10.7.12
A revolução de Gorbachev
“No ano setenta da revolução, e sob o vigor de uma nova liderança, a União Soviética manobra para refazer a História”.
Roberto Pompeu de Toledo, de Moscou.
"O que está em jogo é a habilidade da União Soviética em entrar no novo milênio de maneira digna de uma grande e próspera potência. Sem o trabalho duro e a completa dedicação de cada um não será nem mesmo possível preservar o que já foi conseguido".
Mikhail Gorbachev.
"Duas Romas caíram. Resta uma terceira, invencível, e não haverá outra".
Monge Phlotkee, escrevendo ao czar Vassily III, no século XVI, a propósito da queda de Bizâncio e do papel de Moscou.
Segundo uma anedota que circulou na União Soviética nos tempos de Leonid Brejnev, líder do país entre 1964 e 1982, certa vez reuniram-se num mesmo trem os três dirigentes que se sucederam ao pioneiro Vladimir Lênin no comando da nação - Josef Stálin, Nikita Kruchev e o próprio Brejnev. A certa altura o trem parou, porque faltavam trilhos à sua frente. Stálin, o primeiro a dar as ordens, mandou fuzilar metade dos funcionários da ferrovia e condenou a outra metade, enquanto recrutava os camponeses da região para o trabalho forçado de construir novos trilhos. Mais adiante o trem parou de novo, pelo mesmo motivo, e desta vez coube a Kruchev assumir a situação. Sua estratégia foi reabilitar os funcionários postos em desgraça por Stálin e ordenar-lhes que retirassem os trilhos atrás do trem e os colocassem na frente. Enfim, na parada seguinte, foi a vez de Brejnev, que ordenou aos passageiros: "Fechem todas as cortinas e balancem os corpos para trás e para frente". O trem continuava parado, mas pelo menos, dentro dele, tinha-se a impressão de movimento. A mesma anedota sofreu um adendo depois da espetacular ascensão de Mikhail Sergeievitch Gorbachev, de 56 anos, o homem que, com uma mancha na testa e cheio de autoconfiança, assombrou o mundo com o ímpeto de furacão com que assumiu o poder, em março de 1985. Quando chegou a vez de Gorbachev haver-se com o problema do trem, primeiro ele entregou-se a uma frenética doutrinação dos passageiros. Depois convidou-os a descer e a gritar alto, em coro: "Faltam trilhos! Faltam trilhos!".
No fim deste 1987 comemoram-se os setenta anos da Grande Revolução de Outubro, como dizem os soviéticos - aquele extraordinário momento de 1917 em que Lênin e um punhado de seguidores, como que pegando a História no contrapé, forçaram passagem entre a falência do reinado dos czares e os escombros da I Guerra Mundial para invadir o século XX com um regime de tipo único no planeta. Eles queriam tudo - o perfeito regime da bonança, da justiça e da igualdade. De Lênin a Gorbachev alguma água passou sob as pontes do Rio Neva, na antiga capital, Petrogrado, rebatizada de Leningrado, e do Rio Moskva, em Moscou, para onde foi retransferida a sede do governo. Hoje, os setenta anos da Revolução coincidem com um fascinante momento de questionamento - o qual, entre muitos outros sinais, é revelado pela anedota do trem. Enquanto sob a liderança morna, quase preguiçosa, de Brejnev, os problemas eram jogados debaixo do tapete, com Gorbachev os soviéticos são convidados a encará-los. Brejnev era o líder para quem tudo corria da melhor maneira, no melhor dos mundos. Gorbachev esforça-se por denunciar o que está errado. Se há um traço principal em sua liderança, até agora, é a proclamação incessante de que há problemas e de que esses problemas poderão se transformar em perigos a curto prazo. "Vivemos uma situação de pré-crise", disse ele no fim do mês passado, durante uma reunião do Comitê Central do Partido Comunista.
Na verdade, Gorbachev está colocando dentro da URSS aquelas perguntas duras, alimentadas na realidade e terrivelmente factuais, que, até agora, só eram feitas fora do país - e pelos mais incômodos críticos do regime soviético. Não tem sido fácil, para o mundo exterior, entender esse Gorbachev irrequieto, impaciente em seu desejo de ver as coisas se moverem e tomado de um vigor duplicado pelo contraste com a liderança velha e doente a que veio suceder. Exatamente o que ele quer e até onde está disposto a ir - eis uma questão que intriga e apaixona nesse líder de 56 anos de idade que fez quase toda sua carreira em sua província natal, Stavropol, ao sul de Moscou, e irrompeu de forma fulminante das sombras da política doméstica para a cena mundial. A rigor, a liderança que se esconde atrás do Kremlin nunca deixou de intrigar o Ocidente, mas Gorbachev chegou com características especiais, entre as quais não é a menor o magnetismo pessoal e o charme burguês de se fazer acompanhar da mulher, Raisa, nas viagens e outros compromissos.
Com todo seu capital de campeão de audiência no Ocidente, Gorbachev não é invulnerável às ironias em seu próprio país. Mesmo a anedota do trem tem uma segunda intenção, menos lisonjeira - a de caracterizá-lo como líder que fala muito mas não faz, que grita diante dos problemas mas não os soluciona. Não há dúvida de que, nestes dois anos, o que Gorbachev construiu de mais vistoso está no campo dos gestos e das palavras. O melhor dele está embalado na palavra glasnost - transparência, em russo -, movimento pelo qual a imprensa ganhou uma certa descompressão, obras artísticas antes proibidas foram divulgadas e os próprios líderes passaram a abordar problemas antes inabordáveis. Quanto à outra palavrinha mágica do vocabulário-base do novo líder - peristroika, ou reestruturação, rótulo que resume seu desejo de revolucionar as relações econômicas do país -, por enquanto ela continua basicamente uma promessa para o futuro.
Daí, porém, a caracterizar Gorbachev como um líder fátuo, que fala mas não faz, vão uma distância e uma injustiça - em primeiro lugar, porque a glasnost tem um valor em si. "Breve, glasnost será uma palavra russa tão conhecida no mundo quanto a palavra sputnik", extasia-se o poeta Yevgeny Yevtuchenko, que há 25 anos vem conseguindo equilibrar-se entre o que quer colocar em seus versos e o que os censores permitem que coloque. Outro escritor, Ieremei Parnov, autor de romances históricos de vastas tiragens, resumiu a glasnost para VEJA com uma fórmula que toca fundo a essência do gorbachevismo. "A conquista mais importante foi que agora temos a tendência de ver as coisas como são, não como queremos que sejam", disse Parnov.
Começa-se a compreender Gorbachev quando se imagina um médico que já precisou seu diagnóstico, mas que, para acertar na cura, ainda consulta seus livros de receitas. O diagnóstico é de que a URSS teve seu crescimento perigosamente estagnado durante a última década do reinado de Brejnev, de que o moral do povo se esgarçou e de que entre ela e os países adiantados do Ocidente abriu-se um descompasso, cada vez mais amplo, que ameaça desbancar o país de sua condição de potência mundial. Está-se a anos de distância do ufanismo brejneviano, época em que oficialmente se considerava a URSS na fase do "socialismo avançado" e a um passo do "comunismo". Na linguagem marxista, isso significaria que o país já teria ultrapassado a fase mais dura de "construção do socialismo" e se colocaria na véspera da situação de paraíso social, sem conflitos nem entraves, a que a teoria chama de comunismo.
Em teoria, quando se considera a União Soviética, está-se diante da segunda potência industrial do planeta. Para impor respeito o país assenta-se num arsenal de 10.000 cabeças nucleares. E para mostrar de que fantásticas proezas é capaz tem astronautas que voam pelo espaço com mais segurança e desembaraço do que os americanos, vitimados na carne e no moral com o desastre da nave Challenger. Visita-se Moscou ou Leningrado, porém, e sente-se nas coisas mais simples a disparidade existente entre o status de superpotência da URSS e as realidades de seu dia-a-dia.
Tome-se um carro, para começar, e se constatará que os buracos das ruas, assim como as condições do veículo, em geral já muito rodado e com um desenho de segunda classe, são de qualidade, por assim dizer, latino-americana. Já ao descer do automóvel e necessitar de qualquer coisa, o visitante enfrentará problemas maiores - os serviços, na URSS, podem descer ao padrão africano. Num restaurante, depois de uma espera colossal, jamais se deve manter a expectativa de que o garçom perguntará se o freguês prefere seu bife bem ou malpassado. Não se chegou a esse grau de atenção. Tampouco se pode confiar que existam todos os pratos do cardápio. Nem sempre a relação coincide com as imprevisíveis disponibilidades da cozinha.
Os russos costumam sair às ruas armados sempre de uma sacola na mão e dinheiro no bolso. Estão sempre prevenidos porque, quando menos se espera, se pode deparar com um armazém que esteja vendendo tomates, por exemplo - e é bom garantir a compra na hora porque, assim como o tomate esteve sumido da praça por semanas a fio, depois dessa breve aparição sumirá outra vez. Russo também tem o costume de muitas vezes entrar nas lendárias filas que se formam no país sem saber o que se está vendendo. Primeiro garante-se o lugar para depois se ver o que há para comprar.
À distribuição lotérica dos artigos de consumo soma-se outro problema sua qualidade. "Precisamos acabar com a fixação nos grandes números", afirma o escritor e jornalista Vitaly Korotich, editor da revista Ogoniok, a mais em moda hoje em Moscou. "Sempre produzimos o dobro, em metais, do que os EUA, mas nossos metais são piores. Também produzimos mais sapatos do que qualquer país do mundo, mas na Hungria encontrei sapatos brasileiros e comprei-os. São melhores."
O dinamismo de Gorbachev contrasta com a natureza rústica e inepta da URSS do dia-a-dia, mas é preciso dar ao líder vários descontos. Precisa-se ter em conta, por exemplo, a natureza das sucessões em Moscou, caracterizadas por um ritmo que faz com que dois anos no poder - metade de um mandato ou quase isso numa democracia ocidental - não sejam nada na URSS. "Sucessões de liderança são marcos na história soviética", escreve o professor americano Seweryn Bialer, um especialista em URSS. "Nenhum prazo determinado existe para o ocupante do cargo máximo. Os termos em que exercerá o poder também não são claros, nem seus direitos e obrigações."
Em princípio, um líder da URSS liga-se ao poder até que a vida os separe. Nesse sentido, as sucessões no país lembram a sucessão de um império antigo. Da mesma forma, as marcas deixadas pelos líderes são como as marcas dos antigos imperadores. Um soviético tem na ponta da língua a época em que foram construídos os edifícios de sua cidade. "Este é da era de Stálin", dizem. "Aquele outro foi erguido sob Kruchev." Imagine-se se um brasileiro saísse por sua cidade dizendo que tal edifício revela a marca de Castello Branco ou que aquele outro foi erguido sob José Sarney. Em Moscou se está como em Roma, onde se sabia perfeitamente que tal coluna é de Augusto e tal arco de Adriano.
A comparação de Moscou com Roma é do tempo dos czares mais remotos. Para eles sua capital era a "Terceira Roma", depois da própria capital do Império Romano e de Bizâncio, dotada da mesma missão civilizatória. Não é por acaso que a comparação possa voltar à mente, hoje: Moscou continua comandando um império. Além das quinze repúblicas que formam a "União" a que se refere o nome oficial do país, incluem-se ainda nele vinte "repúblicas autônomas", tudo isso englobando nas imensidões de seu território mais de 100 nacionalidades e outros tantos idiomas. Um asiático da República do Turcomenistão é para um russo tão estrangeiro quanto para um francês é um boliviano. Os tipos morenos da República da Geórgia, no sul do país, habituados a um clima tão ameno quanto o da Itália, nada têm a ver com os russos da Sibéria, que se cobrem de peles e se movem em trenós.
O significado da palavra "soviético" - conceito em que os russos propriamente ditos se incluem como apenas a metade da população da URSS, de 285 milhões de habitantes - toma forma e conteúdo quando se passeia pela Praça Vermelha, lugar de peregrinação para os visitantes que chegam de todos os cantos do império. Olha-se para um canto e depara-se com um grupo de armênios. Olha-se para outro e flagra-se uma família do Usbequistão que se oferece em versão três gerações - pais, crianças e avós. O pai, Bahredi, em roupas mais modernas, explica que já esteve outras vezes em Moscou, mas é a primeira em que está trazendo os velhos, enrolados em trajes típicos. Ele acrescenta com orgulho que o velho é veterano da "Grande Guerra Patriótica", como os soviéticos chamam a II Guerra Mundial. A velha, por sua vez, ganhou o título de "Mãe Heroína", por dar à luz onze filhos.
É um paradoxo que a URSS, pioneira do socialismo e do "mundo novo", seja ao mesmo tempo o último dos impérios à moda antiga, onde se agrupam nacionalidades diversas, distintos idiomas e terras distantes - como o Império Austro-Húngaro ou o Império Otomano. Isso só complica o impulso reformador de Gorbachev. Na verdade, por enquanto, o novo senhor do Kremlin apenas afia suas armas - e uma das que vêm sendo mais bem afiadas é a imagem de marca do país. Contra a idéia de uma União Soviética cinzenta, fechada e inflexível, Gorbachev ataca com inovações como a conferência de imprensa que agora é concedida aos jornalistas no auditório de um prédio da Avenida Zubovski pertencente ao Ministério das Relações Exteriores. Nesse auditório, às terças e quintas-feiras, um jornalista com experiência de seis anos como correspondente em Nova York, Guenadi Guerassimov, transformou-se num dos símbolos mais visíveis da glasnost ao aceitar o papel de porta-voz do Ministério do Exterior - e, por extensão, do governo em geral, já que não há em outros ministérios figura equivalente. Nada mais banal, em outras partes, do que um porta-voz para dar conta dos atos do governo. Na URSS, o hábito, instituído há um ano, é um marco dos novos tempos.
Aos 56 anos, como Gorbachev, Guerassimov exibe ternos de fino corte e um humor frio, capaz de oferecer aos jornalistas comentários como o que fez a propósito do escândalo dos marines americanos acusados de se embriagar e promover orgias na Embaixada dos Estados Unidos em Moscou. "Sinto que, depois do grande triunfo de Granada, os marines tenham conhecido nesse episódio sua primeira derrota", disse. O humor e os ternos - mais o inglês impecável - sugerem que têm fundamento as análises de que há no fenômeno Gorbachev um substrato de geração, ou seja: a ascensão ao comando de uma geração mais educada, segura de si e sofisticada. Por que essa geração demorou tanto a chegar ao poder? "Por polidez", respondeu Guerassimov a VEJA. "Nós não poderíamos chegar aos velhos e dizer: 'Olha, vocês já ficaram muito tempo'. Tínhamos que obedecer ao processo democrático, o nosso próprio processo democrático."
No fundo Guerassimov é como Raisa Maximova, a mulher de Gorbachev - um enfeite. Mas os enfeites têm seu peso no jogo de gestos e simbolismos que constitui a política. O que Gorbachev mostrou sobretudo, nestes dois anos, é que é um grande político, hábil na alternância das ousadias com o cálculo de até onde é possível avançar. "Ele não é um voluntarista como Kruchev, um impulsivo com boas intenções mas fraco nas bases", analisa Guerassimov. "Também não é outro Pedro, o Grande, que quer virar o país do avesso. Ele tem caminhado por consenso, única forma de se fazer as coisas politicamente."
Fonte: Revista Veja
Publicado na Revista VEJA em 29 de julho de 1987
http://w3.ufsm.br/mundogeo/geopolitica/more/glasnost.htm