Camus em 1954, dois anos após o rompimento com Sartre
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Em outubro de 1951, deu-se em Paris a publicação de um livro que abalou a esquerda francesa. Tratava-se do ensaio de Albert Camus intitulado O Homem Revoltado, uma brilhante e literariamente bem articulada exposição sobre as mazelas da revolução através dos tempos contemporâneos, inclusive com reparos aos acontecimentos decorrentes de 1789. Entre outras coisas, provocou o fim da longa amizade que Jean Paul Sartre mantinha com ele.
Nos calores da Guerra Fria
"A democracia não é o melhor dos regimes. É o menos mau. Experimentamos um pouco de todos os regimes e agora podemos compreender isso. Mas esse regime só pode ser concebido, realizado e sustentado por homens que saibam que não sabem tudo, que se recusem a aceitar a condição proletária e nunca se conformem com a miséria dos outros, mas que recuse, justamente, a agravá-la em nome de uma teoria ou de um messianismo cego."
Albert Camus, novembro de 1948
Entornando um copo de vinho com Albert Camus num daqueles bons cafés de Paris, Sartre comunicou ao amigo que em breve sairia uma crítica bem pesada na sua revista Les Temps Modernes contra o seu último livro L'Homme revolte (o Homem Revoltado). Haviam se encontrado na rua vindo para um destino comum, uma manifestação contra a ditadura franquista na Espanha. Nunca mais o fizeram.
O ensaio de Camus, aparecido em 1951, provocara um desconcerto geral em meio à esquerda francesa ao tempo em que vendeu quase 70 mil exemplares, editados pela Gallimard, ao longo de 1952. E não era para menos. Naqueles tempos quentes da Guerra Fria, com Mao Tse Tung recém chegando ao poder em Pequim e os norte-americanos ameaçando explodir a Coréia e, quiçá, a China Popular, com bombas atômicas, como era o desejo do general MacArthur, o famoso escritor deu-se ao desplante de repudiar a revolução, denunciando-a como a parteira dos absurdos e da arbitrariedade do Estado Policial moderno. Foi um pandemônio.
Os amigos rompem
O petardo lançado então contra ele, intitulado Albert Camus ou a alma rebelde (Temps Modernes, maio de 1952), foi estrondoso. Sartre, alegando razões de amizade, passara a ingrata tarefa para um dos seus próximos, um tal de Francis Jeanson, um jovem desconhecido que destratou Camus em vinte páginas.
Ele, chocado com a agressividade do artigo, respondeu em carta à direção. Sartre então entrou na liça, em defesa de Jeanson. "Nossa amizade não era fácil, mas vou sentir a falta dela. Se você a quebra hoje, é, sem dúvida, porque ela devia um dia ser quebrada... também a amizade é totalitária: é necessário o perfeito acordo ou o corte de relações."
Nove anos de boa convivência entre os dois evaporaram-se em outras trinta páginas do Les Temps, nº 82, de agosto de 1952, que teve duas tiragens esgotadas quando o público intelectual soube da "guerra literária" entre os dois maiores nomes da literatura francesa de então. Na verdade, o acusatório de Camus não era tanto contra a revolução, mas, sim, contra sua inoperância, denunciando-lhe a inutilidade da sua razão de ser.
O sem sentido da revolução
De que servira à França, indagou, ter tido três outras revoluções desde 1789, todas elas sangrentas, se os escandinavos e os ingleses, sem muitos tumultos, conduzidos pelas políticas de socialistas moderados, tinham atingido um alto padrão de vida, bem superior ao dos franceses?
A crítica de Camus aos destemperos e exageros das revoluções não pararam por aí, visto que acreditava que os seus líderes, quando no poder, mais tarde ou mais cedo, se tornavam repressores ou heréticos... policiais ou loucos! Porque, quis saber ele, Prometeu, com suas esperanças de regenerar o mundo, terminava como César, tiranizando as instituições?
O danoso daquilo tudo é que os admiradores das insurreições de massa feitas em nome da liberdade logo adotavam uma política de crimes justificados. Prendiam, interrogavam, confinavam e, em nome de um profundo amor pela humanidade, fuzilavam. Convictos de que aqueles a quem despachavam da vida eram ervas daninhas que precisavam extirpar do jardim socialista para que, mais tarde, no futuro, no amadurecer da planta, ela vicejasse com todo o vigor. Enquanto isto, os campos de concentração e o tiro no pescoço eram os herbicidas que eles, ainda que a contragosto, se viam obrigados a espargir.
A traição dos intelectuais
Irritava-o ainda o estrabismo dos intelectuais comprometidos com a esquerda que eram incapazes de formular sequer uma só crítica ao regime soviético. Podia-se ser rebelde contra tudo, menos contra Moscou! O que lembrava o sermão em forma de livro de Julien Benda, La Trahison des Clercs (A Traição dos Clérigos, de 1927), que falava do abandono deles aos princípios da razão, seduzidos e apaixonados pelas religiões terrenas (as ideologias), que abraçavam.
O desacerto de Camus com o socialismo milenarista, com os apocalípticos que viam sinais da crise derradeira do capitalismo a cada dobrar de esquina, vinha de mais longe, do final da guerra. Ainda que ele fosse um dos homens-chave do célebre Combat, o jornal da Resistência, que chegara a façanha de vender 300 mil exemplares ainda 1943, numa França ocupada, rapidamente o autor de A Peste atinou, já em 1944, que a Resistência não iria desembocar na Revolução Socialista ambicionada por muitos militantes, particularmente pelos maquisards de esquerda. Acreditava sim numa Revolução Democrática que impusesse novos relacionamentos sociais e humanos, mas nada que dirigido ou controlado pelos comunistas.
Em busca de uma Terceira Via
Porque, então, ensimesmou, ao invés da pregação a favor da revolução violenta, não encontrar uma solução de compromisso entre "a liberdade e a justiça"? Uma sociedade onde houvesse liberdade para que todos tivessem as mesmas oportunidades e onde qualquer um fosse respeitado nos seus direitos mais comezinhos (de certo modo, ao pensar assim, ele antecipou-se de longe à teoria da Terceira Via de Anthony Giddens e de Tony Blair, já devidamente sepultada).
Afinal, que se encontrasse um denominador comum entre a economia coletivista e a política liberal, e que, fundamentalmente, os socialistas, este "proletariado de bacharéis", parassem de se imaginar como seres ungidos divinos da reforma social. Que calçassem as sandálias da humildade. Daí entender-se o titulo do seu provocativo artigo A Democracia: exercício de modéstia, 1948.
Que aqueles aventureiros da dialética - muitos dos personagens dos "Mandarins" de Simone de Beauvoir -, cessassem de clamar pela revolução em abstrato, atingida pelo cálculo, feita por gente ressentida que só conduzia ao domínio "do rancor e tirania", e voltassem a ser de carne e osso como todo mundo.
E, acima de tudo, resistissem à tentação de praticar massacres e de querer hastear a bandeira da liberdade no centro dos campos corretivos e de trabalhos forçados, visto que o Estado que ambicionavam, fosse por influencia de Marx, Hegel ou Nietzsche, desandava num "Estado terrorista". Entre outros motivos porque "Os nossos criminosos... são adultos, e o seu álibi irrefutável é a filosofia que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em juízes." (O Homem Revoltado - Introdução).
Atrás da revolução relativa
Buscassem, pois, a revolução relativa, sem matanças, sem rios de sangue escorrendo pelas ruas, e sem as abomináveis justificações pelas mortes em massa. Sartre acreditava que era possível, purgando a água suja do stalinismo, salvar-se a criança dentro da bacia do socialismo. Camus, desencantado, enxergava sentando bem no meio dela um pequeno monstro, parido pelo terror revolucionário.
"O poder é triste no século 20", concluiu ele. Quando Camus morreu num estúpido acidente de automóvel, em janeiro de 1960, Sartre, no necrológico, o considerou um dos grandes moralistas da tradição literária francesa, mas nunca mais tinham se aproximado.
O efeito Koestler
Para Ronald Aronson, um estudioso norte-americano do panorama do existencialismo francês daquela época, o fator que muito impulsionou a virada de Camus para um anticomunismo mais radical deveu-se a presença de Arthur Koestler, um refugiado húngaro que passara a frequentar a trupe que cercava Sartre e Simone e que alcançara a celebridade com um livro que antecipou os começos da guerra fria: Darkness at Noon (Do zero ao infinito), aparecido em 1941, que relatava a capitulação ficcional de Bukharin durante os Processos de Moscou (1936-1938), seguido de outro, intitulado Le Yogi et le Commissaire (O Ioga e o Comissário), de 1945, onde denunciava caminho violento tomado pelos comunistas.
Koestler era o exemplo vivo do intelectual renegado, um ex-agente comunista que durante a prisão na Guerra Civil da Espanha, desiludido com a causa, assumira uma posição crescentemente anticomunista, efeito que levou ao escritor franco-argelino, seu amigo recente, a afirmar que "comunismo = assassinatos".
A influência dele sobre Camus fez por acelerar a sua mutação. O romancista que fora um militante do Partido Comunista na sua Argélia natal (1936-1938), um ativista da Resistência, o tão admirado homem engajado de Sartre, começou a se desengajar no após-guerra, procurando outro caminho que não o levasse a aliar-se ao comunismo, como Sartre terminou fazendo.
Em verdade, a postura que ele assumiu era um tanto irreal ou mesmo utópica devido à dimensão das forças em crescente colisão, a do Bloco Capitalista-Ocidental contra o Bloco Comunista do Leste. Rivalidade que envolveu o mundo e o ameaçou durante anos com um apocalipse atômico. Naquela situação era impossível haver "uma terceira posição" que conseguisse permanecer equidistante deles.
Tenha-se em conta o medo que a Guerra da Coréia indiretamente provocou na população parisiense, entre 1950 e 1952. Muitos passaram a temer que com o acirramento do confronto no extremo-oriente, os soviéticos em represália à intervenção norte-americana comandada pelo general MacArthur, poderiam invadir a França. Francine, a mulher de Camus, confessou à Simone de Beauvoir que, se tal acontecesse, ela se veria obrigada a matar seus dois filhos e se suicidar, pois não poderia suportar viver "sob os vermelhos". Os alunos de Simone, por sua vez, juram fazer um "pacto de morte" pelo mesmo motivo. A geração que sobreviera a Hitler não queria entregar-se a Stalin. Este, pois, era o clima que cercou a polêmica.
Seja como for o desentendimento entre Camus e Sartre, teve uma conotação universal, resumindo os conflitos da inteligência ocidental no século 20 (pelo menos desde 1917). Afinal, ao longo do século, todos os seres pensantes foram chamados a se colocarem a favor ou contra o comunismo, da mesma forma que ocorrera quatro séculos antes no Ocidente por ocasião da Reforma Religiosa no começo do século 16. Fato que dissolveu o Partido dos Humanistas da época do renascimento, forçado a abraçar a ortodoxia católica ou a dos protestantes.
Nem o afeto e admiração recíproca que ambos sentiam um pelo outro resistiu à pressão da Guerra Fria. Camus somente tinha olhos para os crimes de Stalin e para os desatinos da esquerda, enquanto Sartre insurgiu-se contra a guerra colonialista que a França movia primeiro na Indochina (1945-1954) e depois na Argélia (1956-1961) e também contra os Estados Unidos que lhe dava apoio.
O resultado disso é que Camus tendia a silenciar frente aos desmandos e atrocidades praticadas pelo colonialismo, enquanto Sartre, ao contrário, fechava os ouvidos para a denúncia dos campos forçados soviéticos, ao Processo Slansky, à "conspiração dos médicos", ao fuzilamento dos trabalhadores alemães alçados contra os soviéticos em Berlim, em 1953.
Somente afastou-se dos comunistas em 1956, com o famoso ensaio Le phantome de Stalin (O fantasma de Stalin), escrito em repúdio à invasão da Hungria pelo Exército Vermelho. Numa entrevista ao L'Express anunciou:"Eu estou rompendo, com pesar, mas totalmente, meus laços com meus amigos escritores soviéticos que não denunciam (ou não podem denunciar) o massacre na Hungria. Nós não mais podemos qualquer amizade com a facção dominante da burocracia soviética".
Envolvidos na Guerra Ideológica do Século, Camus e Sartre terminaram mergulhando fundo nela, pondo fim a uma das mais produtivas amizades intelectuais da literatura francesa do século 20.
Bibliografia
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Fonte: VOLTAIRE SCHILLING