O Almirante Negro
João Cândido na infame prisão de Ilha das Cobras | Mais uma narrativa histórica da fenomenal Cecília Prada, para a revista Problemas Brasileiros, que o GNT publica na íntegra. Na página Rachel de Queiroz, também de Cecília, falamos sobre esta nossa grande escritora, também reconhecida nacional e internacionalmente. Na sua narrativa sobre os 100 anos de Rachel de Queiroz, fizemos uma publicação resumida; mas a história do Almirante Negro não poderia ter uma vírgula sequer suprimida, dado ao valor histórico do fato e a maneira emocionante que Cecília Prada desenvolve o texto, que nos leva a lê-lo do princípio ao fim, quase que sem poder respirar. Além de épico, o fato, que lançou uma mancha indelével sobre a reputação da Marinha de Guerra do Brasil e sobre a figura de Ruy Barbosa, que demonstrou que de águia nada tinha, mostra ao nosso leitor que não é a farda que torna um soldado honrado e nem tampouco é a muita cultura que pode tornar um homem digno. Dignidade, honra e coragem, não se adquire; a pessoa nasce com elas ou sem elas, creio eu, e os grandes moralistas – a História é prova, são os mais perigosos, pois demora mais para vir à tona a falsidade deles. Já os sem honra e covardes, seus atos mostram rapidamente seus caráteres. Às vezes pode até demorar um pouco, mas a verdadeira História acaba fazendo justiça aos heróis e pondo à luz as ações dos perversos. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx |
As 250 chibatadas no marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes (foto) foi o estopim da revolta. Naquela noite o clarim não pediria silêncio, mas sim combate." A noite era a de 22 de novembro de 1910, e a frase é do marinheiro de primeira classe João Cândido Felisberto, único marujo no mundo que conseguiu comandar uma esquadra. Ele foi o líder de uma revolta que em cinco dias somente mudou a estrutura da marinha de guerra do Brasil, abolindo os castigos corporais e exigindo que os marinheiros fossem tratados como gente — "um homem que violentou a história", na definição de um jornalista da época, Gilberto Amado.
Um tiro de canhão subitamente cortou seu enlevo, e o de toda a cidade, seguido cinco minutos depois de outro, que deixaria vidraças quebradas, em Copacabana e no centro. "Há uma revolta na marinha", foi o que se espalhou logo entre a população, trazendo de volta o histórico pavor de ser bombardeada do mar.
Naquela noite de novembro de 1910, podemos imaginar como teriam se levantado às pressas de seus banquetes e espetáculos os ministros, militares, parlamentares, diplomatas, e todas as suas emplumadas consortes, entreolhando-se desconfiados, estranhando o que pensavam ser mais uma vez o descontentamento eterno de oficiais da marinha. Então o orgulho da corporação ainda não estava satisfeito com o fato de o Brasil ter-se tornado a terceira potência naval do mundo?
Na literatura, o tema aparece em obras notáveis, como as do polonês naturalizado britânico Joseph Conrad (1857-1924), e em Billy Budd, do americano Herman Melville (1819-1891), que foi também marinheiro. Por ter matado, acidentalmente, um contramestre, o belo jovem Billy Budd, da marinha real inglesa, é condenado e enforcado no próprio navio. A obra retrata os problemas de tensão emocional, violência e homossexualismo habituais na vida marítima, e o navio é tomado como um símbolo da sociedade da época e da própria condição humana - já foi adaptada para o cinema e o teatro, e tornou-se tema de uma ópera de Benjamin Britten. No Brasil, o romancista Adolfo Caminha (1867-1897), um dos principais autores do Naturalismo e ele próprio oficial da marinha, publicou na ocasião da revolta dos marinheiros artigos e um conto, "A Chibata”, que lhe valeram críticas ferozes e punições. No romance Bom Crioulo (1895), retrata um marinheiro negro a quem a paixão por um belo grumete acaba levando ao crime. No Brasil de 1910, o recrutamento baseava-se ainda no velho sistema do tempo do Império, o de uma verdadeira caçada entre as populações pobres, principalmente no nordeste do país, "a cargo de desumanas criaturas" que amontoavam homens como gado nos porões de navios equiparados aos dos "negreiros", mal alimentados e sem condições de higiene. Em consequência, uma porcentagem alta deles morria até antes de chegar ao Rio de Janeiro, como descrevia o historiador cearense Ismael Pordeus já em 1825, pouco tempo depois de criada nossa marinha, sob o comando do almirante escocês lorde Cochrane (desenho ao lado). João Cândido, um negro nascido em Encruzilhada do Sul (RS) em 1880 ou 1882 – as fontes divergem quanto à data –, fora uma exceção à regra: amava sua profissão e fora estimulado a alistar-se na marinha aos 13 anos por um oficial conhecido de sua família e seu protetor, o então capitão de fragata Alexandrino de Alencar, que mais tarde, como almirante, seria ministro da Marinha por três períodos. Tinha uma excelente folha de serviço, com promoções por mérito até o posto de praça de primeira, e integrou o grupo de pessoal escolhido para estagiar na Inglaterra durante a construção do Minas Gerais, para aprender seu manejo.
No dia seguinte à proclamação da República, um decreto abolira a aplicação de castigos corporais, permitida durante o Império. Mas novo decreto, logo em abril de 1890, restabeleceu-os e criou uma Companhia Correcional cujo objetivo seria "submeter a um regime de disciplina especial os praças que forem de má conduta habitual e punir faltas em casos que não exijam conselho de guerra". As faltas "leves" seriam punidas com solitária por três dias, a pão e água, as "leves repetidas", da mesma forma, por seis dias, e as faltas "graves" com 25 chibatadas.
No dia seguinte, 28 de novembro, o governo fraudava já o acordo da anistia, com outro decreto que forçava a baixa da marinha, por exclusão, "dos praças cuja permanência se torna inconveniente à disciplina". Alarmados, os marinheiros formam uma comissão para falar com os políticos que na véspera os apoiavam - os senadores Ruy Barbosa e Pinheiro Machado, mas eles não os recebem. Ingênuo, João Cândido insistia para que seus companheiros se mantivessem tranquilos: "Fomos anistiados, somos cidadãos livres..." No próprio dia 10 João Cândido foi preso, com mais 17 marinheiros. No dia 24 foram todos lançados nas masmorras da ilha das Cobras, encaminhados por um ofício do Quartel-General da Marinha, que recomendava fossem postos "em prisão segura e separados dos demais, por serem elementos perigosos". O grupo foi atirado em um minúsculo compartimento denominado "Prisão Solitária", que, abafado e terrivelmente quente, não dava aos prisioneiros nem condições de respirar. Além disso, os soldados jogavam de quando em quando cal virgem no local, a pretexto de desinfecção. |
Mais um episódio da Rebelião da Chibata ocorreu na noite de Natal de 1910: no navio Satélite, do Loide Brasileiro, que zarpou do porto do Rio de Janeiro com uma carga de 293 detentos deportados para trabalhos forçados nos terríveis seringais da Amazônia, de onde quase ninguém conseguia voltar vivo, o governo incluíra muitos rebeldes tanto dos vasos de guerra como do Batalhão Naval. Nove deles, cujos nomes haviam sido previamente assinalados em vermelho, foram sumariamente fuzilados pela tripulação, e seus corpos lançados ao mar. Outros tombariam também assassinados mais tarde, envoltos no impenetrável mistério cúmplice das selvas.
Quanto a João Cândido, louco e tuberculoso, foi encaminhado ao Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, em abril de 1911, onde contou com a atenção especial do diretor da instituição, o pioneiro da psiquiatria brasileira professor Juliano Moreira. Durante o tratamento começou a ditar suas memórias a um companheiro do asilo. Mas quando, após três meses, um laudo dos médicos deu-o como indivíduo calmo, de memória bem conservada, perfeita faculdade de julgamento e consciente de seu estado, o governo resolveu devolvê-lo à prisão, onde permaneceu até novembro de 1912, quando por fim foi submetido a um conselho de guerra que o absolveu e libertou. |