e tradutor. Também teria sido o fundador da loteria na França. De nada disso, no entanto, temos provas irrefutáveis. Sabe-se apenas que ele realmente falava outros idiomas. Há textos seus em latim – o que não chegava a ser um prodígio naqueles dias – e grego (um grego sofrível, é verdade, mas vá lá).
Mas, apesar da variedade de ofícios, nunca chegou a desenvolver nenhuma carreira específica. Pois desde muito jovem ele teria descoberto sua verdadeira vocação. Viver dos favores dos amigos e, sobretudo, das amigas, foi durante toda a sua vida a principal fonte de recursos. Moreno, alto, esbanjador e inteligente, Giácomo Casanova tinha uma presença marcante entre a nobreza européia. “Frederico, o Grande, teria-o tomado por um homem de rara beleza”, escreveu o austríaco Stefan Zweig em Três Poetas de sua Vida - Casanova, Sthendal, Tolstoi. A boa impressão que ele causou no poderoso rei da Prússia era ainda maior entre as mulheres. Seu primeiro caso amoroso narrado emMemórias foi no tempo do colégio, em Pádua. Ele teria feito sexo com Bettina, irmã de um amigo. Casanova tinha 9 anos de idade e ela passava dos 30. E ela lhe teria ensinado tudo sobre como agradar as mulheres.
Seus casos são muitos e se multiplicam nas diferentes biografias. Tanto que é difícil contar. Na verdade, há gente especializada em fazê-lo. O historiador alemão Friedrich Wilhelm Barthold foi o primeiro a tentar e publicou, em 1846, a obra Personagens Históricos nas Memórias de Casanova. Segundo ele, Casanova possui um currículo insuperável: ele transou com 5575 mulheres!
As táticas de conquista utilizadas por Casanova variavam conforme o alvo (cada cor de cabelo, por exemplo, exigia uma estratégia distinta), mas o galanteio era a primeira de suas abordagens. O truque era dar a elas a impressão de que ele correspondia ao que desejavam. Tanto mais perfeito quisessem um homem, tanto mais ele seria. Se preferissem a rudeza dos camponeses, num matuto ele se transformava. Além disso, ele trabalhava duro para agradar a todas.“Perito em preliminares, ele era capaz de passar um dia inteiro entre carícias e pequenos jogos sexuais. Ninguém melhor que ele sabia tratar uma mulher”, escreveu Barthold.
A reputação de Casanova impressiona ainda mais se levarmos em consideração a forma como as mulheres viviam e se comportavam na Europa do século 18. Respeito e decência eram a base da educação das jovens venezianas – pelo menos as da nobreza, que as da burguesia procuravam imitar. Para se ter uma idéia, elas se dirigiam aos pais por “senhor meu pai” e “senhora minha mãe” e raramente se relacionavam diretamente com pessoas de fora do círculo familiar. Para aprender as boas maneiras eram encaminhadas aos conventos, onde ficavam sob a guarda das freiras.
As peculiaridades dos trajes femininos daqueles dias deram origem a um dos mais curiosos capítulos das Memórias. Ao lado das habilidades com a espada, a oratória e os jogos de lógica, Casanova gaba-se de competência para manusear as vestes femininas, sempre com o intuito de se livrar delas, claro. O traje íntimo de uma senhora era composto por tiras de tecido apertadas à cintura e ajustadas com hastes de metal ou de madeira, que desciam em forma de lança pelas pregas das saias. Em cima disso ainda vinha um saiote (alguns não tinham botões e eram costurados, todas as manhãs, pelas amas, antes de as nobres senhoritas saírem de seus quartos) e só então os vestidos, que eram muito amplos e sustentados por arcos de metal. Dois trabalhos, portanto, tinha Giacomo: vencer a rotineira resistência moral e as vestes femininas. Por outro lado, com as próprias vestes ele não tinha que se preocupar: os homens, incluindo ele próprio, não costumavam tirar toda a roupa na hora do sexo.
A destreza no manejo dos intrincados trajes femininos não era a única habilidade de Casanova. O desempenho com as armas foi outra de suas virtudes. Excelente atirador e esgrimista notável, seus duelos teriam ficado famosos na França e em toda a Europa. O mais conhecido deles aconteceu em 1766. O galante aventureiro já havia passado dos 40 anos. Seu adversário era ninguém menos que o conde Branicki, militar e amigo do rei Estanislau Poniativski, da Polônia.
A discussão toda, é claro, foi por causa de uma mulher. Casanova estava em Varsóvia e a convite do próprio rei foi à corte assistir a uma apresentação de balé que comemorava o dia de São Casimiro. No intervalo, ele resolveu cumprimentar uma bailarina piemontesa que tinha chamado a atenção do monarca. De passagem, parou no camarote de uma outra dançarina que havia conhecido no dia anterior. “Mas tínhamos trocado algumas palavras, quando o conde Branicki chegou”, escreveu Casanova. A moça era amante do oficial e, sabendo disso, Casanova cumprimentou-o friamente e se afastou.
Desconfiado, o conde pôs-se a provocar o veneziano acusando-o de covardia. “Não pude reprimir a vontade de levar a mão aos copos da espada. Todavia, mudando de idéia imediatamente, contentei-me em dar de ombros como sinal de desprezo, e saí do camarote.” Casanova não havia dado quatro passos no corredor, quando as palavras “veneziano poltrão”, ditas em voz alta, o alcançaram. Foi o suficiente para que desafiasse Branicki para um duelo.
Às 6 horas da manhã do dia seguinte, lá estavam os dois postados frente a frente. Inicialmente, Casanova teria optado pela espada, mas o conde declinou da escolha, alegando que com um estranho não se bateria senão a pistola. Como de praxe, prevaleceu a vontade do desafiado Branicki. Os dois homens se afastaram cerca de 15 passos. As brumas da manhã fria começavam a se dissipar quando foi dado o aviso para disparar. Branicki perdeu alguns segundos para fazer a pontaria e Casanova disparou, seguido quase que imediatamente pelo militar. Alvejado no peito, o conde Branicki cambaleou e caiu: estava morto. Casanova também foi atingido de raspão na mão esquerda. “A bala tinha sido amortecida por um botão de metal de minha véstia”, escreveu. A fortuna, mais uma vez, lhe havia sorrido.
Essa história, contada em Memórias, é sempre citada pelos biógrafos que defendem que as narrativas de Casanova, apesar de hiperbólicas, têm alguns pontos de contato com a história. Isso porque houve, de fato, um conde de Branicki morto em 1762 (ou 1763, não se sabe ao certo), num duelo em 16 de setembro. Na Polônia, o dia de São Casimiro é o dia 15 de setembro (no Brasil, ele é comemorado em 4 de março).
O descanso do guerreiro
Segundo suas Memórias, Casanova teria ganhado muito dinheiro. O bastante para comprar um título de nobreza (ambição comum entre os burgueses da época). Viajou por toda a Europa, conviveu com reis, namorou princesas, usufruiu seus favores e, no entanto, acabou pobre. Segundo Barthold, sua beleza e vigor cederam à velhice e à doença. Os amigos foram desaparecendo e as mulheres não mais o queriam. Em 1785, já velho e cansado da vida errante que tinha levado até então, Casanova aceitou o convite do conde de Waldstein, talvez seu último protetor, para cuidar da biblioteca de seu castelo em Dux. Não parece um fim muito apropriado para um aventureiro – e, para os céticos, esse seria mais um indício do exagero de seus relatos. Aos 60 anos de idade, rodeado de livros e votado a uma solidão que tanto contrastava com sua vida pregressa, pôs um ponto final em suas viagens para dedicar-se às letras.
Em Dux põe-se a escrever. Publicou alguns livros, mas passava a maior parte do tempo dedicando-se às Memórias. Em 1794 – então com 69 anos de idade – dá como concluída a autobiografia e a mostra aqui e ali, para editores alemães e suíços, mas não consegue apoio para publicá-la. Em 4 de junho de 1798, Casanova morreu.
Porém sua morte não interrompeu sua vocação para criar polêmica, pelo contrário. Em 1820, a casa Anger & Cia., de Leipzig, propôs à editora Brockhaus, da mesma cidade, a venda de um manuscrito de autoria de um veneziano com o título História da Minha Vida. A proposta era feita em nome de Carlo Angiolini, sobrinho do autor, um tal de Giacomo Giovanni Casanova. Na época, livros no estilo de confissões, memórias e aventuras tinham boas vendas e a Brockhaus adquiriu os manuscritos.
Os originais, redigidos em francês, foram traduzidos inicialmente para o alemão por Wilhelm von Schültz, que lhe deu o título provisório de Memórias do Veneziano Casanova. Com esse nome, a primeira edição foi lançada em 1822. A versão francesa, remodelada pelo professor Jean Laforgue, da Academia de Dresde, foi publicada em 1826. O êxito foi enorme. Casanova, enfim, saía do anonimato para a imortalidade.
Mas, apesar de ter de fato escrito os originais da autobiografia, pouco mais que a idéia de uma vida venturosa imaginada por Casanova teria sido usada pelos editores na composição do que foi publicado. Para o historiador francês Joseph Pollio, autor de Bibliographie de Casanova, nenhuma dessas obras corresponde ao original de Casanova. Para se ter uma idéia, a Brockhaus comprou o manuscrito com 600 páginas, conforme o registro de compra. O documento especifica, ainda, que foram entregues, além do original, duas cópias. Ou seja, a versão vendida pelo sobrinho de Casanova tinha no máximo 200 páginas. Miraculosamente, com elas Schültz fez 12 volumes. Cada um tem, em média, 500 páginas. É por isso que ele é apontado como o verdadeiro autor da edição definitiva das memórias de Casanova.
E mais: a confrontação dos textos em alemão e francês mostra que Laforgue fez uma obra completamente diferente da de Schültz. “Alguns nomes e referências históricas citados nos escritos foram tirados de livros do século 19. Há inúmeros exemplos de lugares que simplesmente não existiram no tempo da juventude de Casanova, mas que aparecem na versão de Laforgue”, diz Pollio. No entanto, jamais foi feita uma comparação entre os textos de Schültz e os originais, pois os manuscritos de Casanova nunca foram mostrados publicamente.
No final das contas, uma passagem das Memórias de Casanova parece vir a calhar. “Penso que enganar os tolos é façanha digna do homem de espírito. Felicito-me sempre quando me lembro de os ter apanhado em minha rede”, teria escrito.
Fonte: Aventuras Na História