5.9.12

Ford na Amazônia


Diante do aumento do preço do látex no início do século XX, o magnata da indústria automobilística decidiu criar sua própria fábrica de borracha no coração da floresta tropical brasileira. Nascia, assim, a Fordlândia

por Victor Battagion

Quando chega a noite, começam os ruídos e cantos de pássaros. Entre uma grande cisterna e uma pitoresca igreja de paredes brancas, a minúscula cidade de Fordlândia está mergulhada no nada. Seu único porto está deserto, com apenas dois barcos a motor amarrados. Um imponente hangar metálico, envolvido por cipós, recebe os improváveis visitantes vindos em lanchas. As três principais avenidas, de terra, são margeadas por casas de madeira, telha metálica e tijolo. A luz de alguns lampadários rasga a escuridão, criando reflexos em duas ou três motos. “É raro ver estrangeiros por aqui. Os últimos foram jornalistas britânicos que se aventuraram a contar a história do projeto do sr. Ford”, conta Luís, proprietário de uma das duas pousadas da região. “Como você pode ver, a Fordlândia é uma cidade fantasma. Não tem restaurante, não tem hotel, muito menos lojas de suvenires. Bem-vindo ao fim do mundo”, brinca. As acomodações se resumem a um quarto sóbrio, com duas camas de solteiro, e um banheiro sumário. E o barulho da floresta lá fora.

Nos anos 1920, o insano projeto de criar uma unidade de produção de borracha na Amazônia começou a germinar na cabeça de Henry Ford (1863-1947), o inventor da linha de montagem na indústria automobilística. Naquela época, o mercado do látex estava sob domínio dos ingleses, proprietários de gigantescas produções de seringueiras no sudeste da Ásia. O magnata americano dos automóveis, obrigado a desembolsar altas somas para conseguir a matéria-prima para a fabricação de seus pneus, decidiu acabar com o monopólio britânico. Ainda mais porque estava a ponto de lançar um novo modelo de carro, o Modelo A, substituto do lendário Modelo T – o que provavelmente aumentaria sua demanda por borracha.

Em um salão organizado no dia 9 de janeiro de 1928, em Nova York, o empreendedor confirmou o boato: sim, ele adquirira terras na Amazônia, às margens do rio Tapajós. E, sim, a Ford Motor Company cultivaria a Hevea brasiliensis nessa área de mais de 10 mil km2, quase tão extensa quanto Connecticut ou a ilha de Chipre. Uma cidade seria construída para receber os executivos americanos e os seringueiros, contratados durante a colheita da seiva e recrutados no local. Uma loucura? Não, parecia mais um braço de ferro com a natureza.


Material Importado

Os jornalistas e a opinião pública viram nesse projeto um afrontamento dantesco entre duas forças irredutíveis. De um lado, Ford, arauto da performance e da determinação do capitalismo americano. De outro, a Floresta Amazônica, indomável, fechada em seu mundo selvagem e misterioso. “Se a máquina, o trator, pode abrir uma brecha em um paredão verde da Floresta Amazônica, e se Ford conseguir plantar milhões de seringueiras onde não havia mais que a solidão da floresta, pode-se então dizer que a história romântica do látex ganhará um novo capítulo”, assinalava, então, um jornal alemão.

No Brasil, o milionário americano foi anunciado como um “messias”. Recebeu o apelido de “Moisés do Novo Mundo”. Sua vinda se tornou sinônimo de ressurreição da exploração da borracha, que havia entrado em decadência desde que a Inglaterra levara clandestinamente milhares de sementes de seringueira para criar as plantações em suas colônias na Ásia. Os habitantes locais já podiam se imaginar ao volante de um barulhento automóvel, rodando rumo a horizontes mais auspiciosos. “Vou, finalmente, aprender a dirigir!”, reagiu um índio ao anúncio da chegada da Ford.

A decisão de Ford de se voltar à América Latina para fundar uma unidade de produção depois da explosão do preço da borracha se baseou em um relatório feito por Carl Larue, um botânico da Universidade de Michigan, que descreveu o local ideal para cultivar a seringueira: uma zona de floresta perto do rio Tapajós. Por meio de seus advogados, Ford negociou uma concessão com o estado do Pará em outubro de 1927. O local, originalmente chamado Boa Vista, foi rebatizado de Fordlândia. Nascia então um novo braço da empresa americana: a Companhia Industrial do Brasil. Não faltava mais nada.

Em agosto de 1928, o navio a vapor Lake Ormoc partiu de Dearborn, feudo de Ford em Michigan, rebocando a embarcação Lake Farge, com todo o material necessário: galpões pré-fabricados, uma serralheria, uma central elétrica, tratores, uma loco-motiva com todo o equipamento e uma máquina para produzir gelo artificial. A ideia era instalar no meio da floresta toda a estrutura de uma vila no padrão norte-americano, com casas, escolas, hospitais, estação de tratamento de água e usina de geração de energia, central de rádio e telefonia e, claro, uma estrutura para beneficiamento de látex.




Incêndio acidental

Enquanto esperavam a chegada do comboio, W. L. reeves Blakeley e Jorge villares, os gerentes da futura colônia, realizavam os trabalhos de desmatamento. Sob sua supervisão, derrubavam-se árvores, e dezenas de hectares foram limpos. Estavam em plena estação de chuvas. Para queimar os dejetos, usavam querosene. Resultado: a floresta pegou fogo, forçando as onças, macacos e outros animais a fugir em um tumulto de gritos e cheiro de carne queimada. O fogaréu demorou dias até apagar. Mau agouro. Mas os problemas estavam só começando. Entre outubro e novembro, a temperatura chegava a 41 °C. Os homens trabalhavam sob um sol escaldante. Cobertos de suor, ficaram cheios de picadas de mosquitos e formigas. Além de sofrer com disenterias, infecções, picadas de cobra, entre outras agruras. O “inferno verde” parecia estar reivindicando seus direitos.

Reforços chegaram em dezembro. Blakeley, considerado um pouco ambicioso demais, foi substituído pelo capitão norueguês Einar Oxholm, descrito por um colega como um “homem grande” com uma “cabeça pequena”. O novo administrador não tinha nenhuma experiência de botânica ou de gerenciamento. Mas isso não importava. Ele era reputado por sua honestidade e poderia aprender na prática. Mas não contou com as condições de vida na Amazônia...

O escandinavo contratou muitos funcionários para atuar no local, mas todos acabavam abandonando seus postos, exaustos pelo trabalho árduo e assombrados com a chegada da estação seca (de julho a novembro), época dos mosquitos. Para motivar os moradores locais, Henry Ford prometia pagamentos de 25% a 35% superiores aos praticados na região. No meio da floresta, entretanto, isso não fazia muito sentido. Naquela época, a economia do rio Tapajós era baseada em trocas e no crédito. Ter dinheiro não representava muito – já que não havia muito que comprar.



Lei seca na selva

Era preciso criar a necessidade do dinheiro. Lojas, cafés e restaurantes começaram a surgir. Salas de jogos e bordéis foram abertos. Resultado: uma verdadeira favela de 5 mil almas se formou no meio da floresta. Einar Oxholm não podia acreditar. Estava diante de muita gente, muitos problemas e muitas seringueiras para plantar. E eis que, das profundezas de Michigan, Henry Ford começou a se preocupar em proibir o consumo de álcool no local.

O dono da Ford insistia para que a lei americana – Volstead Act –, de 28 de outubro de 1919, fosse aplicada em sua concessão brasileira a todos os empregados, americanos ou não. Quando o infeliz administrador tentou fechar os bares, os proprietários tentaram abri-los de novo em uma ilha bem em frente da Fordlândia. Foi desanimador. Ou tranquilizador, depende do ponto de vista. O próprio Oxholm tinha uma séria queda pela combinação de cachaça com limão, que lhe trazia forças para viver no local, descrito como “A Meca de todos os párias, incluindo os criminosos, do vale da Amazônia”.

Sólidos galpões foram construídos nessa época. A uma centena de metros do porto, existem até hoje dois deles. Iluminados por duas grandes janelas, foram invadidos pelo mato. Parece uma cena do filme Jurassic Park. Uma das construções era dedicada à produção de eletricidade. As chuvas e o mofo fizeram a madeira apodrecer, e hoje os aparelhos que ainda estão lá parecem esculturas primitivas. É possível ver um gerador com medidores da Weston Electrical Instrument Co., um enorme motor a diesel da marca Junkers e uma caldeira Mernak S.A. Máquinas, com cabos soltos e peças tortas, comidas pela ferrugem e pelo tempo. Rodas de tratores em um canto, carrocerias de veículos em outro. “Os americanos nunca se lançavam em um negócio sem garantias sólidas e a certeza de que ganhariam dinheiro. Henry Ford fez de tudo para garantir seu investimento no Brasil. Ele transplantou um pedaço dos Estados Unidos aqui. Galpões cheios de máquinas made in USA, cafeterias e até um sistema de encanamento para distribuir a água por todo o local”, descreve Wilson, guia local.

É verdade. De fato, as pretensões do industrial foram consideráveis. Ele se sentiu imbuído de uma missão “civilizadora”. Os seringueiros tinham horários baseados nas fábricas americanas, apesar das temperaturas locais. Usavam crachás e batiam cartão de ponto. No quesito lazer, eram “convidados” a assistir a festividades americanas organizadas nos finais de semana com a leitura de poemas, corais e bailes com música folclórica. Quem desobedecia podia ser punido.



Aos poucos, a tensão foi subindo na Fordlândia. Em dezembro de 1930, ocorreu uma revolta. Desgostosos com todas as restrições impostas e com as condições de vida – entre elas a “ração” servida no refeitório, com receitas americanas –, os seringueiros se rebelaram. Armados com facões, eles destruíram os símbolos de sua opressão, como os relógios de ponto e caminhonetes. Apavorados, os ad-ministradores bateram em retirada. Foi preciso a intervenção do exército brasileiro para o restabelecimento da ordem. Trinta líderes da rebelião foram presos, e todos os outros, fotografados e fichados.

Disney na Amazônia

No segundo galpão, é difícil abrir caminho entre as caminhonetes Ford abandonadas e os destroços de equipamentos hospitalares – lâmpadas cirúrgicas, leitos etc. Um fato surpreendente é que uma máquina de cortar ferro ainda está em funcionamento, mais de 80 anos depois, e praticamente sem manutenção. No segundo andar, uma imensa prateleira metálica sustenta caixas cheias de peças de reposição com a inscrição Standard Oil of Brazil.

Saindo do prédio, segue-se para o hospital. O edifício também está em ruínas: uma parte do teto afundou, as portas foram destruídas, assim como as paredes. As salas de esterilização e Raio X foram transformadas em imensas incubadoras de mosquitos.

Para chegar ao bairro reservado aos americanos é preciso se enfiar na floresta e andar por mais de um quilômetro. As casinhas são perfeitamente alinhadas ao longo de uma grande avenida. Há umas dez casas, um hotel, uma piscina, postes de luz e hidrantes da época. A casa mais importante, a número 1, era reservada a Henry Ford. Sem muita utilidade, já que ele nunca pôs os pés na Fordlândia.

Ford não teria, de fato, razão para ir até lá. Seu projeto foi, no final, um fiasco. As seringueiras tiveram dificuldade para crescer. O terreno rochoso era pouco fértil, e os milhares de árvores foram plantadas muito próximas umas das outras. Como se tudo isso não bastasse, um cogumelo devastou as plantações. Os dirigentes tentaram encontrar soluções. Chamaram um botânico em 1933. Tarde demais.



O orgulho de Henry Ford ficou abalado, mas ele não desistiu. Teimoso, tentou no ano seguinte iniciar a fundação de um novo local, batizado de Belterra, a 60 km de Santarém, para uma segunda tentativa. Um segundo fracasso. Mesmo com a “ajuda” de Walt Disney, que foi até lá para realizar o documentário The Amazon awakens, no qual funcionários da Ford jogavam golfe em um green impecável. Não adiantou. A produção de borracha continuou insignificante. Em 1942, a Companhia industrial do Brasil produziu 750 toneladas de látex – muito menos que as 38 mil toneladas utilizadas por Ford a cada ano.

O milionário americano teria in-vestido entre US$ 20 milhões e US$ 30 milhões nesse projeto. Uma soma faraônica, sobretudo quando se sabe que depois de sua morte, logo após a Segunda guerra Mundial, Henry Ford II, seu neto, novo presidente da companhia, vendeu Fordlândia e Belterra ao Estado brasileiro por meros US$ 250 mil. A floresta havia vencido. Por nocaute.

PARA SABER MAIS

Fordlândia – ascensão e queda da cidade esquecida de Henry Ford na selva. Greg Grandin. Rocco, 400 págs., R$ 56,00.

Fordlândia (Brasil, 2005, 48 min). Documentário com direção de Marinho Andrade e Daniel Augusto. Produção: Grifa Mixer.