Descoberta por acaso, ela virou segredo de guerra e é acusada de ajudar na criação de supermicróbios capazes de exterminar a humanidade. Justo a penicilina, que veio para nos salvar.
Mariana Sgarioni
A injeção dói, é verdade. Mas alivia que é uma maravilha. Um santo remédio. Principalmente se você estiver derrubado, com a garganta cheia daquelas placas de pus que fazem com que nada passe goela abaixo, e o nariz tão entupido que qualquer golpe de vento parece sufocar. A penicilina é o primeiro antibiótico descoberto pelo homem e certamente um dia na vida você já se beneficiou dela, ainda que tenha sido apenas para limpar um ferimento. Isso para não citar o combate a infecções mais agudas, aquelas capazes de matar em pouco tempo.
A penicilina abriu caminho para as mais poderosas armas da medicina em prol da vida humana. Antes dos antibióticos, era possível morrer em decorrência de um mero resfriado, por exemplo. Segundo o Departamento de Saúde dos Estados Unidos, 15 anos após a introdução dos antibióticos no mercado, no início da década de 40, 1,5 milhão de americanos foram salvos da morte. No hospital Emílio Ribas, em São Paulo, que trata somente de doenças infecto-contagiosas, as mortes por febre tifóide baixaram de 14% para 0,7% no mesmo período de tempo (os antibióticos também chegaram ao Brasil na década de 40).
Apesar de tudo isso, o elixir que mudou o curso da humanidade não teve lá muito glamour em torno de sua descoberta – muito pelo contrário. A penicilina apareceu na década de 20, assim, sem querer, a partir de uma cultura de bactérias mofadas. As pesquisas ficaram anos paradas, até que voltaram a todo o vapor: afinal, a penicilina se tornou uma espécie de segredo estratégico durante a Segunda Guerra. Apesar de salvar milhares de vidas, seu uso indiscriminado vem sendo tema de debates acalorados, pois facilita o desenvolvimento de micróbios superpoderosos que causam sérios riscos à saúde humana. A partir de agora, você vai acompanhar a saga da penicilina, heroína que depende de muito bom senso para não se tornar uma grande vilã.
Poderoso mofo
A cena se passa em 1928, no hospital Saint Mary’s, em Londres, no bagunçado laboratório do especialista em bacteriologia Alexander Fleming, um simpático senhor escocês de cabelos brancos, olhos azuis, com jeitão de professor Pardal. Durante dias, ele observava uma colônia de Staphylococcus aureus, o temido bacilo que causa infecção generalizada. Numa certa manhã, ao chegar, percebeu que havia deixado a porta do laboratório aberta e, por isso, uma de suas placas de cultivo de micróbios apresentava manchas de bolor esverdeado. O fungo provavelmente entrara pelo corredor, proveniente do andar de baixo (onde funcionava justamente o laboratório de bolores). Fleming tinha esquecido de colocar a bandeja com a cultura do bacilo na incubadora, como de costume – cansado e doido para sair de férias, o professor até pensou em deixar tudo ali mesmo na bancada, onde os bacilos poderiam crescer mais rápido.
Em vez de se chatear com o incidente da pesquisa embolorada, Fleming resolveu tirar proveito dele e observar o que tinha acontecido ali. Percebeu que o fungo Penicillium notatum havia matado as bactérias. A partir dele, extraiu a penicilina. Mas, afinal, o que havia de tão revolucionário nessa substância? Simples: como a penicilina é um bactericida que não é tóxico para o ser humano, pode ser usada para combater infecções sem enfraquecer as defesas do organismo. “Não inventei a penicilina”, dizia Fleming. “A natureza é que a fez. Eu só a descobri por acaso.”
Fleming, aliás, era o rei do acaso. Anos antes, em 1922, ele estudava a proliferação de micróbios em colônias cultivadas a partir de secreções nasais e, sem querer, por estar resfriado, deixou cair uma lágrima sobre a placa. No dia seguinte, notou que o local onde a lágrima havia caído estava isento de micróbios. Foi então que ele descobriu que tecidos e secreções do corpo humano possuem uma substância – a lisoenzima – que tem a capacidade de dissolver certas bactérias.
Depois da descoberta da penicilina, Fleming ficou paranóico atrás de fungos, chegando a virar motivo de piada. Para dar continuidade a sua pesquisa, comprava qualquer objeto mofado que via pela frente, até mesmo galochas e tecido velho de guarda-chuvas, e vivia revirando a casa de amigos atrás de um ou outro bolorzinho. Fleming investia o tempo todo em estudos e aplicações do remédio em tecidos infeccionados, lavando os ferimentos na pele com a droga ou aplicando-a em olhos infectados. Suas pesquisas, entretanto, ainda estavam longe de considerar a penicilina administrada em comprimidos ou diretamente na veia do paciente – esta sim viria a ser uma grande revolução na medicina. Na época de Fleming, os médicos eram um tanto resistentes a substâncias que pudessem ser injetadas na veia para afastar infecções.
Arma de guerra
Pouco tempo depois da descoberta de Fleming, as pesquisas com a penicilina simplesmente pararam. Achando que a droga poderia não ser um bom negócio, o professor resolveu se dedicar a outro medicamento, o salvarsan, contra sífilis – mal sabia ele que a própria penicilina era um santo remédio contra a doença. Somente na década seguinte, entre 1938 e 1939, a dupla de pesquisadores Ernst Chain e Howard Florey, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, retomou os estudos com a penicilina, agora com a intenção de administrá-la na veia.
Paralelamente às pesquisas de Chain e Florey, estourou a Segunda Guerra Mundial. A necessidade de uma nova droga para tratar infecções era cada vez mais urgente para os ingleses, engajados na luta contra a poderosa Alemanha de Hitler – além dos mortos, o conflito deixava milhares e milhares de feridos. Até que, em 1940, a dupla conseguiu, por congelamento, desenvolver o pó da penicilina para administação venal. Os primeiros tratamentos foram feitos em crianças, que precisavam de quantidade menor da droga. Como os resultados foram animadores, a produção de Chain e Florey expandiu-se para uma escala maior.
Começaram a pipocar minifábricas do remédio por todos os cantos de Londres. Vários soldados feridos foram tratados e salvos, fazendo com que a fórmula da penicilina se tornasse um grande segredo dos países aliados. “Ao apresentar um efeito benéfico, a penicilina se tornou um aliado da Grã-Bretanha na guerra. Todo cuidado era pouco para que suas amostras não caíssem nas mãos dos nazistas”, diz Stefan Cunha Ujvari, médico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, e autor do livro A História e suas Epidemias.
A produção em larga escala logo chegou aos Estados Unidos. Até que os laboratórios passassem a estocar o Penicillium notatum em grandes tanques de fermentação, boa parte da penicilina americana era fabricada em grande escala a partir de melões podres. Em 1945, o ano em que a Segunda Guerra terminou, Fleming, Florey e Chain dividiram o Prêmio Nobel da Medicina.
Fleming e o Brasil
O segredo em torno da penicilina não teve nada a ver com as intenções originais de Fleming, que desejava que ela chegasse logo a quem precisava. O professor escocês, inclusive, fez questão de não patentear seu invento, dizendo que se tratava de algo para “o domínio de toda a humanidade”. Apesar do pioneirismo, entretanto, Fleming não fora o único a obter resultados promissores com antibióticos. “Na década de 30, antes das pesquisas de Florey e Chain, cientistas da Alemanha nazista descobriram, a partir de testes em corantes, uma nova droga para combater bactérias: a sulfa. A penicilina até foi descoberta antes, mas a sulfa foi usada primeiro”, afirma Stefan Ujvari.
Ainda durante a guerra, em 1943, o bioquímico russo naturalizado americano Selman Waksman anunciou a descoberta da estreptomicina, poderoso antibiótico que age contra a tuberculose – em dez anos, os Estados Unidos conseguiram reduzir drasticamente a mortalidade causada pela doença: de 40 para nove em cada 100 mil habitantes. Foi Waksman, inclusive, que cunhou o termo “antibiótico”, que vem do latim, para designar substâncias vivas que combatem outras substâncias vivas. Os antibióticos podem ser produzidos a partir dos mais diversos seres, mas 80% deles seguem o exemplo da penicilina: são obtidos por meio dos fungos.
O caminho para o antibiótico é longo. Diariamente, chegam aos laboratórios de pesquisa das indústrias farmacêuticas centenas de amostras de todas as partes do planeta. Pequenas porções de solo são retiradas do fundo de florestas, do alto de montanhas, da beira de rios, da Antártida, do Himalaia e até das profundezas dos mares. Nelas, pode haver fungos que dêem origem a antibióticos contra alguma moléstia. Outra fonte conhecida de antibióticos são animais, como os insetos.
Essa busca incessante da indústria farmacêutica atrás de novos antibióticos, entretanto, esconde um grande perigo. O uso indiscriminado dos antibióticos está induzindo ao aumento no número de bactérias resistentes a eles. É uma bola de neve: cientistas fazem armas cada vez mais fortes e os microorganismos sobreviventes a elas se protegem com armaduras cada vez mais indestrutíveis. “A era dos antibióticos inaugurada pela penicilina estará ameaçada se não agirmos rápida e sabiamente. A resistência aos antibióticos contribuirá para milhares de mortes por infecções hospitalares, entre outras”, afirma Richard Wenzel, médico e professor da Universidade de Virgínia, nos Estados Unidos, especialista em resistência a antibióticos e nos impactos que isso pode causar.
Esse problema tão contemporâneo já havia sido identificado pelo próprio Fleming. Antes de morrer de ataque cardíaco, em 1955, ele chamou a atenção para o uso exagerado de sua descoberta, sobretudo no Brasil. Quando soube que aqui os médicos receitavam antibióticos para tratar furunculoses, mostrou-se alarmado, lembrando que a aplicação da penicilina nesses casos só provocaria a destruição dos anticorpos. Fleming ainda ficou horrorizado ao saber que no Brasil usava-se o tratamento à base de penicilina para doenças infantis como sarampo, rubéola e coqueluche. “Isso é erro dos mais sérios”, teria dito ele, segundo relato do bioquímico Tales de Queiroz Pimentel publicado no jornal O Estado de S.Paulo em novembro de 1973. “A penicilina, ao impedir a evolução da doença, pode torná-la maligna e até levar à morte.” Imagine o que Fleming diria se visse farmácias abarrotadas de antibióticos e de gente que os consome como se fossem aspirinas.
Pergunte ao farmacêutico
Boticários fuçavam plantas antes da era dos antibióticos
A descoberta da penicilina inaugurou uma nova era na indústria farmacêutica. Afinal, os antibióticos foram os primeiros medicamentos a serem produzidos em escala industrial. Antes que eles chegassem às prateleiras brasileiras, entretanto, quem tratava de inventar e buscar fórmulas mirabolantes de cura eram os farmacêuticos. Se hoje os conglomerados fabricantes de remédios fuçam o mundo todo em busca de novas substâncias com poder de cura, antigamente esse papel cabia a boticários, que saíam pelas matas e florestas coletando plantas e fazendo testes de seus efeitos no organismo. Foi assim com espécies como a camomila, a hamamélis e a beladona, por exemplo. O preparo dos remédios era manual. A planta era vigorosamente macerada e ficava descansando em álcool por cerca de 30 dias. Depois, era filtrada em papel, de onde se retirava seu extrato. Para fórmulas de uso externo, como cremes e pomadas, misturava-se o extrato a banha de porco e glicerólio de amido (algo parecido com gel e vaselina). Na publicação Pharmacia e Pharmaceuticos do Brasil, de 1938, poucos anos antes do início da era dos antibióticos, Cândido Fontoura, fundador do Laboratório Fontoura, apontava a existência de 6760 farmácias no Brasil. Desde então, o impacto da industrialização dos medicamentos foi enorme. Em 2005, as farmácias brasileiras já eram cerca de 74 mil, segundo o Conselho Federal de Farmácia – mais do que o triplo do número mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde, que é de uma farmácia para cada 8 mil habitantes.
Mórbida experiência
Durante décadas, negros americanos com sífilis foram mantidos longe da penicilina
A região de Tuskegee, no condado americano de Macon, no Alabama, foi palco de um dos maiores escândalos da história da medicina. Entre 1932 e 1972, o Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos realizou uma pesquisa envolvendo 600 homens negros, sendo 399 deles com sífilis e 201 sem a doença. O objetivo do estudo era observar como a moléstia evoluía sem tratamento. Os participantes da pesquisa não sabiam que tinham sífilis, nem os efeitos que ela podia causar. O diagnóstico dado era de “sangue ruim” – denominação utilizada pelos eugenistas americanos no fim da década de 1920 para justificar a esterilização de pessoas portadoras de deficiências. Os envolvidos na pesquisa ganhavam acompanhamento médico, uma refeição quente no dia dos exames e, isso mesmo, o pagamento das despesas com o próprio funeral. Na década de 40, durante a primeira metade do estudo de Tuskegee, a penicilina passou a ser produzida em escala industrial. Havia, portanto, cura amplamente conhecida e disponível para a sífilis. Mesmo assim, os participantes da pesquisa foram mantidos propositadamente sem tratamento. As instituições de saúde dos Estados Unidos receberam, inclusive, uma lista com o nome de cada um deles, com o objetivo de evitar que, mesmo em outra localidade, aqueles homens recebessem o antibiótico. A prioridade não era salvá-los, mas garantir que os dados do experimento não fossem “contaminados”. Após 40 anos de acompanhamento, ao término do projeto, haviam apenas 74 sobreviventes: 28 haviam morrido diretamente de sífilis e outros 100 de complicações decorrentes da doença. Ao longo do estudo, 40 esposas dos pacientes e 19 de seus filhos haviam contraído sífilis. O caso foi denunciado pela jornalista Jean Heller, da Associated Press, que em 1972 publicou uma extensa matéria no New York Times sobre o projeto. Segundo o historiador James Jones, autor de Bad Blood: the Tuskegee Syphilis Experiment (“Sangue ruim: o experimento de sífilis em Tuskegee”, inédito no Brasil), o caso é emblemático “por ter sido elaborado por pesquisadores supostamente preparados e com supervisão e respaldo de organismos governamentais”. A instituição responsável pela condução do projeto, na suas últimas etapas, havia sido o Centro de Controle de Doenças de Atlanta. Depois da denúncia, o governo americano acabou pagando mais de 10 milhões de dólares em indenizações para mais de 6 mil pessoas. Mas foi somente em maio de 1997 que o então presidente Bill Clinton pediu desculpas formais. Para cinco sobreviventes que compareceram a uma solenidade na Casa Branca.