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Rupert Murdoch, o maior magnata da mídia anglo-saxã, confessou que seu depoimento no parlamento britânico a respeito de escuta ilegais das suas empresas jornalísticas foi o momento mais humilhante da sua vida. É não foi para menos. Segundo foi apurado, jornalistas da cadeia Murdoch, especialmente os dedicados à imprensa amarela, voltado para intrigas envolvendo celebridades, teriam contratado serviços de detetives particulares, muitos deles ex-policias aposentados da famosa Scotland Yard, para grampear os telefones de pessoas eminentes da vida mundana inglesa para fins sensacionalistas. Nem os integrantes da família real britânica escaparam da voracidade deles.
Rede de interesses
O escândalo também foi revelador da estreita relação entre a imprensa Murdoch, o partido conservador do primeiro-ministro James Cameron, a direita ideológica e a polícia britânica. Mas o interessante deste episódio é buscar as raízes sociais deste costume tão ligado à sociedade inglesa do gosto pelo mexerico, bisbilhotice e intrigalha, o que parece estranho numa sociedade tão culta e civilizada com a britânica. E de como tal obsessão por farejar e policiar a vida das celebridades pode ser mortífero, como foi o caso da morte da Princesa Diana.
Diana e o fim da Privacidade
O acidente que matou em Paris, no dia 21 de agosto de 1997, a princesa Diana, divorciada de Charles, o príncipe de Gales, herdeiro do trono inglês, resultou indiretamente da caçada que lhe moviam centenas de fotógrafos e jornalistas, sempre acampados ao redor de onde sua alteza se hospedava. Sem haver nenhum outro interesse senão o de levar ao público a última intriga, ela de certa forma foi ao mesmo tempo uma sensação das comunicações e uma mártir da vida privada, devassada pela mídia moderna.
No castelo de Wemminck
"Não faltavam ali as invejas e pequenas calúnias sem as quais a humanidade não pode viver e milhares de indivíduos morreriam de aborrecimento, dada a pequenez da sua imaginação", Dostoievski - O pequeno herói, 1857.
Naqueles tempos, ao redor de 1850, ainda era possível de ir-se a pé do centro de Londres até Walworth, no subúrbio. Para espanto do jovem Pip, o chalé em que morava Wemminck - o assistente do seu tutor -, reproduzia, ainda que em pequena escala, um castelo. Lá estavam, no alto, as seteiras; um pontilhão que imitava uma entrada elevadiça; as paredes povoadas de falsas janelas góticas, e até um canhão que religiosamente disparava às 9 horas da noite.
Ali o modesto escrivão sentia-se um lorde, perdendo inclusive aquelas feições que o deixam parecido com a escrivaninha da banca onde trabalhava. Com esse excêntrico personagem, Charles Dickens nos alertou quão entranhado estava, inclusive entre o povo simples, o cultivo da privacidade entre os anglo-saxãos. Wemminck, evidentemente, levara ao exagero e à bizarria a afirmação, tão comum entre os seus conterrâneos, que dizia "meu lar é meu castelo".
O surgimento da privacidade
G.M. Trevelyan, o historiador da sociedade inglesa, registrando esse novo estado de espírito, apontou para os fins do século 17, o momento em que se operou uma duradoura alteração na arquitetura interna das mansões, casarões e palácios. O crescente desejo pela privacidade e pelos momentos íntimos levou a que os quartos adquirissem maiores dimensões e confortos, e que as salas - os espaços públicos - onde outrora se misturavam familiares, hóspedes e visitantes, se apequenassem. Alteração que se pode imputar à importância crescente da filosofia individualista de Locke, correspondente aos primeiros passos de uma sociedade rumo ao liberalismo.
A criadagem e o mexerico
Nunca houve, porém, biombo, cortina, porta ou parede suficientemente espessa que colocasse alguém a salvo das orelhas antenadas da criadagem. Evitar cair no falatório deles era uma precaução que todos os patrões, inutilmente, tomavam (na Rússia czarista a nobreza se precavia disso falando o tempo todo em francês).
Olhando-se para eles, para os empregados, aquela pobre gente que levava a vida cozinhando, esticando lençóis, lavando roupa, polindo a prataria, arreando os cavalos, aprontando a carruagem, ou abrindo, encurvado, as portas para a senhoria, o que mais lhes restava da existência senão o falatório, a intriga ou o sabor delicioso de um boato? Além disso, a vida dos grandes era um palco fascinante, irresistível.
A convenção dos bisbilhoteiros
Diariamente, ao anoitecer, na hora da sopa, presididos pelo mordomo ou pela governanta, reuniam-se ao redor da mesa da cozinha - o perpétuo tabernáculo dos domésticos - para relatar uns aos outros o que os patrões e demais familiares vestiram, comeram, disseram ou fizeram.
A jornada de glória deles dava-se no dia da feira, quando os serviçais, aias e lacaios da região, se encontravam e, aflitos, trocavam informações entre cochichos. Era a convenção da bisbilhotice. Em pouco tempo toda a comarca ou condado sabia o que ocorrera na pretensamente indevassável peça da casa senhorial.
A imprensa sensacionalista
Quando, a partir da segunda metade do século 19, surgiu a imprensa sensacionalista de massas da nossa época (resultado da alfabetização das multidões e do papel barato), flagelo das celebridades, ela nada mais fez do que difundir e ampliar, para milhões de almas afins, aquele restrito e medíocre diz-que-diz-que dos serviçais, sempre espiando através da fechadura, espreitando alguma maluquice da madame, uma traquinagem do delfim, um namoro proibido da donzela ou como um embaraçoso delito sexual do cavalheiro, o patrão de todos.
O que hoje se assiste, impresso em milhares de revistas e jornais populares nada mais é do que os fuxicos da criadagem espalhados pela mídia. Todavia, não deixa de chamara a atenção o fato de Murdoch, cujos jornais arrasaram a com a respeitabilidade e a integridade de muita gente ao longo destes últimos 40 anos, de ter arruinado vidas de políticos e profissionais e desfeito casamentos a granel, de ter exposto tanto nomes ao enxovalhamente público, agora experimenta do seu próprio veneno.
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