16.5.15
CONTESTADO - A GUERRA CABOCLA
Transcorridos 90 anos, o evento é entendido como a insurreição do sertanejo catarinense, provocada pelo avanço do capitalismo na região, influenciada pela construção da ferrovia, pela ação danosa da madeireira Lumber Company e pela questão de limites entre Paraná e Santa Catarina. O processo foi condicionado pelo jogo de interesses entre fazendeiros e políticos, bem como pelo misticismo dos caboclos, ampliado por questões relativas aposse da terra. Para efeito de estudos, esta guerra civil pode ser dividida em três momentos: fanatismo, banditismo e genocídio. Mas é necessário considerar os antecedentes.
Desde a formação do Império, as províncias de São Paulo e Santa Catarina não conheciam seus limites. Em 1853, com a criação da província do Paraná, desmembrada de São Paulo, abriu-se o debate sobre a linha limítrofe, discussão que passou a ser mais acirrada após a Proclamação da República. A questão envolvia o chamado "Território Contestado" — localizado entre os rios Iguaçu (ao norte) e Uruguai (ao sul), da Serra Geral (a leste) até a fron¬teira com a Argentina (a oeste) —. na época sob administração paranaense.
A holding do Sindicato Farquhar no Brasil criou a Southern
Brazil Lumber & Colonization Company em Calmon e depois em
Três Barras, para a exploração da madeira da floresta de araucárias na região. A empresa começou a operar em l9l2 e até meados de I940 serrou cerca de 50 milhões de pinheiros. As sementes das araucárias (pinhão) constituíam uma das bases da alimentação dos caboclos.
O Império havia decidido em 1879 que, provisoriamente, caberia ao Paraná administrar as terras a oeste do rio do Peixe. Em 1900, o governo de Santa Catarina impetrou ação judicial contra o Paraná no Supremo Tribunal Federal, reclamando todo o território. Em 1904, a Cone manifestou-se pró-Santa Catarina, numa decisão confirmada em 1909 e ratificada em 1910. O governo do Paraná, apoiado pela população, não acatou a de¬cisão, criando um impasse.
Durante a questão de limites, em 1906, no interior das terras contestadas, entre os rios Iguaçu e Uruguai, marginais ao rio do Peixe, começou a ser construído um trecho de 372 km da estrada de ferro São Paulo — Rio Grande, que ligaria Itararé (São Paulo) a Santa Maria (Rio Grande do Sul). Em 1911 começou a construção de outro trecho, entre o porto de São Francisco do Sul e Porto União da Vitória (no rio Iguaçu), parte de uma ferrovia que demanda¬ria até Assunção, no Paraguai.
Com obras vagarosas até 1908, esses trechos foram incorporados pelo americano Percival Farquhar, que comprou a concessão federal para a Brazíl Railway Company. Em pagamento, além da garantia de juros pelo capital investido, a Companhia Estrada de Ferro São Paulo — Rio Grande, que rasgou o Contestado com os trilhos de 1908 a dezembro de I910, teve o direito de receber terras devolutas, outrora destinadas à colonização com imigrantes. A população sertaneja local ficou, assim, impedida de requerer posse do chão em que habitava e trabalhava. Para complicar o quadro, milhares de trabalhadores trazidos de várias partes do País pela empresa, e despedidos das obras entre 1911 e 1912, embrenharam-se no sertão.
A Lumber e o misticismo
Atraído pela riqueza florestal da região contestada, cortada vertical e horizontalmente pelas ferrovias, o mesmo Farquhar instalou uma serraria monumental, a Southern Brazil Lumber & Colonization, com unidades em Calmon (1908) e em Três Barras (1912). De paranaenses, a empresa adquiriu milhares de hectares de terras, cobertas pela floresta de araucárias, utilizando métodos fraudulentos, pois parados títulos expedidos pelo Paraná continha registros em duplicata em Santa Catarina: ambos transferiam imóveis, como terrenos devolutos a fazendeiros e políticos de cada estado. Já em 1911, na região de Canoinhas, ocorriam confusões armadas entre fazendeiros dos dois estados. Com seu corpo de segurança, formado apenas por imigrantes, a partir de 1912 a Lumber começou a investir contra a população sertaneja do interior das matas, expulsando-a e, com isso, atraindo a ira cabocla, também revoltada pelo abate indiscriminado dos pinheiros.
A maior parte da região do Contestado era habitada por uma população cabocla, pobre e inculta, de índios, negros e luso-brasileiros que, ao longo dos anos, havia se internado nos sertões e nos campos. Vivia do cultivo de roças, criação de porcos selvagens, extração da erva-mate, tropeirismo de carga, e trabalhava nas fazendas de criação de gado como peões ou agregados. A origem portuguesa dos caboclos abrigava a crença do sebastianismo lusitano. Diante da ausência praticamente total da Igreja Católica, os sertanejos buscaram conforto espiritual nos monges, profetas, curandeiros, pregadores e eremitas que peregrinavam pela região, destacando-se João Maria de Agostinho e João Maria de Jesus.
Quando esses monges desapareceram, confundidos como um só na figura imaginária de são João Maria, surgiu Miguel Lucena de Boaventura, que adotou o nome de José Maria. Na região de Taquaruçu, em Santa Catarina, foi acolhido como irmão de João Maria e tido como "novo monge". Por pressão do superintendente de Curitibanos, José Maria decidiu regressar ao Irani, em Palmas no Paraná, acompanhado por escolta popular. O Paraná dava proteção às empresas Farquhar, protegendo as terras do Vale do Timbó e a oeste do rio do Peixe. Mas não conseguiu impedir a instalação de posseiros, na maioria ex-maragatos rio-grandenses, como os Fragoso e os Fabrício das Neves, nos campos do Irani. Um grupo econômico paulista ligado a Farquhar que havia adquirido a Fazenda Irani para instalar a Companhia Frigorífica e Pastoril desistiu do plano e revendeu o imóvel a paranaenses importantes.
O estandarte dos sertanejos combatentes
(cruz verde em pano branco) foi doado ao
Instituto Histórico e Geográfico da Bahia,
como troféu militar.
Em outubro de 1912, um pequeno grupo de catarinenses — que havia acampado em Taquarucu e ali formado um "quadro-santo", acompanhando o curandeiro José Maria — atravessou o rio do Peixe, refugiando-se no povoado de São João do Irani. Com o acirramento das tensões na questão de limites e intrigas por terras, a atitude foi considerada como uma invasão de catarinenses, merecedora de retaliação armada. O Paraná enviou uma forca do seu regimento de segurança para expulsar os pseudo-invasores, vindo a combater com os defensores de José Maria no Banhado Grande, resultando na morte do curandeiro e do comandante militar, além de dezenas de envolvidos, o que provocou grande consternação em Curitiba.
No segundo semestre de 1913, os monges João Maria e José Maria ainda permaneciam na lembrança dos caboclos catarinenses, que recebiam esporádicas visitas de padres alemães franciscanos. A autoridade pública, atrelada aos coronéis da política regional, continuava desconhecida pela população. A companhia ferroviária media seus terrenos ocupados pelos sertanejos e iniciara a instalação de colônias com imigrantes alemães, ao mesmo tempo em que a Lumber Company promovia desenfreada devastação florestal e expulsava os posseiros. Nos tribunais superiores e nas tribunas legislativas a questão de limites entre os estados litigantes continuava em discussão. Caindo nas mãos de políticos influentes, as terras virgens viraram objeto de especulação imobiliária.
Revigoração do messianismo
Em setembro daquele ano, no mesmo local do quadro-santo original — Taquaruçu — surgiu uma nora "cidade-santa”, formada por discípulos e seguidores de João Maria e José Maria, atraídos pelo fazendeiro e crente Eusébio Ferreira dos Santos e sua neta Teodora, considerada vidente. O messianismo revigorou-se, com a promessa da ressurreição do finado José Maria. Rapidamente, o local atraiu a população mística, que se concentrou e se organizou. O ajuntamento religioso caboclo chamou a atenção do governo de Santa Catarina, que pediu a participação do Exército para dissolvê-lo.
Mesmo reconhecendo estar Taquaruçu a leste do rio do Peixe, o Paraná não via com bons olhos a presença militar na região, pois enten¬dia que esta poderia invocar a execução da decisão do STF pró-Santa Catarina na questão de limites.
No dia 15 de dezembro de 1913, forças militares federais e policiais catarinenses chegaram a Rio Caçador, em Campos Novos e em Curitibanos, de onde parti¬ram rumo a Taquaruçu. Sentindo a proximidade, os caboclos investiram e, no dia 29, derrotaram com pesadas baixas uma das tropas, fazendo com o que as demais recuassem. Em janeiro de 1914, na vila de Curitibanos, foi assassinado pelo superintendente local, Praxedes Gomes Damasceno, líder comunitário de Taquaruçu, quando tentava recuperar uma tropa de mulas apreendidas. Isso acirrou os ânimos na "cidade-santa", a ponto de expulsarem frei Rogério Neuhaus que havia tentado dissuadir os ajuntados. O governo de Santa Catarina fez novo apelo ao Exército, que reuniu uma tropa de 754 homens, sob o comando do tenente-coronel Duarte de Alleluia Pires.
Os caboclos decidiram se retirar de Taquaruçu, em direção ao norte, em Caraguatá, na serra tio Espigão. Na noite de 8 de fevereiro, quando a artilharia iniciou bombardeio com granadas e bombas schrapnell, os sertanejos partiram, deixando uma guarda de poucas dezenas de combatentes, que foi dizimada pelas metralhadoras na manhã seguinte. O comando militar entendeu que houvera a dissolução do acampamento e se retirou.
Na área do distrito de São Sebastião do Sul, Vila de Perdiz Grande, município de Curitibanos, no alto da serra do Espigão, reinavam antigos farroupilhas e maragatos que tiveram suas terras espoliadas pela especulação imobiliária promovida pelo governo catarinense. A eles juntaram-se várias famílias de inimigos do coronel Albuquerque. Ali, junto ao arroio Caraguatá, elegeram uma menina de apenas 13 anos — Maria Rosa — como comandante suprema do Exército Encantado de São Sebastião, naquele momento criado para defender a honra cabocla dos agressores militares.
Tomando conhecimento da nova concentração, o Exército reforçou a expedição e passou o comando para o tenente-coronel José Capitulino Gomes Carneiro, que imediatamente ordenou um ataque frontal a Caraguatá, com mais de 700 homens, Os caboclos não se intimidaram, saindo vitoriosos nos combates do dia 9 de março. Os corpos dos soldados monos foram pendurados, enforcados, cm galhos de pinheiros, para que o odor afastasse novas tentativas de ataque.
A jovem Maria Rosa, tida como "virgem", ouvindo os líderes rebelados, decidiu empreender a retirada para a região do Timbó, descendo a serra em direção a Bom Sossego, espalhando as famílias pelos redutos da região. Organizou-se o Exército Encantado, inicialmente com 3 mil homens e 2 mil mulheres, com o Conselho de Comandantes, formado pelos líderes dos piquetes-de-briga e chefes-de-redutos, incluindo o comandante-geral Elias de Morais, Agostin Saraiva, o "Castelhano" (sobrinho de Gumercindo Saraiva e de Aparício Saraiva, comandantes maragatos da Revolução Federalista de 1894), e Benevenuto Luno, o "Venuto Baiano" — este depois verificado como "paranaense infiltrado" para jogar a população cabocla catarinense contra o Exercito — e Adeodato Ramos, o "Deodato", que viria a ser o "jagunço" mais famoso.
A União tratou de ampliar as tropas chamando destacamentos gaúchos e nomeando o general Carlos Frederico de Mesquita para o comando. O segundo grande ataque no reduto de Caraguatá, anunciado à nação como "vitória", na verdade foi novo fracasso. Na missão de extermínio, que juntou 3 mil soldados no Contestado, o Exercito bombardeou e metralhou só espaços vazios. Isso não impediu que, em maio, Mesquita anunciasse o fim da resistência sertaneja e determinasse o retorno aos quartéis, deixando na região apenas um pequeno destacamento.
Banditismo no Contestado
Durante o inverno de 1914, quando na região as temperaturas alcançam 10 graus centígrados negativos, os caboclos se organizaram, atacando as fazendas para roubar gado e grãos, além de arregimentar pessoal, fortemente guamecida, a cidade catarinense de Canoinhas foi alvo de diversas investidas sem êxito. Na área do Paraná, piquetes de Henrique Wolland, o "Alemãozinho", ocuparam Papanduva de 27 de agosto a 3 de setembro. Quando a serraria da Lumber Company de Três Barras foi ameaçada, seus diretores pediram proteção e, como esta se achava sob administração paranaense, não foi mais possível ao Paraná deixar de se envolver diretamente no conflito.
Atendendo aos apelos dos governan¬tes dos dois estados, o Ministério da Guerra chamou o general Setembrino de Carvalho, que estava a mando na pacificação dos rebeldes do Padre Cícero, como interventor no Ceará. Quando ele começou a organizar sua expedição, ainda no Rio de Janeiro, os caboclos se lançaram â ofensiva, sob o comando de Francisco Alonso e Venuto Baiano. No dia 5 de setembro, a Lumber Company em Calmon foi incendiada, resultando do ataque apenas um sobrevivente. No dia seguinte, a composição ferroviária saída de Porto União da Vitória com um destacamento militar sob o comando do capitão Matos Costa para socorrer Calmon foi atacada e praticamente dizimada quando chegava a São João, com a morte do comandante.
Os ataques alcançaram todas as estações ferroviárias, fazendas e lugarejos ao norte de Rio Caçador. Assustada, a maioria da população de Porto União da Vitória fugiu para Ponta Grossa. A investida contra o capitão Matos Costa foi condenada pelo Conselho de Comandantes, que determinou a execução do mentor do assalto, Venuto Baiano. Piquetes sob o comando de Agostín Saraiva investiram contra Curitibanos, onde incendiaram casas, expulsaram autoridades e ocuparam a ci¬dade por três dias. Dali se dirigiram para os campos de Lages, levando o pânico à população, até que o "Castelhano" foi morto por populares. Pouco depois, Adeodato Ramos assumiu o comando do grupo c revelou-se o mais temido chefe de redutos.
Expedição Setembrino
Em Curitiba, o militar Setembrino de Carvalho organizou seu quartel-general. Chamou seis regimentos de infantaria, de batalhões de caçadores, três batalhões de infantaria, quatro regi¬mentos de cavalaria, duas companhias de metralhadoras, um grupo de artilharia de montanha e um batalhão de engenharia, além de pelotões de trem, seções de ambulância e hospitais de sangue. Diante da intensificação dos ataques dos sertanejos, dispersos na vasta região, dividiu as torças em quatro colunas, para apertar e confinar os rebeldes a um só lugar. Depois de receber apoio ate da aviação civil do Rio de Janeiro, transferiu-se de Curitiba para a região cm conflito no mês de dezembro.
Os combates entre os caboclos e os militares eram diários e o cerco foi sendo apertado, com os sitiados começando a sentir a falta de alimentos, armas, munições, roupas e remédios. Sem mais condições para lutar, centenas de famílias renderam-se aos comandos das colunas. Na mata, a assistência sobrevivia escapan¬do de um reduto para outro. A fome fez com que cavalos, cachorros, cintas, cangalhas, arreios e chapéus de couro cru servissem de alimento. Uma epidemia de tifo espalhou-se na região, alcançando até militares, como foi o caso do então aspirante-a-oficial, Henrique Teixeira Lott. O Exército só começou a ter êxito nas operações após a contratação de cen¬tenas de civis — chamados de "peludos" — para guiar e orientar os soldados.
Não foi possível o emprego a contento dos aeroplanos em bombardeios. Depois de realizar vôos de observação, o avião pilotado pelo tenente Ricardo Kirk caiu no dia 1º de março, quando se dirigia de Porto União da Vitória ao campo de aviação de Rio Caçador, onde seria municiado com bombas para lançar sobre o reduto de Santa Maria.
Em fevereiro, sob o comando de Deodato, os caboclos se concentraram no Vale de Santa Maria, no coração da serra do Espigão, um local quase inexpugnável. Ali resistiram aos bombardeios dos canhões da Coluna Sul, até sucumbirem a um destacamento da Coluna Norte, comandada pelo capitão Tertuliano Potyguara, que avançou pelos rios Timbó e Caçador Gran¬de. Na expedição, encerrada dia 5 de abril, morreram Maria Rosa e muitos comandantes caboclos — uma carnificina com mais de mil monos e 6 mil casas e casebres incendiados. Os sobreviventes desse etnocídio conseguiram fugir para outro reduto, o de São Pedro.
Dissolvida a expedição do general Setembrino em abril, nos meses que se seguiram até dezembro de 1915, o Exército a polícia de Santa Catarina realizaram uma "Operação Varredura, destinada a caçar e eliminar todos os sobreviventes caboclos que haviam liderado piquetes ou se destacado nos combates. Após os fuzilamentos coletivos ocorridos em Perdizinhas e em Butiá Verde, os cadáveres eram queimados em meio a grimpas de pinheiros e sepultados entre cercas de taipas de pedras. Com a prisão de Adeodato Ramos, em janeiro de 1916, sem mais liderança, pouco restou dos grupos rebeldes.
Ao final do conflito, calcularam-se as baixas nos efetivos legalistas, militares c civis: de 800 a mil mortos, feridos e desertores. Por outro lado, estimaram-se as baixas na população civil revoltada: de 5 mil a 8 mil, entre mortos, feridos e desaparecidos. Com a vitória, o Exército brasileiro, que vinha de desgastes anteriores — como na Campanha de Canudos e em desastrosas intervenções em diversos estados da incipiente República —, passou a se apresentar como uma organização nacionalista e sólida.
Em agosto de 1916, no Rio de Janeiro, os governadores do Paraná e de Santa Catarina assinaram um "Acordo de Limites", dividindo entre si o território Contestado. Com isso, os catarinenses assumiram de fato a administração das terras ao sul dos rios Negro e Iguaçu, nos vales dos rios Timbó, Timbozinho, Paciência e Canoinhas, e a oeste do rio do Peixe. Em 19 de janeiro de 1918, a União anistiou todos os envolvidos. Depois da "limpeza étnica" com o massacre dos caboclos, após tomar posse das terras no acordo de limites com o Paraná e encerrada a Primeira Guerra Mundial, Santa Catarina iniciou o processo de colonização do Contestado, oferecendo milhões de hectares a famílias de imigrantes europeus e a egressos de colônias mais antigas, na maioria alemães e italianos.
Fonte:http://pre-vestibular.arteblog.com.br/18530/CONTESTADO-A-GUERRA-CABOCLA/