18.11.20

Hermenêutica



Por Andrew Lenoir

Etimologicamente, hermenêutica provém dos termos gregos: hermeneuein e hermeneia respectivamente, verbo e substantivo (interpretar e interpretação) com referência ao deus mensageiro Hermes suposto descobridor da linguagem e da escrita e intermediário das mensagens sagradas.

A hermenêutica tem como centralidade decifrar, por meio de técnicas metodológico-interpretativas, o aparente indecifrável mundo das entranhas de um texto literário, bíblico e ou jurídico.

Nesse sentido, não basta aplicar em qualquer obra análises científicas sob risco de engessar o texto antes mesmo de sua a priori compreensão, mas faz-se preciso o uso de regras hermenêuticas aplicadas a textos específicos. Assim, a hermenêutica torna-se fundamento para todas as humanidades, sendo passível a sua aplicação até mesmo nas obras de arte.

Dizer, explicar e traduzir ambos poder-se-iam ser traduzidos pelo verbo hermeneuein (interpretar) ainda que cada um com singulares sentidos.



Dizer algo, é comunicar o desconhecido, torná-lo conhecido, intimamente ligado à função kerigmática de Hermes. Dizer já é interpretar. Assim, Hermes ao transportar a mensagem dos deuses ele já a carrega marcada por sua interpretação. Ou ainda Homero e/ou os autores bíblicos, sendo eles supostamente inspirados pelos deuses, os seus dizer se colocavam como intérpretes deles, não mera repetição transloucada como ingenuamente alguns pensam.


Nesse ponto, o autor nos coloca diante duma comparação entre a linguagem escrita e a oral. Essa é superior àquela por razões que vão desde a compreensibilidade, encanto, vivacidade etc. Dizer oralmente, é não só ler o escrito, mas transpor um pensamento carregando-o de sentido, entonação, emoção, enfim, carregando-o da subjetividade de quem professa.

Entretanto, percebe-se que ainda que a língua escrita seja “inferior” à falada, a escrita foi e é fundamental no processo de memória dos signos linguísticos, uma vez que as narrativas orais tendem a modificar o conteúdo linguísticos ao longo das épocas. O que nos coloca diante dum eterno paradoxo-linguístico: expressão oral parte da leitura do texto escrito como fundamento para o posterior dizer. O que faz Richard afirmar, parafraseando-o, toda leitura silenciosa dum texto literário é um disfarce da interpretação oral.

Hermeneuein enquanto explicação, é um discurso, pois pautar-se-á no encadeamento lógico do argumento, visando esclarecer o que outrora estava confuso na mente do interlocutor, em outras palavras, é uma tentativa de desvelar o obscuro, torná-lo esclarecido, passível de compreensão.

Desse modo, para que um discurso atinja o seu objetivo que é chegar compreensível na mente do interlocutor, não basta expressar, dizer, torna-se preciso explicar o conteúdo expresso de modo a conduzir o interlocutor à melhor compreensibilidade do discurso proferido.

Assim como dizer, explicar é já interpretar, visando segundo Aristóteles enunciar o juízo verídico de algo a partir duma operação explicativa do intelecto. Tal como observamos na Escritura em diversos momentos Cristo propõe-se a explicar certos costumes do AT e atualizá-los dando-lhes novos significados coerentes com o contexto histórico atual. Sua operação é hermenêutica, pois ele não apenas diz algo, mas explica algo, opta por determinadas palavras e não outras, determinadas leis e não outras, toma como base um dado acontecimento quando como intérprete poderia tomar outro.

A operação hermenêutica como traduzir, é semelhante a Hermes a mediação entre dois mundos: o do autor e do leitor, essa mediação assume estatuto mais complexo quando o mundo do primeiro (o que há de ser traduzido) está sistematizado sob signos linguísticos diferentes dos do intérprete (nexos vivenciais).

Isso fica-nos claro, por exemplo, se tomarmos no caso da língua portuguesa a palavra “saudade”, considerada a 7ª palavra mais difícil de ser traduzida, como traduzi-la para outra língua, se essa só é conhecida em galego e português? No inglês, talvez usássemos miss “I miss you”, ou ainda, homesick “falta do lar”, mas ambos não traduzem a totalidade que a palavra saudade quer significar em nosso idioma, além do mais há inúmeros tradutores que não concordam com o uso dessas palavras para traduzir saudade, optando por não traduzi-la, mas apresenta-la se preciso for na explicação.


A própria língua tem sua interpretação, que pode ou não ser similar às de outras línguas uma vez que é repositório de experiências culturais próprias dum povo. Desse modo, a compreensão passa não somente pelo dizer e explicar, mas também pelo traduzir para uma linguagem atual levando em conta não só a língua, mas também a oralidade, o contexto histórico e seus nuances ao longo da história, daí reportarmo-nos à própria filologia como procedimento auxiliar nesse tríplice processo de compreensão hermenêutica.

Referências Bibliográficas

CORETH, Emerich. Questões Fundamentais de Hermenêutica. São Paulo: EDUSP, 1973.

GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica. Trad. Benn Dischinger. São Lopoldo: Ed. Unissinos, 1999.



PALMER, Richard. Hermenêutica. Lisboa: Ed. 70, 1986.