Durante praticamente todo o Setecentos, falou-se em motins, sedições e levantes na região das Minas. A partir de meados do século XVIII, porém, as revoltas perderam seu caráter espetacular e tornaram-se surdas, disseminadas e constantes. Um círculo de letrados muito provavelmente foi responsável por algumas novidades importantes nesse contexto. Uma delas, talvez a mais evidente, foi propiciar a emergência de uma rede de disseminação de idéias que se estendeu pelo interior e atingiu as três comarcas mais importantes da capitania – Vila Rica, Rio das Mortes e Serro do Frio. Entre os poetas reunidos pelo círculo letrado em torno de Cláudio Manuel da Costa, estavam Tomás Antônio Gonzaga, Domingos Vidal Barbosa, Álvares Maciel e o cônego Luís Vieira da Silva, e muitos outros que participavam dos cultos serões atravessados por muitas idéias, inclinações literárias, alguma maledicência e variadas rimas pastoris.
Gonzaga foi, provavelmente, o participante mais ativo na geração de um processo de formação e circulação de opinião sustentado pela prática do versejar. É certo que suas Cartas chilenas tinham como alvo específico o discurso político e as práticas administrativas de d. Luís da Cunha Meneses, governador da capitania e inimigo de Gonzaga, por lhe retirar os privilégios para cobrança de dívidas e execução de hipotecas e lhe excluir das até então lucrativas relações entre a magistratura mineira e o comércio ilegal do ouro e dos diamantes. Vistas por esse ângulo, as Cartas chilenas são, sobretudo, o resultado, em verso e rima, de um esforço razoavelmente bem-sucedido de desmoralização do governador e de seus favoritos na administração da capitania – além de funcionarem, é claro, como uma forma muito elaborada de panfleto político, de linguagem saborosa, rápida, cortante e sem precedentes nas Minas setecentistas.
Nas condições históricas e literárias em que Gonzaga compôs sua obra, reencontrar a virtude curiosamente pressupunha um retorno, algo a que se remonta, que se encontra como fundamento na origem de uma sociedade. Mas, com certeza, a sua não era uma opinião isolada: no século XVIII, a verdadeira ação revolucionária não poderia ser senão uma ação restauradora, como propunha Montesquieu.
Em boa medida, os letrados mineiros tratavam do problema político da corrupção e sobre as maneiras conhecidas de tornar essa sociedade capaz de se reencontrar, de bom grado ou à força, com o bom governo − uma ordem pública regida por leis que impeçam o descomedimento dos homens e das instituições. Mas, como intuía o alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, nenhum daqueles homens parecia ansioso por coisas novas; tratava-se, antes, de restaurar uma antiga ordem que fora perturbada e violada pelo despotismo de monarcas absolutos, por abusos do governo colonial ou por ambas as situações. À maneira de todos os outros revolucionários do século XVIII, Tiradentes também não estava preparado para desencadear alguma coisa sem precedentes.
O que lhes importava era uma certa concepção de liberdade. Os homens que participaram ou circularam em torno do grupo de letrados de Vila Rica e de São João del Rey deixaram atestado seu gosto pela estabilidade e pareciam desejar a liberdade sobretudo para cuidar de seus próprios assuntos.
A rigor, vinha daí o valor que emprestavam à idéia de república, baseado principalmente na relação que essa idéia manteve com determinadas características particulares a um tipo muito específico de cidade – aquela que adquiriu a liberdade de administrar seus próprios assuntos. Na realidade, o ponto de partida para a sensibilidade republicana da maior parte desses homens estava no ideal de cidade caro ao republicanismo anglo-americano, significando independência mais autogoverno. De fato, os letrados mineiros haviam aprendido, com a experiência histórica da América inglesa, que o poder estava nos diversos Estados soberanos, livres e independentes, e que esse poder se concentrava nos legislativos e, em particular, nas câmaras baixas.
Por conta disso, quem quisesse se confrontar com o establishment redigindo subversivamente novas leis para a capitania, como de fato Gonzaga e Cláudio Manuel pretendiam fazer, não teria de indicar a necessidade de consolidação da vasta área colonial portuguesa sob um governo nacional. Tratava-se de sublinhar seu compromisso com a decisão de vincular todo o sistema político a um processo de discussão e negociação específico ao legislativo. No contexto histórico da capitania das Minas, ao final do século XVIII, essa decisão só poderia ser traduzida por um projeto de recuperação do papel legislativo das câmaras municipais.
Contudo, no mundo português, as Câmaras Municipais foram também o único instrumento de representação dos interesses locais e a única promessa de continuidade administrativa respaldada na autoridade conhecida pelas vilas coloniais. Na prática, essas Câmaras funcionavam como um instrumento decisivo de política da Coroa – em parte, porque simbolizavam estabilidade e continuidade administrativa e, em parte, também, porque atuavam como espaço de expressão de ressentimentos locais em relação ao fiscalismo da metrópole. Além disso, numa sociedade fluida e móvel como eram as Minas setecentistas, as Câmaras significavam o meio possível para homens novos, naturais do país, ocuparem cargos de governança da terra, ver reconhecida sua competência e politizada sua prestação de serviços ou sua aspiração de ascensão social. Não era pouca coisa.
Outro indício muito característico da sensibilidade republicana que então se formava foi a intuição de que a soberania era de fato legislativa e, portanto, não podia ser compartilhada. Dessa descoberta, porém, derivava outra: a concepção de que havia algo muito pertinente na defesa do direito do indivíduo de desfrutar os próprios bens com imunidade contra a ação arbitrária do príncipe ou de seus representantes.
Não importava, nesse caso, se a república se ocultava sob a forma monárquica, como gostava de imaginar o cônego Luís Vieira; ou se, como queria padre Toledo, o critério de uma república bem ordenada devia basear-se na capacidade de seus dirigentes recrutarem seus cidadãos para a defesa da pátria – ainda que para isso fosse necessário alforriar mulatos e negros nascidos na colônia. Os homens que participaram ou circularam em torno do grupo de letrados de Vila Rica e São José del Rey tinham, no geral, uma conduta política orientada pela utilidade.
Imaginavam a liberdade nos termos de Montesquieu, como “um bem que permite gozar todos os outros bens”, e se aproximaram da forma republicana a partir do reconhecimento abrangente de que os interesses têm valor agregativo. Nenhum desses homens pareceu disposto, em algum momento, a renunciar aos bens dessa vida em nome das antigas virtudes políticas ou militares ou da formação de uma consciência cívica.
Ao contrário. Talvez não por acaso, tantos entre eles estiveram tão profundamente envolvidos com o contrabando. O padre Rolim, por exemplo, ocupou boa parte de sua vida metido em fraudes contra a Coroa: falsificou moeda, subornou autoridades – inclusive as eclesiásticas –, desviou diamantes da rota oficial de Lisboa para a trilha clandestina que terminava em Amsterdã. Mas padre Rolim foi também, ao que tudo indica, um homem vocacionado pelas luzes do cálculo e, como boa parte de seus parceiros, um personagem capaz de romper o cordão de isolamento da privacidade individualista. Na República que imaginava ajudar a criar, o comércio seria livre, os diamantes, de propriedade de quem soubesse garimpá-los, os dízimos ficariam com os vigários, o ouro alçaria “seu legítimo valor”.
É certo que a pretensão de uma forma republicana de governo para as Minas setecentistas fracassou – sobraram delitos de intenções, versos ambíguos, sermões atravessados, crimes de idéias, excesso de loquacidade; ou, se quisermos enxergar de outro modo, sobrou a devassa, os interrogatórios, o suicídio, as prisões, o exílio, o enforcamento de Tiradentes. Contudo, a partir de então, o vocábulo república deixou de significar apenas e pejorativamente a ilustração retórica da decadência, da anarquia e da desordem. Na origem desse republicanismo que deixou muito de seus traços na região das Minas, haveria ora em diante a possibilidade, sempre presente, de que os homens saibam e queiram manter suas mãos sobre a liberdade. Pensando bem, sobrou muita coisa.
Heloisa Starling é professora de história das idéias no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, organizadora do CD-Rom Visionários, a imaginação republicana nas Minas Gerais nos séculos XVII, XIX e XX (UFMG, 2004) e do livro Dossiê República Brasil (USP, 2003).
(RHBN. Nº 5. Novembro 2005. PP. 28-30)
Fonte:
Revista de História da Biblioteca Nacional