Barbara Freitag
RESUMO
A AUTORA descreve a biografia intelectual de Florestan Fernandes em três etapas. A primeira, que ela designa "fase científico-acadêmica", abrange o período 1941-1968. A segunda, a "fase político-revolucionária", corresponde aos anos 1970-1986. Por fim, na terceira etapa, que ela chama de "fase solitário-militante" (1986-1995), todas as facetas do itinerário de Fernandes se unem sob o título "intelectual", segundo a definição de Jürgen Habermas.
Palavras-chave: Teoria sociológica, Metodologia das ciências sociais, Classes sociais.
ABSTRACT
THE AUTHOR describes Florestan Fernandes' intellectual biography in three phases. The first phase, which she calls the "cientific-academic stage", covers the period 1941-1968. The second phase, the "political-revolutionary stage", corresponds to the years 1970-1986. Finally, the third phase is what she calls the "lonely militant stage" (1986-1995), in which all facets of Fernandes' itinerary come together under the heading of the "intellectual", in Jürgen Habermas' definition.
Key-words: Sociological Theory, Social Sciences Methodology, Social Classes.
Introdução
INCLUSÃO DE Florestan Fernandes no Ciclo de Conferências "Intérpretes do Brasil", idealizado pela Academia Brasileira de Letras, aconteceu pelo mérito do grande sociólogo paulista que, no parecer do crítico literário Antonio Candido (2001) é um dos maiores sociólogos do Brasil, senão do mundo. A data marcada pelos organizadores do ciclo foi mero acaso, mas acabou sendo uma data simbólica: pois, neste mês de julho, precisamente no dia 22, Florestan estaria completando 85 anos de idade. Além do mais, estaremos lembrando em 10 de agosto o décimo ano de sua morte.
No texto que segue, será apresentada, de forma resumida, a trajetória de Florestan Fernandes, numa espécie de biografia ou mini-currículo (cf. Freitag, 1969, 1985, 1995, 1998). Em seguida, será discutida a primeira fase da obra do autor entre 1941-1968. No início de 1969, o sociólogo em questão perdeu sua cátedra de sociologia na USP com sua "aposentadoria compulsória" pelo regime que se instaurou com o Golpe militar de 1964 e o AI-5 de 1988. Em uma segunda fase de produção (1970-1986) será comentada a obra de Fernandes em seu exílio no Canadá e seu isolamento no Brasil, em que sofreu, segundo suas próprias palavras, "um processo de desabamento de sua relação com o mundo intelectual". Numa terceira, que tem início com sua entrada no Partido dos Trabalhadores (em 1986), será comentada a obra do Constituinte e Deputado Federal, Florestan Fernandes. Finalmente, como conclusão provisória, haverá uma mediação entre o "cientista-acadêmico" da primeira fase, o "político-revolucionário" da segunda, e o "militante solitário" (petista) da terceira, buscando uma síntese dialética das várias facetas da personalidade de Florestan na figura do "intelectual", enquadrando-o na fileira de outros intelectuais da estirpe de Heinrich Heine, Jean-Paul Sartre, Jürgen Habermas, entre outros.
A trajetória de vida de Florestan Fernandes
Ao revisitar a obra do autor, estou ao mesmo tempo relembrando sua trajetória de vida muito especial: filho de uma lavadeira portuguesa, que, segundo alguns biógrafos, era analfabeta, Florestan teve uma infância dura e trabalhosa. Freqüentou apenas três anos regulares do ensino primário em São Paulo, trabalhando paralelamente aos estudos como engraxate, biscateiro, auxiliar de garçon, entregador de remédios a domicílio, entre outras atividades. No final da década de 1930 fez seu exame de madureza (ginásio e colégio), e, em 1941, deu início aos seus estudos em ciências sociais (antropologia e sociologia) na USP. Seus professores foram Roger Bastide, Emílio Willems, Radcliff-Brown, Donald Pierson, entre outros. Formou-se em 1945 e foi convidado a trabalhar como assistente na cadeira de Sociologia da USP, até então ocupada por Roger Bastide, a qual assumiu como titular em 1964, por indicação de seu mestre. Cinco anos depois foi destituído desse cargo, pelo AI-5 do regime militar, sendo aposentado compulsoriamente. O mesmo destino tiveram Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, entre vários outros colegas da USP e de outras universidades públicas brasileiras. Nessa ocasião, Florestan Fernandes tinha 45 anos e estava no auge de sua carreira intelectual e acadêmica. No início dos anos de 1970 aceitou convite da Universidade de Toronto no Canadá, onde acabou sendo nomeado professor titular. Voltou para o Brasil por razões pessoais em 1973. Proibido pelos militares de lecionar, coordenou para a Editora Ática a série "Grandes Cientistas Sociais", procurando sobreviver como podia. Havia rejeitado convites para trabalhar nos USA, na Alemanha e até mesmo no Cebrap, fundado com auxílio de recursos da Fundação Ford pelos cientistas sociais cassados, entre eles seus ex-alunos Fernando Henrique Cardoso, Arthur Gianotti e José de Souza Martins. Suas razões foram políticas: não trabalharia para instituições financiadas com recursos americanos, pois atribuía aos EUA a iniciativa de iniciar e sustentar o golpe militar no Brasil.
Com a criação do PT na década de 1980, recebeu convite do próprio Lula para afiliar-se ao partido, mas somente aceitou o convite quando este lhe explicou que não seria o partido que o financiaria e sim o sociólogo, que financiaria o partido, no qual então entrou em 1986. Neste mesmo ano foi eleito Deputado Federal pelo PT de São Paulo. Ajudou a elaborar a Constituição de 1988 em Brasília e foi reeleito por mais um período parlamentar. Apesar da insistência do Partido, não se candidatou por uma terceira vez, alegando motivos de saúde. Morreu em agosto de 1995, alguns dias depois de completar setenta e cinco anos, vítima, segundo consta, de erro médico ou negligência hospitalar, depois de um transplante de fígado.
Visitando e revisitando a obra de Florestan em três fases
Primeira fase – Durante os trabalhos em minha dissertação de mestrado (1965-1967), defendida no Departamento de Ciências Sociais da Freie Universität Berlin.
Nunca fui aluna regular de Florestan Fernandes. Comecei meus estudos de sociologia, em nível de graduação, com Th.W. Adorno e Max Horkheimer em Frankfurt/M. Depois da aposentadoria desses gigantes do pensamento, mudei-me para Berlim, onde me propus a realizar, em 1965, minha dissertação de mestrado comparando a obra de três cientistas sociais brasileiros: Gilberto Freyre (1900-1985), Florestan Fernandes (1920-1995) e Celso Furtado (1920-2004), focalizando suas concepções sobre o passado, o presente e o futuro do desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Na época do trabalho, os três autores ainda estavam vivos. Entrei em contato (por carta, telefone, durante suas conferências na Alemanha e no Brasil) com todos eles, agendando, sempre que possível, encontros pessoais com um e outro. Assim, visitei G. Freyre em Apipucos no Recife e assisti suas palestras ministradas na Universidade Livre de Berlim; visitei Florestan Fernandes no seu gabinete na Maria Antônia em São Paulo e procurei o autor em sua residência na rua Nebrasca, no Brooklyn paulista. Ainda assisti, e muitas vezes fiz tradução simultânea, a Colóquios teuto-brasileiros, realizados na Alemanha Ocidental e em Berlim, com a presença de Florestan Fernandes. Também entrei em contato com Celso Furtado, na época, professor da École des Hautes Études em Paris, ocasião em que gentilmente me auxiliou com materiais e envio de livros a fim de facilitar a realização de minha dissertação. Vim a conhecê-lo pessoalmente apenas em suas palestras meio clandestinas realizadas na UnB, no início dos anos de 1970, a convite do economista Edmar Bacha, na época meu colega na UnB de Brasília.
Em minha dissertação recorri a uma moldura epistemológica fornecida por Karl Mannheim e defendida em Ideologia e utopia (1935). Segundo esse autor, os cientistas (sociais) independentemente do contexto cultural e social de origem, pertenceriam à freischwebende Intelligenz, isto é, a uma intelligentsia, preocupada em desprender-se de suas origens de classe, buscando fazer uma análise "objetiva" da sociedade em que vivem. Minha pergunta era se essa tese também valeria para os autores brasileiros selecionados. Lendo a obra do antropólogo nordestino Gilberto Freyre, constatei que ele permanecia arraigado nas tradições do Brasil colonial, cujas instituições – o latifúndio, a monocultura (do açúcar) e a escravidão – descrevera de maneira brilhante em Casa grande e senzala(1933). Ao defender a tese da inexistência de preconceito racial no Brasil, idealizava a relação entre casa grande e senzala e revelava seu "bias" ideológico, de homem pertencente às elites rurais do ciclo do açúcar.
Interessada em saber se o diagnóstico de Freyre era correto, a Unesco encarregou Roger Bastide de realizar um estudo mais amplo no sul do Brasil para uma época mais recente (a cultura cafeeira). O antropólogo francês convidou Florestan Fernandes para ser o seu parceiro de pesquisa, que, por sua vez, incluiu Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni em um projeto de pesquisa mais amplo sobre as condições de vida dos afrodescendentes no Brasil República. Todos os estudos apontavam para a mesma direção: desde o Brasil colônia, até os nossos dias, predominaram as relações de opressão, de hierarquia e de exploração (do trabalho e da sexualidade) do negro pelo branco. A ideologia da democracia racial brasileira, cultivada por Freyre e seus sucessores, encobria um conflito de raças e de classes que Florestan Fernandes denunciou em sua ampla pesquisa sobre A integração do negro na sociedade de classes (1966).
Segundo o sociólogo paulista, o Brasil da primeira metade do século XX estava cheio de contradições e "dilemas". Entre esses, apontava para o "dilema social" de uma sociedade rural, estamental, em fase de modernização, que não conseguia libertar-se de seus fantasmas e estruturas do passado. A mentalidade escravocrata (apesar da liberação dos escravos em 1888), a substituição da mão-de-obra no campo pela mão-de-obra livre (dos imigrantes), a estrutura do latifúndio, baseada na monocultura e exportação do café, inviabilizava a industrialização que se impunha para manter os padrões de acumulação necessários para implementar uma "ordem social competitiva". Faltavam à "sociedade patrimonial", os agentes que representassem a racionalidade e o espírito empresarial, pré-requisito, em sua opinião, para a implementação do capitalismo no Brasil. A falta de agentes dinamizadores da modernidade retardou a introdução de novas tecnologias, sistemas de transporte, sistema bancário bem como as estruturas básicas de uma nova ordem competitiva. Essa ordem, mais especificamente a estrutura de classes com seus mecanismos de regulamentação dos conflitos, demorou a instalar-se, sem jamais conseguir extinguir completamente a velha ordem patrimonial na mentalidade e nas ações dos atores sociais inseridos no Estado democrático, no sistema de partidos e na escola. Deste modo, os mecanismos de ascensão social funcionavam mais como "obstáculos" do que como agentes de mudança.
O "dilema racial" consistia para Fernandes no fato de a abolição da escravatura ter ocorrido de forma precipitada (1888), sem assegurar aos negros livres uma verdadeira integração na sociedade dos brancos. Excluídos do mercado de trabalho e sem uma formação profissional e uma experiência no mercado de trabalho livre (competitivo), os antigos escravos necessariamente ficariam à margem dos processos de inclusão e modernização em marcha, dos quais somente os imigrantes (japoneses, italianos, alemães, poloneses) passariam a se beneficiar a longo prazo. Em A integração do negro na sociedade de classes (1966), acima citado, Fernandes expõe de forma dramática como, para o homem negro, entravam em ação mecanismos de exclusão que Gunnar Myrdal, o economista sueco, chamou de "processos de causação circular cumulativa". A falta de formação profissional reduzia as chances de trabalho do negro, descendente dos escravos. Sem trabalho digno e remuneração adequada, ele foi jogado em um processo de anomia (desorganização e desintegração social e psíquica, nos termos de Durkheim), o que por sua vez dificultou o seu acesso aos mecanismos de ascensão como a formação escolar, o voto democrático, a realização pelo trabalho.
O "dilema educacional" também expressa – nas reflexões de Florestan dessa primeira fase – uma ambigüidade do sistema societário brasileiro que oficialmente se diz democrático e postula a educação como sendo um mecanismo de ascensão e inclusão social, mas que, de fato, mostra-se seletivo e pouco atraente para os já desprivilegiados (negros, pobres, mulheres e outras minorias).
Esses três dilemas explicariam porque na sociedade brasileira da primeira metade do século XX, aparentemente não há nem conflito nem discriminação racial. Em verdade, existe uma sobreposição de classe e raça, em que as diferenças e injustiças socioeconômicas encobrem o conflito racial. Os pobres são, em sua maioria, negros ou mestiços. A pobreza ofusca a raça. Nas escolas (mesmo públicas) e universidades, os negros e mestiços estão sub-representados, reservando-se a maior parte das vagas para os brancos.
Nos estudos realizados sobre índios, negros e brancos no Brasil, em especial focalizando suas chances educacionais, Fernandes não esconde sua simpatia e solidariedade incondicionais pelos oprimidos, excluídos, desprivilegiados. Longe de estar "desprendido" de sua origem social, como reivindicaria Mannheim, Fernandes usa-a como arma para denunciar o cinismo e a ideologia de uma sociedade hipócrita que se diz democrática mas que, em verdade, acumula privilégios para minorias tradicionalmente beneficiadas, reforçando injustiças, cristalizadas em uma das concentrações de renda mais elevadas do mundo.
Como conclusão de minha dissertação defendida em 1967, deparei-me com um paradoxo. Por um lado, Fernandes recorria a uma sociologia positivista, com teorias baseadas em Durkheim, Weber, Radcliff Brown, Mannheim e Hans Freyer, essencialmente "acadêmicas" e "conservadoras"; e, por outro, o nosso autor demonstrou ser um cientista social crítico e engajado, que na Campanha em defesa da Escola Pública (1962), voltada para os oprimidos, excluídos e marginalizados, defendeu com veemência uma causa política, quebrando a "neutralidade" do cientista, exigida pelo positivismo.
Em minha dissertação de mestrado também comparei a posição de Fernandes com a de Celso Furtado, nascido em 1920, natural da Paraíba, ativamente engajado na melhoria das condições de vida dos pobres do Nordeste. Como este autor será tratado por Hélio Jaguaribe, atenho-me somente aos resultados explicitados, na ocasião, em minha dissertação. Também Celso Furtado jamais aderiu à exigência do sociólogo alemão, Max Weber, de separar a vocação para a ciência da vocação para política. Analisar e transformar a realidade brasileira constituíram, para Fernandes, como para Furtado, as duas faces da mesma moeda.
Também no caso de Celso Furtado, como no de Fernandes, a concepção mannheimiana do intelectual "acima de todas as coisas", objetivo e flutuante, desprendido dos interesses imediatos de classe revelou-se uma quimera. Uma vez por todas, a moldura epistemológica de Mannheim, à qual Fernandes pretendia aderir, não conseguia impor-se, nos três casos analisados.
Simplificando muito, meu estudo parecia antes confirmar a tese marxista de que nossa Weltanschauung (visão de mundo) é reflexo das condições materiais em que vivemos. Das Sein bestimmt das Bewusstsein, ou seja, "o ser determina a consciência".
Assim, os estudos sobre a realidade brasileira de Freyre refletiam a sua inserção no Brasil colonial como descendente da classe senhorial açucareira, enquanto as de Fernandes sobre o negro e o branco no Brasil do ciclo do café mostravam seu profundo arraigamento na cultura do negro e do imigrante. Finalmente, Celso Furtado, um filho do sertão nordestino, intelectual orgânico do Estado desenvolvimentista, engaja-se em um projeto – Cepal – para superar a pobreza, seca e decadência de sua região de origem, sendo derrubado (com o golpe militar de 1964), pelas velhas oligarquias justamente daquela região (Castelo Branco).
Segunda fase _ A Jornada Florestan Fernandes de Marília, dedicada aos grandes cientistas sociais (organizada pela Unesp em 1986).
Ao ser convidada pelos organizadores da "Jornada Florestan Fernandes" a realizar-se no campus da Unesp em Marília, em 1986, vinte anos depois da defesa de minha dissertação, aceitei discursar sobre o sociólogo paulista no bloco dedicado à questão da "Universidade e Democracia", debatendo o tema "Democratização, Universidade, Revolução" na obra de Florestan Fernandes. Nesses vinte anos, tanto ele quanto eu tínhamos voltado ao Brasil, cada um (re)iniciando uma carreira profissional interrompida depois de longa ausência no exterior (Fernando na Canadá e eu na Alemanha). Enquanto Fernandes havia voltado para São Paulo, dei início (com a ajuda dele) à minha carreira acadêmica na UnB de Brasília (1972). Meu trabalho docente desviou-me nos primeiros anos de volta ao Brasil da produção de textos e livros de Fernandes, cuja obra somente passei a revisitar, sistematicamente, por ocasião do convite feito para participar da "Jornada". Em sua homenagem.
Depois das leituras feitas da sua obra mais recente, em que tentei atualizar-me com sua obra escrita (1968-1986) após sua volta a São Paulo, defendi em Marília a tese de uma "ruptura epistemológica" na obra de Fernandes, comparável à ruptura apontada por Althusser na obra de Marx. Argumentei que a produção intelectual de Fernandes sofre, na virada da década de 1960 para 1970, uma profunda re-orientação. A fim de pontuar essa mudança, batizei a sua obra de antes da ruptura como sua fase "acadêmico-reformista" e seu período posterior ao AI-5 como "político-revolucionária" (que corresponderiam ao que expus acima como primeira e segunda fases de produção no texto aqui exposto).
A ruptura estaria caracterizada pelo fato de Fernandes recorrer, em sua primeira fase, a um conceitual teórico baseado prioritariamente em Durkheim, Weber, Mannheim, Freyer e Radcliff Brown (entre outros) e uma metodologia funcionalista, concentrando-se em uma problemática diferenciada em três eixos temáticos:
(a) o debate e a reflexão sobre a Sociologia como disciplina;
(b) a análise antropológica do índio brasileiro e
(c) o estudo promenorizado da realidade brasileira.
Em sua segunda fase, que chamei de político-revolucionária (já na década de 1970), Fernandes teria mudado de conceitual teórico, ancorando as suas análises nos conceitos de Marx, Engels e Lenine, no método do materialismo histórico e em autores da escola marxista. Sua problemática também se modificara, concentrando-se na análise
(a) da guerrilha urbana;
(b)da revolução cubana e
(c) da ditadura militar brasileira (e da América Latina).
Na primeira fase, a que chamei de acadêmico-reformista, a obra de Fernandes reflete-se nos seguintes títulos (referentes à temática da reflexão teórica da socio-logia): Ensaios de sociologia geral e aplicada (1960), A sociologia numa era de revolução social (1963) e Fundamentos empíricos da explicação sociológica (1965).
Nestas obras, bastante acadêmicas, o autor expressa a convicção de que uma sociologia científica, praticada com seriedade e compreendida como verdadeiro "trabalho teórico" (vide, entre outros, o depoimento de Fernando Henrique Cardoso na coletânea de Angela D'Incao: "O saber militante", 1987), teria condições de funcionar como alavanca para transformações profundas na sociedade, servindo como instrumento de conscientização e mobilização das forças sociais organizadas.
O tema da análise antropológica do índio brasileiro foi tratado em: Função social da guerra na sociedade tupinambá (1952) (tese de doutorado), A etnologia e a sociologia no Brasil (1958) e Folclore e mudança social na cidade de S. Paulo (1961), entre outros.
Aqui Fernandes tentou demonstrar que uma metodologia acadêmica, "o funcionalismo" antropológico, era capaz de reconstruir a estrutura de uma sociedade mesmo que essa já se encontrasse em plena extinção.
Finalmente, as publicações sobre a realidade brasileira dessa primeira fase concentram-se naqueles temas que tratei em minha dissertação de mestrado, a saber: "o dilema social", o "dilema do negro" e o "dilema educacional". Relembro aqui apenas alguns dos principais títulos: Mudanças sociais no Brasil (1961); Negros na sociedade dos brancos (1961) publicado com Roger Bastide; Integração do negro na sociedade de classes (1965) (livre-docência) e Educação e sociedade no Brasil (1966).
Vejamos os temas e problemas tratados na segunda fase, em que se manifestaria (na minha terminologia opolítico-revolucionário, publicados depois do golpe de 1964 e especialmente depois do AI-5, que afastara Florestan Fernandes da vida acadêmica na USP, no apogeu de sua carreira, obrigando-o a recomeçar a vida e a analisar a realidade brasileira a partir do zero: A revolução burguesa (1975), Da guerrilha ao socialismo: a revolução cubana (1975), A Ditadura em questão (1983), Nova República? (1985).
Aqui chamei a atenção para o fato de que Florestan não somente muda de referencial teórico e conceitual, apoiando-se no materialismo histórico de Marx e Lenin como se torna menos "científico" e mais polêmico, político e revolucionário. Fernandes percebera, na própria carne, que o indivíduo mesmo altamente dotado e consciente para fazer o diagnóstico correto do seu tempo, não tem poder de transformação da sociedade como indivíduo isolado. Seu potencial de transformação da realidade global depende de conjunturas e tendências internacionais, nas quais o indivíduo singular submerge, sem poder de intervenção ou transformação. Ao apoiar-se em conceitos como "modo de produção capitalista", "imperialismo", "relações de produção" tem consciência de que se trata de fenômenos históricos que acontecem independentemente das vontades individuais e que se precipitam como avalanches, über die Köpfe der Individuen hinweg (Marx), "por cima de nossas cabeças".
Por ocasião de minha palestra fiz, contudo, a seguinte ressalva (1986):
Certamente, essa ruptura epistemológica não se deu da noite para o dia, como foi sua aposentadoria compulsória em decorrência do AI-5 de 1968.
Já no Florestan reformista se encontrava o embrião do Florestan revolucionário. Mas talvez esse último não se desenvolvesse de forma tão radical e consistente em direção ao socialismo se a conjuntura política tivesse sido outra, ou melhor, se tivesse continuado o pacto populista-desenvolvimentista. Indícios da presença embrionária do revolucionário no reformista se encontravam especialmente nos temas e problemas selecionados e minuciosamente estudados como as contradições inerentes à sociedade brasileira, os conflitos raciais latentes, [...] o dilema educacional [...] (p. 168).
Para comprovar a minha tese da ruptura, apoiei-me na coletânea de textos escritos na primeira fase do acadêmico reformador (Educação e sociedade no Brasil, 1966) e em textos da segunda fase, a do político revolucionário (Universidade brasileira: reforma ou revolução?, 1975 e textos como A questão da USP e USP: passado e presente, ambos de 1984).
No confronto desses textos da primeira e segunda fases fica evidente que o Florestan da fase reformadora apostava no uso da educação, da ciência, e em especial, da universidade como instrumentos decisivos para a reforma social da sociedade brasileira. A educação em geral e a educação superior, nessa versão, funcionariam como verdadeiras alavancas para uma mudança social bem-sucedida, nos moldes de Karl Mannheim (cf. trabalho "Liberdade e planificação social", 1945).
Já nos trabalhos da segunda fase (a do revolucionário), Fernandes argumenta que, para que haja uma universidade nova, não bastaria agir apenas no plano da reforma universitária e, sim, era necessário agir no plano da ação revolucionária. Essa não teria de começar pela mudança da universidade e sim pela revolução. Essa teria de acontecer na sociedade como um todo, para que a mudança da universidade pudesse ser concretizada com sucesso. Em suas próprias palavras: "a questão da universidade brasileira [em 1984, festejando os cinqüenta anos da USP] se insere no movimento revolucionário global e será resolvida com a emergência da classe operária no cenário histórico brasileiro" (cf. citado em Freitag, 1987, p. 177).
Terceira fase – Florestan Fernandes membro do PT e da Assembléia Constituinte.
Em meus esforços de revisitar a obra de Fernandes, enfatizei a sua produção de uma primeira fase (de 1941-1969) que chamei de "acadêmico-reformista" e de uma segunda fase (de 1970-1986), em que apontei para uma radicalização do jargão teórico e político do grande sociólogo brasileiro. Esta segunda fase se encerra no momento em que o autor entra no partido dos trabalhadores e é eleito Deputado Federal em 1986.
Começava uma nova fase, a terceira, na vida do intelectual Florestan. A partir deste momento, em que o novo Deputado do PT transitava nos corredores do Congresso Nacional e trabalhava nas diferentes sessões e plenárias da Câmara só acompanhei esporadicamente suas aparições na televisão, suas publicações como articulista daFolha de S.Paulo e recebia, com regularidade, os textos impressos de seus discursos na Câmara dos Deputados.
No início da década de 1990 aceitei o pedido de uma ex-aluna de sociologia, de orientar a sua dissertação de mestrado sobre Fernandes, na qual pretendia sistematizar a atuação do político, examinar seus artigos de jornal e discursos da Câmara, propondo ainda fazer uma série de entrevistas com o Deputado em Brasília, a serem completadas com outras feitas com Antonio Candido, Fernando Henrique e Ruth Cardoso e Arthur Gianotti. Eliane Veras conseguiu gravar, entre 1990 e 1992, doze entrevistas que ajudaram a reconstruir o itinerário de Florestan desde sua infância até sua atuação no Congresso Nacional de Brasília. Ela ainda consultou minha troca de cartas com o sociólogo, de aproximadamente trinta anos, bem como arquivos de textos e fotos, reunidos por amigos e admiradores de Fernandes. Importante nesse contexto também é a entrevista realizada por Tarso Venceslau para a revista Debate e Crítica.
Em seu esforço de reconstrução da vida e da trajetória política de Fernandes, a tese de Eliane Veras esclarece vários aspectos de sua vida que, nos diferentes relatos, tinham assumido formas folclóricas ou distorcidas. Ficou claro que Florestan nunca pertenceu ao Partido Comunista ou ao PCdoB pelo autoritarismo e patrulhamento de seus membros, algo que o nosso autor não admitia. Isso foi confirmado por Antonio Candido em vários depoimentos. O mero fato de Fernandes ter feito leituras marxistas e ter traduzido (com auxílio das traduções inglesas e francesas já existentes) a "Contribuição à crítica da economia política" de Marx, ainda não fazia dele um marxista. Nos diferentes depoimentos e na correspondência de Fernandes fica claro que a "ruptura epistemológica", à qual faço menção, teve início alguns anos antes do AI-5, mais precisamente em 1964, ano do Golpe Militar contra o governo de João Goulart. Mas, curiosamente, não foram esses fatos externos da política repressiva brasileira que levaram a uma mudança de conceitual e de metodologia de análise. Gianotti, Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni e Robert Schwartz haviam criado um Grupo de Leituras de Marx em 1964, e convidaram seu antigo mestre para dele participar. Fernandes, contudo, rejeitara sua participação, apesar de consciente de que teria de realimentar as suas leituras teóricas e analisar a realidade brasileira com um conceitual mais adequado para compreender o Golpe de 1964 e os vários atos institucionais do governo militar. Naquela ocasião, Fernandes preferiu a via do "militante solitário". A ida dele ao Canadá ofereceu-lhe a oportunidade de "reciclagem" teórica, sem que caísse num "marxismo vulgar" como tantos outros nessa época. Florestan Fernandes nunca se dobrou aos modismos, incluindo-se aqui o marxismo francês do grupo do Lire le Capital, do qual faziam parte Poulantzas, Rancière, Establet e Balibar apoiados em Gramsci e Machiochi, que se tornaram uma verdadeira febre na França e no Brasil, mas não chegaram a afetar Florestan.
Depois de sua volta ao Brasil, em 1973, Fernandes retoma seus trabalhos interrompidos sobre a análise da "Revolução burguesa", iniciada ainda antes do Golpe e concluída somente em 1974. É aqui que a reorientação teórico metodológica (a que chamei de corte) já se tornara evidente. Neste texto denso e interrompido por mais de seis anos, nosso autor tenta retomar (com enormes dificuldades) a análise da ordem patrimonial de origem colonial e "explicar" como, a partir e apesar dela, foi possível, instalar-se (no sudeste brasileiro) a "ordem social competitiva", isto é, a sociedade capitalista.
Em sua terceira fase de produção (já como membro do PT e da Câmara) Fernandes nunca mais voltaria a trabalhar numa instituição de ensino superior. Em conversas e cartas exprimia seu desprezo pela burocratização da universidade e pelo carreirismo egocêntrico da maioria dos professores e pesquisadores, que repassavam essas atitudes às novas gerações de universitários. Os anos em que acreditara poder mudar a sociedade brasileira a partir de um conhecimento científico profundo da realidade com auxílio da ciência, da educação e do planejamento (categorias emprestadas à Mannheim) estavam perdidos para sempre.
Restava, pois, o envolvimento com um partido (no caso o PT) e com o Estado Democrático, atuando na Constituinte em suas subcomissões (de Educação).
[Na Câmara] pude ver como atuam as elites econômicas, as elites culturais e as elites jurídicas, as elites militares, deputados e senadores predominantemente escolhidos dentro desses setores. Então pude conhecer melhor a sociedade brasileira, principalmente os processos pelos quais a concentração do poder, a concentração da riqueza e da cultura são mantidos de uma maneira ferrenha [...] (cf. Veras, pp. 117-118).
Paradoxo semelhante ocorre com relação à sua atuação como articulista político na Folha de S.Paulo. Em verdade, Fernandes não procura somente formar opiniões e consciência política. De fato, procura "educar" seu leitor, vendo no jornalismo um instrumento mais eficaz que no professor em sala de aula. Dentro e fora do Congresso de Brasília, era conhecido como "mestre dos mestres".
Conclusão provisória
Ao revisitar as três fases de vida de Florestan, que também abrangem três momentos significativos da obra de Florestan Fernandes, procurei recompor e juntar um quebra-cabeça que nos oferecesse uma imagem fidedigna do personagem e da obra de um dos maiores intérpretes do Brasil. Na busca de um "denominador comum" de todas as fases de sua produção, creio ter encontrado uma sugestão na metáfora de "três casas", usada por sua filha Heloísa Fernandes. Segundo essa metáfora, Florestan Fernandes efetivamente trabalhara na construção das casas do saber, do socialismo e de sua origem rural. Pergunto-me, pois, por que não construir – reunida em uma planta só – uma casa que abarcasse todos os esforços de Florestan Fernandes em "interpretar" adequadamente a sociedade brasileira? Permanecendo fiel à metáfora de sua filha, bastaria, pois, propor um "telhado" que abrangesse todos os períodos de vida e de produção de sua vida, reunidos num "casarão". Nesse casarão teriam lugar tanto o acadêmico e cientista, visto por Souza Martins (1986, o reformador e revolucionário, destacado em minha tese do "corte epistemológico" em Marília, e do Fernandes "político e socialista" estudado no trabalho de Eliane Veras sobre o "militante solitário".
Creio ter encontrado, em Habermas, uma solução para o "dilema" que todos enfrentamos, quando procuramos compreender, enquadrar e etiquetar Florestan. Ele foi simplesmente um dos maiores intelectuais que o Brasil conheceu até agora. Mas essa constatação somente é válida se aderirmos ao conceito de intelectual caracterizado por Habermas, deixando de lado o conceito da "freisch-webende Intelligenz", cunhado por Mannheim, que marcou os meus e os primeiros trabalhos do próprio Florestan.
Acho que o intelectual se caracteriza, entre outras coisas, pelo fato de que abre mão de qualquer dimensão elitista, e de que fala, no espaço público, não como um intelectual de partido, ou como um conselheiro do rei, mas somente em seu próprio nome, como cidadão, naturalmente com o objetivo de convencer os outros. (cf. Jürgen Habermas em Habermas: 70 anos, 1998).
Sob o teto desse conceito, que compreende o intelectual como um homem crítico, inserido em seu tempo e nos problemas e temas do dia-a-dia poderíamos reunir as várias facetas da obra de Florestan Fernandes, discutidas nas três fases de sua vida e ação como pesquisador, revolucionário e militante solitário.
Referências bibliográficas
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Recebido em 26.7.05 e aceito em 3.8.05.
Barbara Freitag é professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB) e professora livre-docente da Universidade de Berlim, Alemanha. @ – bfreitag@uol.com.br
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