Por Wagner Ribeiro
Em setembro de 1939, estourava a 2ª Guerra Mundial com a Alemanha nazista invadindo a Polônia. Em várias partes mundo pipocavam paralelamente diversas batalhas que ganhariam no futuro nomes próprios. Uma delas foi a Guerra de Inverno entre a União Soviética e a Finlândia, cuja data oficial é 30 de novembro, quase três meses após o início da Grande Guerra. O líder soberano russo, Josef Stalin, ordenou que 1 milhão de soldados marchassem contra a Finlândia. Os finlandeses contavam com apenas 300 mil soldados. Mas havia, entre eles, uma arma secreta: o sniper Simo Häyhä, também conhecido como Morte Branca. Questionado sobre como se tornou um franco atirador tão eficiente, ele simplesmente respondeu: “Prática.”
O conflito entre e União Soviética e a Finlândia possui precedentes históricos. ”Mesmo antes de 1939, as relações entre essas nações sempre foram tensas”, explica o capitão Ferreira Júnior, graduado em História e membro do Arquivo Histórico do Exército Brasileiro. “A Finlândia fizera parte do Império Russo até 1917, quando se declarou um país independente e soberano com o apoio da Alemanha imperial”, comenta Júnior.
Na época da independência finlandesa, Simo Häyhä contava apenas 11 anos. Nascido em 1906 em uma fazenda na cidade de Rautjärvi, próxima à fronteira com a União Soviética, ele era um garoto franzino e de baixa estatura, características físicas que não mudariam muito com o passar dos anos. Crescera habituado ao trabalho braçal e à caça de animais, o que fez dele um homem forte, mas que media um pouco mais de um metro e meio. Em 1925, aos 19 anos, começou o treinamento obrigatório no Exército finlandês, do qual foi dispensado como cabo.
“Transferido para a Guarda Nacional de Rautjärvi passou a treinar tiros à distância com o rifle. Atingir um alvo a 150 metros, 16 vezes por minuto, tornou-se uma tarefa fácil para o futuro sniper do Exército finlandês”
Pouco tempo depois, foi transferido para a Guarda Nacional de Rautjärvi e passou a treinar tiros à distância com o rifle. Devido à dedicação aos treinamentos, atingir um alvo a 150 metros, 16 vezes por minuto, tornou-se uma tarefa fácil para o futuro sniper(franco atirador) do Exército finlandês. Seria essa a habilidade que o tornaria uma peça valiosa no combate às forças armadas soviéticas na Guerra de Inverno.
O motivo que levou Stalin a enviar as tropas soviéticas para dominar a Finlândia e dar início à Guerra de Inverno foi uma estratégia de defesa. “A URSS atacou a Finlândia para defender e fortalecer o flanco norte, ou seja, Leningrado, já tendo em vista a invasão nazista por meio desse território”, comenta Júnior. Para João Fábio Bertonha, doutor em História pela Universidade Federal de Maringá, “Stalin acreditava que dominar a Finlândia seria o mesmo que dar um ‘passeio’ por aquele território, já que Exército vermelho era imensamente superior”, diz. Stalin esperava conquistar todo o país até o fim de 1939. Mas a meta não seria atingida por dois motivos básicos: primeiro, pela falta de conhecimento das fragilidades das próprias tropas; segundo, pelo desconhecimento do território finlandês.
1. Atingido por um tiro na mandíbula, Häyhä levou vários anos para se recuperar / 2. General finlandês, o brilhante barão Carl Gustaf Emil Mannerheim / 3. A URSS atacou a Finlândia para defender e fortalecer o flanco norte dos nazistas, ou seja, Leningrado
A MORTE ERA BRANCA
Stalin enviou 1 milhão de soldados russos para aniquilar 300 mil soldados finlandeses. A expectativa do Exército vermelho era de que a operação fosse rápida e sem grandes baixas: o território inimigo deveria ser conquistado até o fim de 1939. A meta até poderia ter sido atingida, já que possuíam recursos para tanto: aviões de guerra, artilharia e grupos de paraquedistas. No entanto, as tropas soviéticas agiam sem comando nem coordenação das ações em campo de batalha.
A falta de articulação militar, segundo Delmo Arguelhes, doutor em História e professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), “é resultado do Grande Expurgo de 1937, período em que 80% dos oficiais soviéticos foram assassinados, deixando as tropas sem comando tático e estratégico”. Outro elemento complicador para a União Soviética era o fato de que o mesmo percentual de oficiais mortos durante o Grande Expurgo, ou seja, 80% dos soldados russos na Guerra de Inverno, eram reservistas convocados às pressas, sem experiência de combate. Estes homens destreinados se viram, subitamente, atacando uma linha defensiva muito bem orquestrada pelo general finlandês, o barão Carl Gustaf Emil Mannerheim.
Os soldados finlandeses utilizavam camuflagem branca e esquis para se locomoverem rápida e despercebidamente
Equipe de franco-atiradores com um rifle Moisin Nagant e uma metralhadora M31 Suomi. Ambas as armas usadas pelos snipers
Esse foi primeiro erro de Stalin: desconhecer as fragilidades das próprias tropas. O segundo erro consistiu no desconhecimento do território finlandês e das condições climáticas. O inverno na Finlândia durante os anos da guerra atingia temperaturas de -40 oC, e os finlandeses souberam usar isso a favor deles. A resistência inicial às tropas soviéticas foi baseada na exploração do terreno de neve e florestas. Os soldados utilizavam camuflagem branca e esquis para se locomoverem rápida e despercebidamente.
“A URSS atacou a Finlândia para defender Leningrado temendo uma invasão nazista. Stalin acreditava que dominar a Finlândia seria o mesmo que dar um ‘passeio’ por aquele território”
Foi neste cenário de falta de comando e de perícia militar das tropas soviéticas que Simo Häyhä entrou em ação. Vestindo a camuflagem branca, Häyhä praticamente desaparecia no ambiente coberto de neve. A capacidade de se camuflar, aliada à sua habilidade com o rifle, fez dele o mais temível franco atirador do Exército finlandês.
“A falta de articulação militar foi resultado do Grande Expurgo de 1937, período em que 80% dos oficiais soviéticos foram assassinados, deixando as tropas sem comando tático”
Um soldado com as habilidades de Simo Häyhä era utilizado nas guerras para semear o terror nas tropas adversárias. “Os francos-atiradores servem especialmente para manter o inimigo nervoso, sem descanso”, conta João Fábio Bertonha, doutor em História pela Universidade Federal de Maringá. “O inimigo fica irritado e inseguro, pois pode ser baleado a qualquer momento, mesmo longe da frente de batalha”, analisa.
Enlouquecer o inimigo foi um papel muito bem feito por Simo Häyhä na Guerra de Inverno. Entre as táticas que ele utilizava para preservar os esconderijos, estava o uso de miras comuns, em vez das telescópicas. Isso permitia que a cabeça dele ficasse mais baixa e que luz do sol não fosse refletida pela lente. Häyhä também costumava colocar neve na boca para esconder sinais de sua respiração. Na medida em que cumpria sua missão, a fama dele aumentava e passou a ser chamado de Belaya Smertpor soldados inimigos e Valkoinen Kuolema, pelos aliados. O significado para as duas alcunhas era o mesmo: Morte Branca.
Além das mortes como franco atirador, credita-se à Häyhä o abatimento de mais de 200 soldados inimigos com uma submetralhadora , elevando sua marca para mais 700 mortes. Mas esse fato nunca foi comprovado.
1. Simo Häyhä recebendo o título de “rifle honorário” pelo comandante da divisão, em 17 fevereiro de 1940 / 2. Tropas da divisão Suojärvi no Natal de 1939. Momento de oração a apenas algumas centenas de metros atrás da linha de frente
FIM DA GUERRA E DO ATIRADOR PRODÍGIO
A União Soviética teve grandes dificuldades em conquistar o inimigo. Em fevereiro de 1940, os russos ampliaram o ataque e só com o envio de 54 divisões militares, com massivo apoio aéreo e de artilharia, conseguiram romper a Linha Mannerheim. Em seguida, executaram vários planos para deter Simo Häyhä, com o envio de francosatiradores e assaltos de artilharia. Mas o Häyhä conseguiu evitar todas as tentativas de assassinato. Só em março de 1940, ele foi atingido por um tiro na mandíbula que atravessou seu crânio e quase o matou. Com Simo Häyhä fora de combate e as tropas finlandesas desgastadas, a guerra teve fim em 12 de março de 1940.
O saldo de morte na Guerra de Inverno para a Finlândia foi de 25 mil homens mortos e 43 mil feridos. Os russos tiveram 200 mil mortos e 400 mil feridos. Para a maior parte dos estudiosos, essa foi uma guerra sem vencedores. “O resultado da investida soviética contra Finlândia foi constrangedor”, afirma Bertonha. O objetivo era proteger a União Soviética da possível investida da Alemanha nazista, mas o efeito foi contrário. Hitler ficou convencido de que o Exército Vermelho, apesar de grande, era fraco. Por outro lado, analisa Bertonha, a Guerra de Inverno levou os soviéticos a promover profundas mudanças no Exército Vermelho, com reinstauração de oficiais qualificados e modernização das forças armadas, elementos fundamentais que a União Soviética pudesse, tempos mais tarde, resistir à invasão alemã.
Simo Häyhä ficou em coma até o dia 13 de março de 1940, um dia após a assinatura do tratado de paz entre Finlândia e União Soviética. Pouco tempo depois fora promovido de cabo a primeiro tenente pelo então marechal Mannerheim. A Guerra de Inverno estava acabada. Mas o Morte Branca carregaria no rosto deformado, as marcas das batalhas, nas quais, em 100 dias de confronto, ele assassinou mais de cinco soldados soviéticos por dia.
Depois de se recuperar dos ferimentos, Simo Häyhä passou os últimos anos em uma pequena vila chamada Ruokolahti, no sudeste da Finlândia, próxima à fronteira com a Rússia. Pouco antes de morrer, em 1º de abril de 2002, aos 96 anos, em uma entrevista, foi questionado se havia se arrependido dos assassinatos cometidos durante a Guerra de Inverno, a resposta foi segura e clara: “Fiz que o me mandaram fazer e protegi o meu país da melhor maneira possível.”
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