Paulo R. Pereira
Professor de Relações Internacionais da PUC-SP, pesquisador do Observatório das Relações Internacionais (ORI/PUC-SP) e do Observatório das Relações Estados Unidos-América Latina (Oreal)
INTRODUÇÃO
A análise das relações internacionais no Brasil tendeu a seguir, desde a estruturação dessa área de conhecimento nas últimas décadas, as produções teóricas formuladas nos países centrais. O país tornou-se caudatário deuma grande variedade de propostas que buscaram responder aos problemas da política internacional do século XX, em geral àqueles que afligiam de maneira particular as grandes potências. Essa constante acabou por determinar em parte as formulações teóricas no país.
Apesar de algumas áreas das ciências sociais no Brasil terem produzido trabalhos que permeavam as discussões sobre a política externa durante parte do século XX, o estudo disciplinar das relações internacionais recebeu pouca atenção de maneira geral, e o meio científico contribuiu pouco para o seu desenvolvimento (Miyamoto, 1991, p. 83). De outro lado, a avolumada produção desenvolvida nos grandes centros universitários anglo-saxões dificultou a construção de uma proposta de análise mais autônoma que respondesse aos interesses periféricos no cenário mundial. Continuou-se trabalhando com categorias importadas e, em geral, de difícil tradução. A trilha de conhecimento inaugurada nas cadeiras e departamentos em Aberystwyth, LSE e Oxford na década de 1920 continuou reverberando na periferia da produção científica sobre relações internacionais (Messari & Nogueira, 2005, p. 8) e, assim, deixavam-se de lado interesses de potências médias e ex-colônias em processo de desenvolvimento e dependência externa.
Por conta dessas e de outras escolhas relegou-se a um segundo plano a experiência histórica acumulada durante anos na prática da política externa do Brasil em questões variadas, nunca tendo sida reconhecida como um aprendizado cientificamente válido. É verdade que a execução das políticas internacionais sofre influências de um extenso processo de formulação, no qual o embate entre posições partidárias e os interesses de grupos de pressão da sociedade civil e dos mais diferentes órgãos governamentais acabam por torná-la eventualmente incoerente, dificultando a obtenção de princípios ordenadores. No entanto, debruçar-se sobre as concepções dos diversos formuladores da política externa pode fornecer importantes chaves explicativas para o entendimento da ação internacional dos estados, já que reflete as imagens por eles construídas e as ações delas decorrentes.
Explorando essa hipótese o artigo buscará especificar algumas concepções sobre a política mundial pensadas por Joaquim Nabuco no início do século XX, destacando suas propostas de entendimento sobre o sistema internacional e o subsistema americano. Isso promoverá a recuperação e alguma compreensão sobre as ideias e discussões a respeito de problemas referentes à própria inserção brasileira no continente americano.
JOAQUIM NABUCO ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA DA POLÍTICA INTERNACIONAL
Em 1937, Edward Carr, considerado um divisor de águas na construção da disciplina de relações internacionais, afirmou em seu texto Vinte Anos de Crise que os episódios que tomaram lugar na história entre 1914-18 puseram fim à opinião de que a guerra era um assunto que afetava somente os soldados profissionais, colocando em xeque, ao mesmo tempo, a concepção de que a política internacional poderia ser deixada com segurança na mão dos diplomatas. A conclusão era que o processo de popularização das relações internacionais imposto pela tragédia decorrida do relacionamento entre os países europeus obrigava o nascimento de uma ciência (Carr, 2001, p. 4). Esse novo conhecimento "maduro", nos dizeres de Carr, teria como característica principal um maior pragmatismo, porque seria mais objetivo e realista.
Essa corrente realista das relações internacionais, sedimentada por Hans Morgenthau anos depois com o texto A Política entre as Nações, relegou a um segundo plano grande parte do que nas décadas anteriores havia sido pensado sobre as relações internacionais. A crítica era feita a três grupos distintos: os juristas, os historiadores e os idealistas (Morgenthau, 2003, p. 29). O primeiro grupo era essencialmente legalista e não compreendia as razões profundas pelas quais os acontecimentos tendiam a não se adequar às diretrizes do direito internacional. O segundo seria excessivamente descritivo e pouco analítico. Sua preocupação com a narração dos meandros diplomáticos, com as características biográficas dos decisores governamentais, negligenciava a construção teórica fundamentada para explicar de maneira sistêmica os acontecimentos, não os considerando simplesmente como um amontoado de acontecimentos. Inegavelmente o grupo mais combatido, no entanto, foi o dos idealistas liberais do início do século XX. Vista como a expressão maior dos vícios em política internacional, essa corrente buscaria a manutenção da paz mundial sem levar em conta os meios para tal. Essa característica fortemente normativa foi alvo de grandes críticas em decorrência do malogro da Liga das Nações, dos acontecimentos de 1939 e do pós-guerra.
Acusado de utópico e, por isso, perigoso em assuntos de política internacional, esse grupo foi colocado como o perfeito oposto da visão realista científica e algo a ser evitado. A convicção dessa escola era de que a pior postura na qual se poderia incorrer em matéria de política externa seria o dogmatismo apoiado em princípios e conjecturas, que desprezaria uma pesquisa exata das coisas como elas efetivamente são. Assim, os países deveriam aprender a lidar com a estrutura anárquica e, por isso, conflituosa do meio internacional ao invés de tentar redefinir as suas bases.
Apesar de essa compreensão dicotômica entre o desejo e a verdade - falta de rigor científico e a análise positiva, a utopia e a realidade - ser a expressão do primeiro grande debate na área de conhecimento sobre as relações internacionais não significa que ele tenha ficado confinado à divergência de posições entre autores. De fato, essa incompreensão mútua entre propostas de entendimento sobre as relações internacionais se expressava primeiramente na própria prática política, bem como nas posições e ideias que haviam sido construídas para além das universidades e da própria produção intelectual. Longe de serem caracterizadas por essa bipartição estanque, tais ideias se encontravam expressas em graus variados quando deslocamos o foco da nossa atenção para a diplomacia organizada pelos ministros e chefes de Estado, bem como para a ótica de jornalistas, juristas, empresários e da população da época.
Nabuco era um exemplar desse conjunto de personagens, a maioria esquecida pela história. Tornou-se uma figura emblemática para a compreensão brasileira desse processo conturbado de entendimento sobre o sistema internacional moderno por conta do cargo que ocupou entre 1905 e 1910, por nomeação de Rio Branco, na embaixada recém-criada em Washington. Vista como expressão da aproximação que Rio Branco buscou ter com os Estados Unidos para viabilizar interesses nacionais como a delimitação de fronteiras e a garantia do mercado consumidor cafeeiro, a embaixada ganhou um relevo especial por representar à época uma "raridade diplomática" (Burns, 2003, p. 119), bem como por seu agente não ser ainda encarado como um mero executor de políticas predefinidas.
Essas circunstâncias colocaram Nabuco numa posição privilegiada para a reflexão sobre o meio internacional, que pode ser exposta como um arcabouço de referências conceituais, ainda que não sistematizadas em obra, sobre o sistema continental e mundial. A partir delas Nabuco buscou construir uma doutrina de ação de política externa para o Brasil, focada numa entente com os Estados Unidos. Isso fica evidenciado em um conjunto extenso de posições e ações do embaixador, do qual se destacam os esforços para a viabilização da III Conferência Pan-americana de 1906 no Rio de Janeiro e a presença do secretário de Estado norte-americano Elihu Root no evento. Mas, para além dessas atitudes que são consideradas expressões de uma política americanista - aliás, continuação do que Salvador de Mendonça e Assis Brasil já haviam iniciado com a Proclamação da República -, Nabuco elaborou um entendimento próprio sobre o sistema internacional em transformação no início do século XX, bem como o lugar que deveria ser nele ocupado pelo Brasil. Para tal construto houve influências variadas, das quais têm relevância especial ao menos três.
A primeira refere-se à sua trajetória pessoal e ao contato com as ideias que circulavam nos centros do poder mundial, Estados Unidos e Inglaterra. As viagens por ele empreendidas na década de 70 do século XIX como adido de legações, antes de assumir a causa abolicionista, proporcionaram contato com questões relacionadas aos regimes políticos e à política interna desses países, com o panorama internacional e o conflito interimperialista que já se acercava, bem como com os contínuos e revolucionários desenvolvimentos materiais em andamento.
Algumas concepções apropriadas por Nabuco e que tiveram forte influência na construção que fez sobre o sistema internacional do continente americano dizem respeito aos paradigmas cientificistas de análises sociais fundamentalmente baseados no positivismo e no darwinismo social. Tanto um quanto o outro estavam fundamentados pelas teorias de Spencer sobre raça e evolução. Assumiu, assim, ideias que criavam uma clara hierarquização entre sociedades pelo seu nível de desenvolvimento. Existiriam então aquelas mais simples e as mais complexas, cada qual carregando sua respectiva qualificação negativa no primeiro caso e positiva no segundo. A sociedade norte-americana e a europeia, supostamente o topo dessa pirâmide, eram encaradas por Nabuco como naturalmente superiores (Silveira, 2000, pp. 123-4).
A segunda deve ser visualizada no exílio que Nabuco se impôs com o fim da Monarquia. Esse interregno durou pouco mais de dez anos e é nele que as questões internacionais começaram a assumir um caráter mais importante. Isso fica claro quando se tem atenção à produção intelectual de Nabuco nessa época, especialmente entre os anos de 1893 e 1899. É nesse momento que surgem livros como Balmaceda e Intervenção Estrangeira durante a Revolta da Armada, nos quais se discutem questões como a legitimidade na política internacional, as diferenças de poder entre os países e a decorrência para suas políticas externas, bem como ideologias da época, como o monroísmo, que Nabuco assumiria como sua bandeira de ação internacional para o Brasil.
A terceira influência no pensamento de política internacional de Nabuco, possivelmente a maior delas (Costa, 1968, p. 50), é o processo do litígio anglo-brasileiro na Guiana entre 1899 e 1904, que terminou como uma das derrotas mais significativas da nossa diplomacia de limites e determinou o movimento de reconciliação de Nabuco com a República.
O desfecho do arbitramento que favoreceu claramente a Inglaterra contra as pretensões territoriais do Brasil na região definiu o elemento fundamental que nortearia a construção da doutrina de ação de Nabuco para a política externa brasileira: o território. A decisão do rei da Itália indicava um posicionamento afeito às definições de direito no meio internacional ligadas ao que Nabuco considerava "ideias do Congresso de Berlim"1 de 1884. Pregava a posse atual e ocupação efetiva do território como único meio de garantir e conservar a soberania territorial.
Dessa forma, a decisão indicava que essa construção normativa poderia ser utilizada em outras situações parecidas, acarretando uma ameaça imperialista muito palpável aos países do continente latino-americano, em especial, ao Brasil. Em 1902, por conta da leitura dos jornais ingleses, Nabuco diria que já se discutia "a partilha da América do Sul como se fosse a África"2. A derrota, apesar de seu esforço colossal e da certeza de que o Brasil tinha direito sobre grande parte do território, instaurou a certeza de que o momento internacional obrigava uma atenção maior às fronteiras brasileiras, já que a inveja de existir um país pouco desenvolvido como o Brasil com um extenso território desocupado era motivo de preocupação.
Essas três principais influências possibilitaram a Nabuco elaborar um pensamento próprio sobre o sistema continental americano, fortemente conectado com as ideias da época. Sem a preocupação de fixar vinculação a nenhuma escola "teórica", por ser um ator da prática diplomática e não um acadêmico, Nabuco utilizou sem maiores preocupações referências de perspectivas variadas, que disciplinarmente seriam vinculadas posteriormente às escolas de pensamento em relações internacionais. O liberalismo idealista, o realismo pragmático e a "linha média" da escola grociana podem, assim, ser visualizados na reflexão e ação de Nabuco à frente da embaixada. E é esse rico leque de referências combinadas, sem a coerência imposta por qualquer dessas tradições, que criou um entendimento importante sobre a política internacional do continente e ao qual gostaríamos de fazer algumas referências.
Nessa empreitada há que se ter em conta certos cuidados. Ao tentar reconstruir conceitos e avaliações de personagens políticos do passado não devemos impor, do ponto de vista do presente, uma falsa coerência às suas obras. Ao mesmo tempo, não podemos nos dar ao luxo de rejeitar importantes princípios do relacionamento continental por eles elaborados por causa da dificuldade - e eventuais erros - de verificar o valor que ainda possam ter, mesmo com essas eventuais contradições (Haslam, 2006, p. 14). Nabuco se enquadra nesse grupo, o que pode caracterizá-lo como um mau teórico, mas não como um pensador e ator da política internacional continental de menor importância.
Nabuco de fato se encontrava distante de uma ciência positiva da política internacional, o que provavelmente o auxiliou na construção de um entendimento menos dogmático sobre esse campo e orientou-o de maneira mais consistente para a ação no seu cargo de embaixador. Alicerçado em fundamentos da história, do direito e da sociologia, ele elaborou diagnósticos sobre a condição do sistema internacional americano e mundial muito distantes da orientação teórica que seria cristalizada algumas décadas depois e conduziria a certa inacessibilidade ou, ao menos, generalizações abstratas. Desconsideraria, assim, recorrentemente, a origem das ideias, sua especificidade histórica e cultural (Haslam, 2006, p. 3).
NABUCO E A NOÇÃO DE SISTEMA MUNDIAL E CONTINENTAL
A reflexão de Nabuco sobre o sistema mundial e continental tem como uma das bases o referido laudo de 1904, pois marca a sua adesão à doutrina norte-americana de James Monroe, proclamada em 1823 e reeditada a partir das Conferências Pan-americanas iniciadas em 1889. Assim, transformada em parte do conteúdo de cooperação e solidariedade desse novo momento de aproximação entre duas Américas, a doutrina legitimava componentes práticos para o comércio e a garantia de uma área de influência norte-americana também ao sul do continente (Magnoli, 1997, p. 192). Essa representação, no entanto, não apelava para a unidade hemisférica a partir de uma correspondência cultural ou histórica, mas para uma visão de destino comum independente, contrapondo-se às relações com a Europa.
Nabuco, por sua vez, motivado pela preocupação com a ameaça territorial e/ou colonial europeia, passou a compartilhar das posições derivadas do monroísmo, tal como o princípio dos dois hemisférios, a América e a Europa, opostas por suas instituições, história e cultura. o princípio da não transferência territorial, que postulava a inalienabilidade dos territórios americanos frente a qualquer potência europeia; e a doutrina dodestino manifesto, que indicava aos Estados Unidos o direito a controlar o continente nas fronteiras de um a outro oceano. De fato, para Nabuco, como o Brasil era "um mundo sobre o qual cada dia mais se dirigem as cobiças das nações que têm fome de terra, das raças que precisam expandir-se"3 e sem capacidade de defesa própria, era necessário ter como objetivo uma aliança com os Estados Unidos para garantir nossa manutenção como Estado soberano. Assim, pensando de uma maneira preventiva, Nabuco achava importante cultivar o monroísmo ao lado dos Estados Unidos como política de defesa brasileira, quiçá continental. Essa situação impeliu Nabuco à reflexão e à ação, o que corrobora a afirmação de Edward Carr (2001, p. 5), segundo o qual o "objetivo, estejamos cônscios ou não, é uma condição para o pensamento".
Definição de sistema internacional: desenvolvimento e civilização para a paz
A adesão de Nabuco ao monroísmo possibilitou a construção intelectual de um sistema internacional e também continental, já que a identidade de um continente com características de relacionamento próprias impunha a existência de uma contraposição. Essa contraposição era a Europa, marcada por governos monárquicos, pelo absolutismo e pelas guerras de poder e conquista. Nabuco estruturava, assim, a existência de um bloco internacional americano, que gravitava em torno do poder superior e benéfico norte-americano, e um bloco europeu, que tinha distintos centros de poder.
Essa reflexão fundamentava-se na crença de um sistema anárquico das relações entre as unidades políticas europeias e de um sistema hierárquico das relações entre as unidades políticas americanas. Isso está referido em uma concepção maleável da soberania dos Estados modernos, na qual nem todos a têm da mesma forma e nem sob todas as circunstâncias. Os países efetivamente soberanos seriam aqueles que, para além de ficções jurídicas, teriam poder suficiente para se afirmarem como tal. Isso valia para alguns países europeus e para os Estados Unidos. No caso dos Estados latino-americanos era necessário levar em conta o seu processo de independência recente, considerada ainda em fase de consolidação, o que não deixava espaço para agirem somente por autoajuda. Esse era um risco grande demais que poderia ser pago com a própria independência.
Propomos, assim, uma adaptação da definição teórica clássica aroniana de sistema internacional, que o entende como sendo o conjunto das unidades políticas que mantêm relações entre si e estão suscetíveis de entrar em guerra (Aron, 2002, p. 153), para compreendermos a definição de Nabuco, situada historicamente. Para o embaixador, o sistema internacional deveria ser pensado como o conjunto dos blocos de poder, independentes entre si, definidos a partir de áreas de influência territoriais e que, mantendo relações políticas regulares, contrabalançam suas características opostas. A doutrina Monroe tivera a função de equacionar esse embate, já que "os Estados, sem a Doutrina de Monroe, não teriam restabelecido este equilíbrio" (Nabuco, 1949, p. 450).
A situação do sistema internacional era, de fato, nova. A estrutura multipolar do Concerto Europeu do século XIX foi dando espaço a uma configuração menos eurocentrada no início do século XX pela ascensão de novos atores de grande poder internacional, das quais se destacariam os Estados Unidos. Mas o grande incentivo a esses países adviria do seu desenvolvimento material interno e não da decadência europeia. As mesmas inovações tecnológicas que conferiam destaque a alguns novos países também fortaleciam a posição dos países do Velho Mundo ao viabilizar um poder dominador baseado na organização de uma nova força bélica e da diminuição do espaço físico. Isso facilitaria o controle e a exploração econômica de áreas colonizadas4.
No bloco europeu dois grupos tinham papel essencial. Um era liderado pela Alemanha e outro pela Inglaterra, ambos expandindo suas bases imperialistas "formais" e estruturando um sistema de alianças. A força de tal grupo se encontrava na conquista e dominação de regiões. Essa seria sua marca distintiva. No caso americano a unidade do bloco se daria pela aceitação comum de pertencimento a um sistema político novo, pautado no que Nabuco chamou de "grande zona neutra de paz e livre competição humana"5. Propiciada pelos Estados Unidos, essa zona teria como base o respeito à independência de todas as suas unidades e tenderia à paz. Essa harmonia do bloco americano tinha como fundamento o interesse mais imediato da sua liderança, pautado no desenvolvimento material da indústria e não na conquista. Isso indicaria uma inclinação do bloco para uma paz utilitária, mas que também deveria ser entendida como uma "aliança moral". A esse grupo estava, assim, reservado o papel essencial de equilibrar as relações internacionais.
É esclarecedor avaliar que essa análise de Nabuco tem proximidade com aquela feita por autores considerados liberais nas relações internacionais, como Norman Angell. Somente alguns anos mais tarde, esse autor, utilizando argumentos que remetiam a um processo de interdependência crescente em algumas regiões, dava relevância essencial ao desenvolvimento econômico e industrial dos povos como elementos de pacificação por uma lógica utilitária. Afinal, a interligação e a dependência mútua nublavam os ganhos que poderiam advir de uma guerra (Angell, 2002, p. 265). A racionalidade indicaria a futilidade do conflito nessa nova configuração da política internacional e, por conseguinte, propiciaria um progresso genuíno da civilização. Angell (2002, p. 299) diria, assim, que "qualquer progresso na cooperação humana, que é sinônimo de civilização, contribuirá para a vitória dos que labutam no campo da harmonia internacional".
De maneira esquemática, podemos dizer que a estrutura do sistema internacional pensada por Nabuco, recente em muitas de suas características, pressupunha o conflito e a cooperação circunscrita aos blocos internacionais já formados. Isso não significa que essa situação criava regiões autocentradas, mas é inegável que indicava certo distanciamento desejável entre tais grupos razoavelmente homogêneos. Nabuco reconhecia, de um lado, uma América pautada pela independência, liberdade, democracia e governo republicano, estruturada com uma formação cultural e social específicas e, de outro, uma Europa marcada por governos monárquicos, pelo absolutismo e pelas guerras de poder e conquista. Mundos diferentes com identidades próprias.
Características do sistema continental americano: anarquia ou hierarquia?
O sistema continental americano tinha características bem específicas para Nabuco, que, por sua vez, indicavam uma determinada prática para cada um dos países que dele faziam parte. Essa normatização era proporcionada porque as relações entre as unidades políticas dentro dos blocos teriam uma determinada ordem. No caso europeu, essas relações se estabeleceriam sob a rubrica do imperialismo e, nesse sentido, tais entidades internacionais seriam formadas não só pelo seu território oficial, mas também pelos adendos coloniais. No caso americano, as relações se dariam por delegação de autoridade e decorrente legitimidade do centro decisório - no caso, os Estados Unidos. Ao contrário da imposição pelo poder, o que ditaria as ações dentro desse aglomerado de países era a liderança reconhecida.
Para reconhecer a estrutura desse subsistema em tal formato, Nabuco se baseava numa fragmentação sociocultural entre as duas Américas, a saxônica e a latina. Ao elaborar uma clara diferenciação entre estágios de desenvolvimento, reconhecia que a sociedade norte-americana estaria em um degrau bem superior (Silveira, 2000, p. 253). O contato, por sua vez, entre tais sociedades traria aos menos desenvolvidos os benefícios da alta civilização (Nabuco, s/d, p. 143). O Brasil cumpriria um papel diferenciado nessa ordenação em pirâmide, seguido pelo trio Argentina, Chile e México mais próximo da base. Após esse grupo, existia um conjunto de países com menor importância, mas que deveriam, paulatinamente, ser levados em conta na política do continente.
O Brasil, segundo a visão de Nabuco, por sua fidelidade histórica à causa americanista e sua importância territorial e econômica, deveria desempenhar um papel de interlocutor e até mesmo de intermediário entre o mundo anglo-saxão e o mundo latino. Ao mesmo tempo em que esse trabalho tinha o caráter de uma causa comum ao continente, a aliança preferencial com os Estados Unidos assumiu, para Nabuco, contornos de certa "inevitabilidade" da política externa brasileira, já que relações com outros países seriam infrutíferas para o objetivo primordial que o embaixador se colocava: a manutenção da soberania política e a independência frente ao bloco europeu imperialista.
Fica claro que a idéia de alianças para Nabuco era hierárquica, criando a partir de certas diferenças de poder e influência uma construção oligárquica para as relações internacionais do continente, assumindo a formação de um condomínio de alguns países para a sua coordenação política (Bueno, 2003, p. 167).
As análises de Nabuco a esse respeito indicam uma ênfase especial a uma concepção de sociedade internacional, caudatária dos juristas dos séculos XVIII e XIX e desenvolvida posteriormente por pesquisadores como Martim Wight e Hedley Bull durante o século XX. Ao refletir sobre a ordem no continente americano, Nabuco pressupõe a existência de uma sociedade de estados na região, ou a necessidade da sua sedimentação definitiva. Essa ideia pressupunha que um grupo de estados, consciente de certos valores e interesses comuns, considerava-se ligado por um conjunto de regras e instituições comuns no continente americano (Bull, 2002, p. 19). Esse era um processo ainda em desenvolvimento na região, mas alguns fatores facilitavam essa comunhão de ideais.
Alguns conteúdos tinham especial importância para Nabuco, como a ênfase reduzida nos preconceitos históricos e raciais que existia entre os países americanos, apesar das diferenças de raça, de línguas e de crenças. Chamava a atenção de Nabuco o fato de termos tido uma origem sociológica comum (Costa, 1968, p. 111) e que os países americanos se encontrassem numa posição de convergência política clara com as instituições republicanas. Nessa mesma trilha, as Conferências Pan-americanas teriam um papel importante na identificação de interesses comuns das nações americanas e no aprofundamento de suas relações. Deveríamos, no entanto, avançar rumo à construção de uma "opinião pública americana", uma condição clara para a existência de uma sociedade de estados bem-ordenada e pacificada.
CONCLUSÃO
As ideias de Nabuco não podem ser classificadas dentro de uma única corrente teórica das relações internacionais. Isso porque as posições estanques não dão conta de responder à maleabilidade exigida, por vezes, do estadista. É esclarecedor, a esse respeito, a própria construção ideal feita por Norman Angell no seu texto de 1909 do "homem prático" e do "homem pacifista" para exemplificar as posições políticas extremadas entre os moralistas da guerra e os moralistas da paz nas sociedades inglesa e alemã frente aos dilemas de relacionamento internacional colocadas pela luta interimperialista (Angell, 2002, pp. 294-5).
Ela demonstra a existência de posições sociais num longo espectro entre os extremos do idealismo liberal e do realismo, não elaborados cientificamente, mas que já, de longa data, produziam efeitos práticos essenciais, tornando-se posteriormente fonte para a criação dos conceitos das escolas teóricas. Os grupos decisórios governamentais também expressavam um papel importante na promoção de tais posicionamentos, como demonstram as ideias de Woodrow Wilson e Winston Churchill, por exemplo. Assim, ao que tudo indica, ocorre que os intelectuais, com maior frequência do que gostariam de admitir, espelham as atitudes e os pressupostos dos que estão no poder (Halsam, 2006, p. 9).
As ideias de Nabuco, em especial, ganham expressão exatamente por espelharem a construção de um hibridismo entre várias correntes de pensamento da política internacional, pautadas, na posição brasileira, nas relações internacionais com a especificidade das condições impostas dentro do sistema interamericano do início do século XX. Mostrando tais nuances, espera-se que a trajetória e o pensamento de Nabuco exponham a possibilidade de se pensar um arcabouço de reflexão sobre política internacional que não seja homogêneo ou reduzido.
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1 Carta de Joaquim Nabuco a Campos Sales, 3/10/1904 (Nabuco, 1949, p. 175).
2 Carta de Joaquim Nabuco a Tobias Monteiro, 15/12/1902 (Nabuco, 1949, p. 140).
3 Carta de Joaquim Nabuco a Nilo Peçanha, 15/10/1906 (Fundação Joaquim Nabuco - PE).
4 Barraclough (1966, pp. 43-61) dá razão para Nabuco nessas observações, ao afirmar que o industrialismo foi um dos grandes catalisadores das modificações que se operaram nessa época.
5 Discurso de Nabuco para Roosevelt por conta da entrega de credenciais (Arquivo Histórico do Itamaraty).
Este texto é, em parte, baseado no trabalho A Política Externa da Primeira República e os Estados Unidos: a Atuação de Joaquim Nabuco em Washington (1905-1910), publicado pela Editora Hucitec em 20
Fonte: