22.5.11

Brasil A Advocacia nos Tempos Coloniais

A história dos advogados em nosso país começou se misturando a leis que já haviam sido promulgadas em reinados portugueses anteriores ao descobrimento. Confira a seguir como essa atividade se iniciou e quais eram as leis vigentes então.

Por Francisco C. de Aguiar Neto

Shutterstock

Para se ter uma noção geral do Direito no Brasil, é necessário voltar no tempo histórico, mais precisamente à chegada dos portugueses ao nosso litoral, num período em que Portugal deslanchava como a grande potência comercial e tecnológica do Ocidente.
Seu Direito expressava uma conformação social que, aos poucos, ia revelando de forma gradativa a ascensão de uma burguesia comercial num contexto de relações feudais definidas por um sistema com base no Direito Romano e com influências do Direito Canônico, sendo dessa forma, o Direito que aqui fora aplicado.
Quando, em 22 de abril de 15001, a armada comandada por Pedro Álvares Cabral chegou à terra de Vera Cruz, o Direito Português acabou estendendo a seu alcance e vigência um novo território. Vigoravam, então, em Portugal, as OrdenaçõesAfonsinas e diversa legislação extravagante que rapidamente iriam também se aplicar no Brasil, como veremos logo adiante.
Com a descoberta do Brasil e iniciando-se sua colonização, sendo o seu território habitado por um povo, segundo a visão Eurocêntrica, de cultura bastante "atrasada", as leis aqui aplicadas eram as metropolitanas, e, assim, tivemos as Ordenações do Reino, as leis de caráter geral para o Império e as leis especiais, ou seja, as que eram promulgadas precipuamente e especialmente para o Brasil.
As primordiais normas jurídicas feitas para o Brasil foram os regimentos dos governadores gerais, dos ouvidores gerais e dos provedores, formando o início de uma estrutura administrativa da Colônia, organizando assim um Direito local, visto que na época da implantação das capitanias hereditárias no Brasil, as leis eram efetivamente europeias que foram subsumidas à nova realidade da Metrópole detentora de novas terras no Novo Mundo2.
As Ordenações Afonsinas compreendiam cinco livros, a saber:

1 - Da Justiça;
2 - Da Jurisdição, pessoas e bens eclesiásticos, dos direitos reais e sua arrecadação, da jurisdição dos donatários, do modo de tolerância dos judeus e impuros;
3 - Da ordem judiciária;
4 - Dos contratos, sucessões e tutorias;
5 - Dos delitos e das penas.

As ordenações expedidas por D. Manuel, el Rei de Portugal, entraram em vigor em 1521, após muitas idas e vindas. Naquele contexto, já estava em pauta a limitação dos privilégios da nobreza, a exemplo da lei surgida das Cortes de Évora. AsOrdenações Filipinas surgem em 1603 no contexto em que Portugal está sob o governo da Coroa espanhola "União Ibérica"3, mas tiveram vida posterior à restauração em Portugal no Brasil, mesmo após a Independência. No aspecto do Direito Civil, asOrdenações, com muitas modificações, vigoraram até o Código Civil de 1917, embora já tivéssemos as constituições de 1824 e 1889.

Shutterstock

O Direito Português no Brasil
Ao analisarmos o período colonial, no que se refere à aplicação do Direito português nas condições da vida de um Brasil em formação, percebemos a distância entre as duas realidades. A Coroa lusitana tinha o intuito de regulamentar tudo, somente para termos a noção dos absurdos tipificados em texto jurídico, tomemos como exemplo uma lei editada em 18 de abril de 1570:

"[...] pessoa alguma não poderá comer à sua mesa mais de um assado e um cozido e um picado ou desfeito, ou arroz ou cuscuz e nenhum doce como manjar branco, bolos de rodilha, nem ovos mexidos e etc."

A Norma citada corrobora a nossa teoria de que a implantação das leis na colônia brasileira não levava em consideração a realidade local, onde era comum a fome e a miséria dentre seus moradores, sendo cabível tal Norma apenas para pequena parte da população composta pelos donatários, juízes e governantes da Colônia que gozavam de privilégios, riquezas e prerrogativas e podiam se dar o luxo de escolher e dosar o que comer.
Todavia, para se ter uma visão mais inteligível, a história do Direito e, consequentemente, do judiciário brasileiro, seria mais verossímil se fosse contada a partir da criação do Tribunal, instituído pela Coroa portuguesa em 7 de março de 1609.
De acordo com Stuart Schwartz, em Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial, as primeiras tentativas de funcionamento de uma verdadeira Justiça na Colônia datam de 1587, quando da edição do seu primeiro Regimento, promovido pelo rei Felipe II da Espanha, não prosperou. Apesar de ter sido criado um ano depois um Tribunal em que fora embarcado para o Brasil os primeiros desembargadores, estes não chegaram a aportar em terras brasileiras, devido às más condições da navegação na época, tendo retornado a Portugal após ligeira permanência em São Domingos. O fato é que dez anos depois, o rei morrera sem ver implantado o Tribunal que sonhara para o Brasil que funcionaria à imagem e semelhança da Casa de Suplicação Lusitana.

Shutterstock

Tribunal da Relação
Somente no reinado de Felipe III, com a expansão da lavoura açucareira, foi, então, implantado o Tribunal da Relação, na Bahia, com jurisdição em todas as capitanias situadas ao longo da costa, uma cópia autêntica do Tribunal da Relação e Casa de Suplicação de Portugal. O Tribunal da Relação era o órgão máximo do judiciário e, além das funções jurisdicionais, exercia o papel de órgão controlador dos demais e era composto de dez desembargadores: um deles era o chanceler, três outros eram desembargadores de Agravos, além de um juiz de fora, um procurador dos Feitos da Coroa, Fazenda e Fisco, um promotor de justiça, um provedor dos Defuntos e Ausentes e dois desembargadores extravagantes. O recrutamento dos julgadores, em Portugal, não foi fácil devido à relutância dos magistrados que não queriam se transferir para a Bahia, pois achavam um opróbrio sair da Metrópole, na época, centro efervescente do Direito europeu, para se embrenhar no Novo Mundo, visto como selvagem e carecedor de leis.
Os magistrados que aqui vieram, além das funções de natureza judicial, acumulavam outras, como o Ministério Público e as atividades políticas e administrativas que o tornavam de fato um membro do governo colonial. A administração da Justiça atuou nesse período como instrumento de dominação colonial, com influência direta da Igreja Católica por intermédio da justiça eclesiástica.
Conforme Schwartz, a atuação ao Tribunal foi interrompida em 1626, logo em seus primeiros anos de atividade, devido à invasão holandesa restabelecida pelos portugueses somente em 1652. O nível da magistratura não era satisfatório. Muitos desembargadores exerciam paralelamente o comércio e tinham interesse nas causas de sua alçada.

"Os magistrados representavam, para esta sociedade, poder e posição social, individualmente e enquanto parte do tribunal. Assim sendo, a descrição das ações do tribunal, por si só, não pode explicar o impacto daquele órgão sobre a sociedade brasileira. Ignorar o truísmo de que burocratas são pessoas humanas é perder de vista a dinamicidade do relacionamento entre burocracia e sociedade. A história do impacto da burocracia sobre o Brasil colonial é a história dos objetivos múltiplos e muitas vezes divergentes do governo metropolitano, dos interesses coloniais e dos próprios magistrados, quer como indivíduos quer como um grupo. Cada fator dessa equação burocrática procurava dominar os outros e tomar posse de certos recursos ou vantagens para si próprio. De certa forma, a história da formação social e política do Brasil colonial é composta pelos fracassos e sucessos de cada um dos fatores" (SCHWARTZ, Stuart B).

Porém, mesmo com o esforço da Coroa portuguesa em suprimir tais vantagens e favorecimentos, é nesse período histórico que o traço da mentalidade cordial começa a se desenvolver e germinar no âmbito das relações intersubjetivas e interinstitucionais, de modo que a promiscuidade e a corrupção começam a invadir as nossas instituições políticas e jurídicas, que mal acabam de se formar. Isso hodiernamente é comum de se ver nos noticiários televisivos, como também em jornais e revistas, o que alguns historiadores apontam como o início da corrupção da justiça no Brasil.
Tal caráter de cordialidade, com certeza, é uma consequência da deformação cultural imposta pela colonização portuguesa, de modo que a corrupção e frouxidão das nossas instituições se dão tendo em vista dois fatores sociopsicológicos, sendo o espírito personalista e usurpador dos portugueses e o consentimento psicológico dos nacionais com a situação de promiscuidade e improbidade das instituições, com foco na chamada "ética de fundo emotivo" brasileiro.


Shutterstock

Sociologia
Nessa altura, isolar os desembargadores da sociedade seria impossível, pois como o próprio Durkheim4 afirma, "a sociedade prevalece diretamente sobre o indivíduo", sendo por esse motivo o entrelaçamento dos magistrados com a vida social e suas prerrogativas na Bahia colonial. Os magistrados não eram nem melhores nem piores do que a sociedade em que viviam e muitas vezes usavam seu alto cargo para proveito pessoal. Suborno e subversão da justiça naturalmente não eram registrados, mas foram encontradas indicações de tais atividades nos registros do primeiro Tribunal da Relação, contudo se determinara nesse período que os magistrados morassem em locais separados dos centros, para evitar o contato direto com as pessoas que tivessem interesse na resolução das causas, sendo esse um artifício inútil, pois não impedia o favoritismo da parte, no momento do julgamento.
De acordo com o historiador baiano e professor Edgard Oliveira, ainda fora criado em 1618 outro tribunal na Bahia, sendo este eclesiásti- co composto por uma Comissão Inquisitorial coordenada pelo licenciado Marcos Teixeira, com o escopo de apurar denúncias referentes à Santa Inquisição na Bahia, pelo fato de haver na época um grande número de cristãos novos detentores de capital, devido ao forte comércio que exerciam em terras baianas, e de professarem às escondidas outra fé, se não a católica. Isso mostra-nos que a Igreja, juntamente com o governo Metropolitano, exercia controle social por meio da repressão e medo para organizar um sistema social expropriatório e detentor da vontade alheia.
Por esses e vários outros motivos é que o transladar da legislação europeia para o Brasil não surtiu os efeitos desejados pela Metrópole, pois equivocadamente não se levou em consi- deração a realidade local dos trópicos, visto que este país é cheio de diversidade e nada tinha a ver com a realidade da Europa portuguesa. Por esse motivo, as normas jurídicas europeias não se subsumiram aos fatos acontecidos no Brasil, pois ocorrências acontecidas na Eu- ropa, na maioria das vezes, jamais ocorreriam no Brasil, em virtude da cultura, clima e outros fatores específicos que interferiam diretamente no modus faciend de seu povo, surgindo então, como podemos assim chamar, "as primeiras jurisprudências brasileiras", julgando o que até então não existia cominação legal.

O transladar da legislação europeia para o Brasil não surtiu os efeitos desejados pela Metrópole

Tais relatos históricos, dentre outros, po- dem ser apontados historicamente como motivos pelos quais ainda alguns textos jurídicos hodiernos muitas vezes se encontram fora da nossa realidade, estando perfeita as normas jurídicas, como ressalta o grande jurista Miguel Reale, em O Dever Ser, ou em tempos platônicos, em A Perfeição do Mundo das Ideias ou em Mundo Inteligível, porém não se enquadrando à realidade do mundo imperfeito e muito menos à brasileira. Onde podemos citar como exemplo o nosso E.C.A. - Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8.069/90, sendo um dos mais belíssimos e perfeitos textos norma- tivos do mundo, rezando sobre os Direitos, Proteção, Normas e Medidas de Proteção e encaminhamento, bem como a sanção de atos infracionais relacionados à criança e ao adolescente. Contudo, apesar dos avanços atuais, ainda se encontra muito longe de ser efetivamente aplicado, pois no momento de sua elaboração não foram consideradas algumas realidades e peculiaridades do nosso país. Essa norma é invejada e aplaudida pela comunidade mundial, porém não funciona plenamente devido ao nosso triste contexto histórico (falta de estrutura dos órgãos competentes, conhecimento por parte dos interessados, utopia em relação aos su- jeitos de Direito e outros).
Inferimos então que a legalidade colonial brasileira acabou por excluir o pluralismo jurídico nativo, recriando as mesmas necessidades da Metrópole mercantilista, com uma justiça colonial de tradição centralizada, formalista e controladora, visando aos interes- ses puramente das elites.
Destarte, nunca devemos perder de vista que para entendermos o nosso presente - não somente na área jurídica, mas nas diver- sas áreas do conhecimento - antes mesmo de tentarmos moldar o nosso futuro, devemos investigar nosso passado, levando em consideração as peculiaridades de seu contexto histórico, pois, ao contrário do que prelata o senso comum, é lá que encontraremos as respostas dos porquês da atualidade.

1 Teoria Positivista do Descobrimento do Brasil, existindo outras, dentre elas, a de um espanhol, chamado Vicente Yanes de Pizon, que teria chegado ao Brasil em 01/01/1500, antes dos portugueses.
2 Novo Mundo era a nomenclatura usada pelos europeus para as terras achadas além-mar, que consistiam terras das Américas (Sul, Norte e Central).
3 Foi a união entre os Estados de Portugal e Espanha durante o período que se estendeu de 1580 a 1640 , em que Portugal e, consequentemente, o Brasil, sua colônia, ficaram sob o governo da Espanha.
4 Emile Durkheim, criador da teoria dos Fatos Sociais, que, segundo ele, constituem o objeto de estudo da Sociologia, pois decorrem da vida em sociedade.

FRANCISCO C. DE AGUIAR NETO é graduado em História pela UNEB, Campus V, Santo Antônio de Jesus e especialista em História Regional pela mesma Universidade, especialista em Psicopedagogia pela FACE-BA, graduado em Filosofia pela FBB Salvador -BA , mestrando em Educação e Contemporaneidade pela UNEB - Campus I - Salvador- BA, mestrando em Teologia e Educação pela EST-RS, bacharelando em Direito último Período da FAINOR - Vitória da Conquista-BA

Fonte: Filosofia