Por seu comportamento bipolar, oscilando entre a fúria e a penitência, ganhou a alcunha O Terrível. Com inteligência e dinamismo, ele modernizou e expandiu a Rússia, transformando-a numa potência
Em seus últimos dias, o temido senhor da Rússia oscilava entre razão e loucura, devassidão e piedade, e dava ordens entre suas orações. Ivan IV, o Terrível, e sua ama de leite, óleo sobre tela, Karl Gottlieb Wenig, 1886
por Laurence Catinot-Crost
Filho de Vassili III, grão-duque de Moscou, e de sua segunda mulher, Helena Glinskaya, Ivan foi o penúltimo representante da dinastia Rurik. Com a morte de Vassili III em 4 de dezembro de 1533, o menino de 3 anos foi proclamado grão-príncipe de Moscou. Sua mãe foi regente da Rússia 1538, quando morreu, fato que reacendeu as disputas entre várias facções da nobreza pelo poder. Conflitos sanguinários entre vários clãs de boiardos (nobres russos) se estenderam até 1547, deixando marcas profundas no jovem Ivan, que sobrevivia como podia entre terror e horror.
Após a morte da regente Helena Glinskaya, em 1538, lutas sangrentas opuseram os boiardos na conquista pelo poder. Ivan, filho do grão-príncipe Vassili III, sobrevivia como podia entre terror e horror. Ele lembrou em uma carta: “Eu estava com 3 anos. Meu irmão Yuri tinha apenas 1 ano de idade. Ficamos órfãos, com a nossa mãe, a piedosa czarina Helena, viúva e infeliz ela também. Parecia que estávamos em meio às chamas. Foi então que vocês, os boiardos desleais, começaram a nos oprimir com seus inúmeros golpes. Quando a piedosa imperatriz Helena deixou o reino terrestre, ficamos, meu finado irmão Yuri e eu, completamente órfãos, sem ninguém para nos ajudar. Eu tinha então 8 anos. Nossos súditos viram os seus desejos se tornarem realidade: receberam um império sem chefe. Eles nos ignoraram, seus soberanos, e se precipitaram para conquistar riquezas e honrarias. Quanto a nós e a nosso finado irmão Yuri, fomos criados como estranhos ou mendigos. Quantas privações sofremos, tanto nas roupas como na alimentação! Não nos davam nenhuma liberdade, nunca fomos tratados como convém tratar as crianças. Vivemos perseguidos e oprimidos, e a perseguição crescia dia a dia, hora a hora”.
Ivan demonstrou uma maturidade excepcional e um perfeito domínio da língua. A beleza do seu estilo e seu talento literário fizeram dele um dos grandes escritores da sua época, e, sem dúvida nenhuma, o mais talentoso de todos os monarcas russos. Sua erudição religiosa era impressionante, sua memória, fenomenal. Escreveu uma grande quantidade de epístolas e textos litúrgicos, além de compor várias peças musicais.
Os anos vividos sob a tutela dos boiardos aguçaram seu ressentimento e sua crueldade: “Quando completamos 15 anos, começamos a governar nosso império por nós mesmos”. Pediu que fosse consagrado como czar de toda a Rússia no dia 16 de janeiro de 1547, na catedral de Moscou. O metropolita Macário entregou-lhe as insígnias do poder: a cruz, a pelerine e a coroa de Monômaco.
O título czar seria oficializado em 1561, por meio de um rescrito do patriarca de Constantinopla. No dia 3 de fevereiro de 1547, Ivan casou-se com Anastasia Romanovna. Graças à sua influência benéfica, ao Conselho de Eleitos presidido por Alexis Adashev, guiado pelo metropolita Macário, o príncipe Andrei Kubsky e o padre Silvestre, Ivan IV reinou com sabedoria e eficiência.
Após assassinar o filho e herdeiro, Ivan Ivanovich, o czar exibiu sinais cada vez mais claros de decadência física e mental. Ivan, o Terrível, e seu filho em 16 de novembro de 1581, óleo sobre tela, 1885, Ilya Efimovich Repin
Nervoso, irascível, despótico e astuto, ele surpreendia por sua sagacidade, seu senso apurado de análise e de diplomacia, suas qualidades de estrategista, sua vontade de centralização do poder e suas opiniões políticas. Em 1548, dissolveu o Conselho de Eleitos e constituiu um Conselho Escolhido dirigido pelo pope (sacerdote ortodoxo) Silvestre e Alexis Adashev. “Nenhum príncipe da cristandade é mais temido e amado por seu povo. Dois pensamentos o consumiam: servir a Deus e esmagar os inimigos”, relatou um de seus contemporâneos.
Em 1550, o czar convocou os primeiros Estados Gerais (zemski sobor) de todas as províncias da Rússia. Foi a primeira assembleia na qual ele se dirigiu ao povo: “Eu era como surdo e mudo na minha lamentável infância porque eu não ouvia os lamentos dos pobres e as minhas palavras não suavizavam seus males. Mas posso prometer-lhes que saberei preservá-los da opressão e do saque. A partir deste dia, serei seu juiz e defensor”. Ele promulgou um código de vida doméstica, o Domostroi, elaborou um novo código de leis, instituiu auxílios para os pobres e os inaptos para o trabalho. Criou o corpo dos Streltsy (a guarda de elite dos czares), cujos membros eram recrutados entre os homens livres e de viam servir a vida toda. O concílio dos Cem Capítulos reorganizou a vida religiosa em 1551. A elaboração e a adoção do código administrativo foram realizadas em 1555-1556. O primeiro alfabeto eslavo foi publicado em 1574.
EXPANSÃO TERRITORIAL Porém, mais do que tudo, Ivan queria unificar o país e conquistar novos territórios. O canato (reino turco ou mongol dirigido por um khan) de Kazan intimidava as populações e controlava a rota do rio Volga usada pelos comerciantes. Com um exército de 150 mil homens e 150 canhões enormes, Ivan IV desmantelou o canato em 1552. Em memória dessa vitória, foi construída em Moscou a catedral da Intercessão da Virgem. A conquista do canato de Astracã, em 1556, fez do Volga um rio inteiramente russo.
O Bascortostão e a Chuváchia uniram-se à Rússia em 1557. Decidido a dar ao país uma saída para o mar Báltico, em 1558 Ivan iniciou a Guerra da Livônia, contra os poloneses e os suecos. A guerra contra a Suécia começou em 1567. A cidade de Novgorod foi conquistada em 1570. De acordo com Skrynnikov: “Foi um terror de grande amplitude, em especial para com os habitantes de Novgorod. Durante o seu reinado, Ivan IV teria mandado executar de 3 mil a 4 mil pessoas”. O inimigo não estava muito atrás. Em 1571, o khan da Crimeia, Devlet Giray, marchou sobre Moscou. Os tártaros atacaram a cidade, queimando e exterminando tudo o que viam pela frente. Pouco importava, reconstruía-se! A expansão do território era o grande negócio do temido czar.
No dia em que, segundo os astrólogos, seria o de sua morte, Ivan pediu para se tornar monge e faleceu logo em seguida. Czar Ivan IV, o Terrível, pede a Komily para ser admitido entre os monges, óleo sobre tela, Kludiy Vasilevich Lebedev, século XIX
Depois de ter cruzado os montes Urais e combater os tártaros nas margens do rio Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à Coroa da Rússia. Um tratado de paz com a Polônia, em 1582, e outro com a Suécia selaram as diferenças. Louco de dor após a morte da czarina Anastasia em 1560, Ivan saciou sua sede de vingança na mais extrema violência. Prometeu cortar a cabeça dos oponentes. Incentivado pelos seus favoritos, Basmanov, Chybotovi, Saltykov e Viazemski, na sua desconfi ança doentia, seu abuso de poder, sua luxúria e sua crueldade, ele abandonou a capital no dia 3 de dezembro de 1564 e se retirou para Alexandrovskaia Sloboda, na província de Vladimir. Anunciou sua decisão de abdicar no dia 3 de janeiro de 1565. Dirigiu para o povo um apelo contra os boiardos.
O arcebispo Pimen de Novgorod foi buscá-lo. Com a mente atormentada pela paranoia, o czar voltou para o Kremlin como autocrata, no dia 2 de fevereiro de 1565. Decretou: “Todos os soberanos russos são autocratas e ninguém pode criticá-los. O monarca pode exercer sua vontade sobre os escravos que Deus lhe deu”. Seu poder era absoluto e ilimitado. Para se proteger dos boiardos, fundou o Oprichnina (guarda pessoal do czar), em 1565. Os oprichniki, membros dessa guarda, vestidos de negro, usavam uma cabeça de cachorro e uma vassoura penduradas em suas selas, símbolos da sua função: “Devorar e varrer todos os boiardos desleais”. Liderando 6 mil homens, Grigori Maliuta Skuratov espalhou o terror. “Foi então que começaram as decapitações”, disse a crônica. Os oprichniki pilharam, massacraram e exterminaram praticamente toda a população de Novgorod, mais de 15 mil pessoas, durante o pogrom de 1570. O Oprichnina seria dissolvido em 1572.
Somente um homem se opôs ao czar, denunciando seus abusos: o metropolita Felipe. O concílio interveio. Filipe consentiu em não questionar o czar. Por um ano, o terror cessou. Mas em 1567, Ivan acusou os boiardos de traição. Cortou em pedacinhos homens, mulheres e crianças. Filipe não conseguia mais trazer Ivan de volta à razão. Negou-lhe a bênção durante um culto, censurou a violência e contestou sua ideia de monarquia. Expulsou da igreja os homens que haviam sequestrado as mais belas mulheres de Moscou para que fossem violentadas pelo czar e seus oficiais, em julho de 1568.
Louco de raiva, Ivan IV convocou um concílio a fim de julgar o metropolita. Filipe foi deposto e condenado à prisão perpétua por bruxaria. Por ordem do czar, Grigori Maliuta, executor do trabalho sujo, estrangulou-o em 1569. Tomado por novo capricho, Ivan renunciou ao trono em 1575 e abdicou em favor do príncipe tártaro Simeão, neto do khan Akhmat e filho de Bekbulat. Instalou-o no Kremlin, deu-lhe todo o poder e se retirou na província. O “czar” Simeão substituiu Ivan durante um ano.
Depois de cruzar os Urais e combater os tártaros às margens do Tobol, o cossaco Yermak conquistou a Sibéria em 1581, acrescentando aquela terra gelada à coroa da Rússia. A conquista da Sibéria por Yermak, óleo sobre tela, Vassili Ivan Surikov, 1895
Ivan casou-se novamente em 1561, com Maria Temrjukovna, filha do khan Temryuk, que faleceu no dia 1º de setembro de 1569. Como o czar não podia ficar sozinho, foi organizada uma festa de apresentação de noivas. Mais de 2 mil jovens competiram. Ivan escolheu Maria Vasilyevna Sobakina, filha de um comerciante de Novgorod. Ela se tornou sua esposa no dia 28 de outubro de 1571 e morreu durante as celebrações do casamento, em 13 de novembro.
O viúvo afundou na devassidão. Não contente com suas inúmeras conquistas femininas, ele se mostrava ao lado do seu favorito, Basmanov. No auge da sua loucura sanguinária, escolheu Ana Alexaievna Koltovskaia. Casou-se com ela em 1572 e, depois, trancou-a em um convento, sob o pretexto de que ela emagrecera e ele não gostava de magras.
Sempre alerta, o czar cortejou a irmã do rei da Polônia Sigismundo II. Em seguida, pediu a mão de Elizabeth I da Inglaterra. A dama recusou educadamente e lhe ofereceu uma das suas sobrinhas. Não houve acordo.
O senhor da Rússia oscilava entre razão e loucura, devassidão e piedade. Em 1578, promulgou um oukase (decreto) abolindo as sentenças de morte e exigiu que os monges orassem pelos mortos. Entregue à devoção, ele dava ordens entre uma oração e outra. Assassinou com as próprias mãos seu filho, o czarevich Ivan Ivanovich (1554-1581). Seu estado mental e físico foi se deteriorando consideravelmente. “Um apodrecimento dos órgãos internos”, de acordo com seus médicos, o reduziu ao estado de um cadáver.
A mania de perseguição fazia-o delirar. Falava palavras obscenas e depois implorava ao céu para que perdoasse sua vileza e o curasse. Seus astrólogos previram sua morte para o dia 18 de março de 1584. Naquele dia, Ivan pediu para se tornar um monge, sentou-se diante do seu tabuleiro de xadrez e desmoronou. Havia boatos de que ele fora envenenado. Na década de 1960, a análise dos ossos do czar revelou indícios de mercúrio, que nos tempos de Ivan era indicado, em forma de pó ou pomada, para tratar sífilis, mas poderia ter sido usado de maneira criminosa...
LAURENCE CATINOT-CROST e historiadora especializada em Rússia.
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/ivan_o_primeiro_czar.html