16.5.15

Quem foi o verdadeiro Moisés?


Seguir os vestígios históricos do hebreu criado como príncipe é um desafio perigoso, que os egiptólogos aceitaram. Eis o que eles sabem até agora


O pequeno Moisés, recolhido das águas do Nilo, segundo a tradição: possivelmente um “Kep”, título daqueles educados junto aos príncipes (O pequeno Moisés arremessa a coroa do Faraó,óleo sobre tela, Orazio de Ferrari, séc. XVII)

Por Richard Lebeau

Nenhum documento egípcio menciona Moisés, o Êxodo ou os hebreus... mas será que devemos negar sua existência histórica? Como imaginar que os redatores da Bíblia tenham ousado fazer de um homem com nome estrangeiro um libertador? Como imaginar que tenham narrado a história de um “mau judeu” que se casou com uma não judia – originária da Núbia – e feito dele o profeta fundador do judaísmo, deixando-o morrer fora da Terra Santa? Isso é, claro, inimaginável. É muito provável que um homem chamado Moisés tenha vivido por volta do final do segundo milênio a.C. Mas seria possível situá-lo na corrente da História e definir seu meio social? A pesquisa do fim do século XX e início do XXI admite, de uma maneira muito consensual, que o personagem de Moisés é uma figura reconstruída, e por isso mesmo a sua historicidade escapa ao historiador, para quem ele provavelmente permanecerá um enigma.

Entretanto, ainda há duas hipóteses possíveis, desenvolvidas por muitos autores, que identificaram Moisés a personagens egípcios ou semitas da corte egípcia. Os mais ousados fazem dele um discípulo do “monoteísta” Akenaton. Alguns, ainda mais audaciosos, identificam Moisés como esse faraó do século XIV a.C., negando-se a admitir, como se acredita, que a escritura da Bíblia só teve início sete séculos mais tarde. Outros especialistas ligam a existência de Moisés à expulsão dos hicsos do Egito, os invasores semitas que ocuparam o Baixo Egito entre 1730 e 1530 a.C.

Hoje, os pesquisadores seguem a pista de um semita de nome egípcio que teria chegado ao topo da sociedade no período Raméssida (séculos XIII-XI a.C.). Sem um resultado conclusivo. Antes de seguir as pistas da pesquisa contemporânea, lembremos brevemente a história de Moisés, tal como a Bíblia a narra no livro do Êxodo.

UM PRÍNCIPE QUE SE TORNOU GUARDIÃO DE REBANHO

Moisés nasceu quando os hebreus foram escravizados no Egito. Colocado em um cesto para escapar à morte prometida pelo faraó a todas as crianças de sexo masculino do povo hebreu, ele foi acolhido pela filha deste último.

Foi educado na corte como um príncipe, até o dia em que matou um egípcio que havia molestado um hebreu. Obrigado a fugir pelo Vale do Nilo, refugiou-se no país de Midiã, onde se casou com a filha do sacerdote Jetro, que fez dele o pastor de seu rebanho. Um dia, Deus lhe apareceu sob a forma de uma sarça ardente que queimava, mas não se consumia. Durante essa aparição, Deus lhe revelou seu nome, Javé, e lhe ordenou que fosse libertar seu povo, os hebreus, da escravidão. Retornou então ao Egito, acompanhado por seu irmão, Aarão, para pedir ao faraó que deixasse que os hebreus saíssem do Egito. Esse negou o pedido a despeito dos nove prodígios já realizados por Araão e Moisés. O faraó cedeu diante do último flagelo, a morte de todos os primogênitos egípcios, incluindo a de seu filho mais velho.

No início, ele implorou para que os hebreus deixassem o Egito imediatamente, mas, depois, refletindo melhor, lançou-se em seu encalço. Encontrou-os nas margens do Mar Vermelho, cujas águas se separaram, antes de engoli-lo com seu exército. Os últimos quarenta anos de Moisés foram vividos no deserto; uma vida ritmada pelas recriminações dos hebreus contra a fome e a sede.

MORTE SEM VER A TERRA PROMETIDA

Durante sua permanência no deserto, ele subiu o Monte Sinai, no pico do qual recebeu as Tábuas da Lei. Construiu a Arca da Aliança – onde as tábuas foram guardadas –, apresentando aos hebreus 613 leis e prescrições relativas aos sacrifícios, ao puro e ao impuro e às festas. Regras a serem respeitadas por serem judeu. Moisés morreu aos 120 anos, no Monte Nebo, sem que Deus lhe desse a autorização de entrar na Terra Prometida.

A egiptologia poderia auxiliar os historiadores a situar Moisés na História. Um documento excepcional descoberto em Karnak, no final do século XIX, a Estela Triunfal de Meneptah, menciona pela primeira vez a existência de Israel e o sucessor de Ramsés II. Ali, está gravado: “Os príncipes se prosternaram e pedem a Amon; ninguém ergue a cabeça entre os Nove Arcos. A Líbia está derrotada; o império hitita está em paz; Canaã está devastada; Ascalão foi conquistada; Gazer foi tomada; Yeoman foi destruída; Israel foi devastado; sua semente não existe mais; a Síria tornou-se uma viúva para o Egito; todos os países foram pacificados”.

Esse texto comprova que um povo chamado Israel já vivia, por volta de 1210 a.C., em Canaã. Moisés deve então ter vivido antes desta data. Sob o reino de qual faraó? O texto bíblico nos diz que os israelitas foram obrigados a fornecer tijolos para as cidades-armazém de Pi-Ramsés e de Pitom. Embora se saiba que Ramsés II foi o construtor de Pi-Ramsés, “a casa de Ramsés”, a arqueologia revelou que a cidade de Pitom foi edificada cerca de cinco séculos após seu desaparecimento. Portanto é difícil designá-lo como sendo o faraó do Êxodo. Hoje, os historiadores voltam seus olhos para o fim da XIX dinastia e para o reino de Meneptah.

Moisés carregava um nome egípcio construído sobre o afixo “m-s-s”, que encontramos, por exemplo, em “Ramsés” – “Rá gerou”. No caso do Moisés bíblico, o nome do deus desapareceu. Uma prática comum no período Raméssida. Sabe-se de um oficial chamado Mesou ainda um contramestre do mesmo nome que organizou uma greve na aldeia dos artesãos de Deir el-Medineh, perto do Vale dos Reis. Mes se tornou o hebraico “Moshé”. O fato de Moisés ter um nome egípcio é importante, isso permite afi rmar que este nome não foi “inventado” do nada. Se para os israelitas tivesse sido possível forjar um herói nacional, eles certamente não teriam lhe dado um nome egípcio, mas sim um tipicamente hebreu.

Mas isto não basta para fazer do Moisés bíblico um personagem de origem egípcia. Muitos documentos egípcios também mencionam a existência de altos funcionários reais de origem semítica, homens originários da Ásia Menor ou do Levante. Eles carregavam um duplo patronímico, composto por um primeiro nome semítico e um outro, egípcio, construído sobre a raiz “m-s-s”. É em direção destes altos funcionários que os olhares dos pesquisadores da Bíblia se voltam para encontrar o Moisés histórico.

OS BENEFÍCIOS DA ASCENSÃO SOCIAL

Durante todo o Novo Império (séculos XVI-XI a.C.), o Egito, que se tornara uma potência imperialista, se cobriu de enormes monumentos, construídos por uma mão de obra semítica composta por prisioneiros. Nós sabemos, sob o reino de Ramsés II, do recrutamento forçado de estrangeiros para trabalhar nos canteiros de obra reais. Esta mão de obra, móvel e inquieta em certas ocasiões, também podia atingir o topo do poder. “Para o Novo Império, contam-se não menos de seiscentos estrangeiros que indubitavelmente ocuparam cargos muito elevados no clero e na administração”, observa o egiptólogo Pascal Vernus. Esses semitas adotaram os costumes e os nomes locais. Em Saqqara, as escavações de Alain Zivie revelaram um vizir de Amenófis III de origem semítica chamado Aper-El. Era uma criança do Kep – título honorífico concedido àqueles que tinham sido educados na corte real, ao lado dos príncipes e dos filhos dos reis vassalos do faraó. O sucesso de alguns semitas no Egito despertou um grande interesse nos estudiosos.

A egiptologia revela a existência de um alto funcionário chamado Ben-Ozen, que viveu sob o reino de Ramsés II (por volta de 1300 – 1235 a.C.) e era originário de Bashan, na Transjordânia. Sua relação com Moisés? Ele trazia um nome egípcio, Ramsesemperrê, construído sobre o afi xo “m-s-s”. Teria servido como mediador em um confl ito que opôs os beduínos aos funcionários egípcios. Pensa-se evidentemente no episódio bíblico em que Moisés assume a defesa de um escravo hebreu. Infelizmente, a documentação egiptológica não registra nenhuma revolta dos beduínos e não menciona nenhuma fuga sob a condução de um alto dignitário egípcio. Ben-Ozen nunca deixou o Egito. Não poderia, portanto, ser Moisés.

UM REVOLUCIONÁRIO OU UM VICE-REI DA NÚBIA

Houve outro candidato chamado Beiya, ou Bay, um alto funcionário envolvido em uma guerra civil. Ele se aliou à rainha Tauseret, de origem cananeia, viúva do faraó precedente, Seti II. Juntos, eles queriam tomar o poder e colocar Siptah, o filho da soberana, no trono. A morte prematura deste último em condições obscuras permitiu a alguns autores ver aí a maldição divina lançada contra os primogênitos do Egito. A conspiração terminou mal. Os documentos egípcios nos contam a fuga de Bay, acompanhado por um exército de cananeus, que partiu “roubando dos egípcios ouro e prata”. De acordo com o professor Thomas Römer, do Collège de France, esse episódio poderia evocar “a tradição bíblica da espoliação dos egípcios”. “Os filhos de Israel tinham agido segundo a palavra de Moisés: eles haviam pedido aos egípcios objetos de prata, objetos de ouro e roupas.” Observemos que Bay também tem um nome egípcio, Ramsès-Kha-em-neterou, construído sobre o afi xo “m-s-s”, e que o “ya” final de seu nome semita poderia ser o sufi xo de “Yahvé” (Javé).

Esses numerosos paralelos com a história bíblica não permitem afirmar que Bay tenha sido o Moisés da Bíblia. Hoje, sabe-se que ele foi preso, executado imediatamente, e seu nome apagado onde quer que se encontrasse. Lembremos que Moisés escapou de seus perseguidores, que se afogaram no Mar Vermelho. Além disso, é difícil imaginar que um homem cujo nome foi apagado dos monumentos que ele construiu e cujo patronímico se trocou tenha deixado um rastro na memória dos homens por séculos, até atingir os redatores da Bíblia.

Recentemente, o egiptólogo Rolf Krauss viu em Amenmeses, um usurpador que tomou o poder entre 1200 e 1196 a.C., um dos homens que poderiam ter inspirados esses redatores da Bíblia. Não apenas ele leva, como os dois altos dignitários citados acima, um nome construído sobre o afixo “m-s-s”, mas também esse vice-rei da Núbia teria partido desta longínqua região para conquistar o poder faraônico. Ora, sabe-se que certas lendas judias extrabíblicas conduzem Moisés à Núbia. Além disso, a própria Bíblia dá a Moisés uma mulher etíope. Esse faraó tomou o poder ao fi m de uma guerra civil. Ninguém sabe o que lhe aconteceu depois de ter sido derrubado do trono.

O período Raméssida conheceu outros potenciais candidatos, como um homem, que permaneceu anônimo, e que conduziu uma revolta de operários que trabalhavam a serviço do faraó nas minas de cobre do Sinai. Se não era um semita e se a revolta não se passou no Egito, este homem foi, em todo caso, alguém que se opôs às autoridades egípcias e que tomou partido em favor dos explorados. O Moisés da Bíblia tem, portanto, alguma coisa dele, “mas se tomarmos o texto bíblico ao pé da letra, não era mais plausível ser ele que qualquer outro”, explica Thomas Römer. Assim sendo, é muito provável que o Moisés bíblico seja uma figura literária composta a partir de vários personagens que realmente existiram e que são confirmados pelas fontes egípcias.

Richard Lebeau é historiador egiptólogo





Israelitas partindo do Egito, gravura, Cherubino Alberti e Polidoro Caldara da Caravaggio, 1576

O ÊXODO, MITO OU REALIDADE?

Por Charles Szlakmann

Para a egiptóloga francesa Christiane Desroches-Noblecourt, o Êxodo diz respeito ao mito, pura e simplesmente. Essa é a posição que ela adotou nos últimos anos de sua vida. A escravidão? Não havia no Egito: “Os operários trabalhavam fraternalmente com os fellahin da época transportando pedras e fabricando tijolos para o faraó”; como recompensa, recebiam alimentação abundante. Quanto à presença de israelitas no suposto momento do Êxodo, os monumentos egípcios não revelam absolutamente nada. De qualquer maneira, perguntava a grande dama da egiptologia: “Por que os israelitas teriam desejado deixar essa terra de abundância?”.

Os pesquisadores da escola de Copenhague, dirigidos por Niels Peter Lemche, são ainda mais radicais, visto que colocam em dúvida a própria existência de uma nação israelita anterior ao século V a.C. Mas eles não têm a mesma experiência impressionante de Christiane Desroches-Noblecourt.

Já o arqueólogo egípcio James Hoffmeier se baseia no texto bíblico de bom grado, embora conserve o olhar crítico do erudito. Para Hoffmeier, “a ida para o Egito, a escravidão e o Êxodo são realmente plausíveis”. De fato, o relato bíblico narra: “E ele (o povo dos filhos de Israel) construiu para o faraó cidades-armazém, Pitom e Ramsés” (Êxodo 1,11). Essas duas cidades foram realmente identificadas. Em 1883,

Édouard Naville descobriu Per-Itm, “Casa do deus Atum”, a Pitom da Bíblia. Situa-se em Tel Maskhouta, pequena aldeia a cem quilômetros do Cairo, no leste do delta do Nilo. Naville encontrou ali câmaras subterrâneas, com paredes de tijolos crus, que evocam os celeiros de trigo da Bíblia.

Outra descoberta: nos anos 1970, o alemão Edgar Pusch e o austríaco Manfred Bietak detectaram, a cerca de 30 quilômetros de Pitom, próximo da atual Qantir, uma cidade colossal chamada Pi-Ramsés, “casa de Ramsés”. É a prestigiosa capital fundada por Ramsés II. Ela contém vestígios de imensas estrebarias podendo abrigar mais de 400 cavalos, uma guarnição de carros de guerra, fundições de ouro e prata. Evocam, guardada a prudência, os versos em que o faraó “toma 600 carros de guerra de elite e todas as carroças do Egito, todos repletos de guerreiros”, para capturar os israelitas. Segundo André Lemaire, essas escavações fornecerão “uma indicação cronológica realmente plausível”: o faraó do Êxodo seria assim Ramsés II! Tese bastante controversa.

Quanto à escravidão, ela existia de fato, para o egiptólogo Pierre Montet: “Esses ‘trabalhadores’ podem ser considerados escravos. Eram tratados duramente e, se fugissem, eram perseguidos.” “Eram muitas vezes prisioneiros de guerra ou estrangeiros vendidos por mercadores, procedimento no qual encontramos um eco na história de José, vendido por seus irmãos” (Gênesis 37, 26-27).
Fonte:http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/quem_foi_o_verdadeiro_moises_.html