Da Revolução Francesa, passando pelos carbonários, o século XX com as guerras, e o XXI, com Bin Laden: o terrorismo foi encarado de formas até antagônicas
Rodrigo Elias
Um grupo de oito soldados judeus americanos persegue oficiais nazistas na França ocupada em 1944. Entre outras coisas, arrancam os escalpos das vítimas – depois de uma sessão de tortura que inclui surra com um bastão de baseball – e gravam suásticas nas testas dos sobreviventes com a ponta da faca. O objetivo? Espalhar o pânico entre os alemães e facilitar a vitória dos aliados. Este é o enredo de “Bastardos inglórios” (2009), filme de Quentin Tarantino. A tática de amedrontar o inimigo – neste caso, os nazistas – nos soa absolutamente legítima. Afinal, se existe um partido a ser tomado nesta disputa, com certeza não é o de Hitler e dos seus comandados.
Mas os pontos de vista sobre esta questão podem variar de acordo com o lugar do observador. De volta à Segunda Guerra Mundial e à ocupação da França, mas agora fora do grande écran, o uso político do medo (e a guerra é a expressão máxima de uma disputa política) pode ser percebido de outra forma, mesmo que nos pareça inesperada. Nem todos os franceses aceitaram ou toleraram a invasão alemã, e organizaram uma série de movimentos e células de defesa. Estes homens e mulheres que atuaram contra os nazistas e os colaboracionistas franceses ficaram conhecidos como partisans (partidários), e La Résistence teve entre os seus membros o célebre historiador Marc Bloch (1886-1944), torturado e morto pela Gestapo. O grupo se tornou um dos movimentos mais dignos de nota na história recente da França, atuando inicialmente no anonimato, em ações de guerrilha e de propaganda. A Resistência teve um papel importante para a derrocada nazista, além de ter servido como um fator de união entre grupos antagônicos da sociedade civil francesa. Como seus membros eram chamados pelos homens de Hitler? Terroristas.
Robespierre, em retrato da escola francesa do século XVIII / Fonte: wikimedia-cc
É possível notar, portanto, que o terrorismo – o uso sistemático do medo como atuação política – é um tema bastante complexo, e que a reflexão sobre ele deveria considerar duas direções: 1) o papel que o medo pode ter desempenhado na organização da sociedade ocidental (bem como na teorização sobre o surgimento do seu status político) e 2) a importância da atribuição de valor aos agentes que se utilizam deste sentimento na arena política.
No século XVIII, em uma época de profundas transformações políticas e sociais, o medo foi utilizado deliberadamente como meio para manter uma ordem política e social. Levando às últimas consequências a autoridade dos líderes da Revolução Francesa, a Convenção declarou, no dia 5 de setembro de 1793, o “Terror”. A nova ordem instaurada pelos revolucionários no poder permitia o encarceramento dos suspeitos de oposição ao regime, medida inicial que acabou se convertendo na morte de cerca de 40 mil pessoas. Os “terroristas”, como ficaram conhecidos estes líderes entre 1793 e 1794, tentavam assegurar as conquistas da Revolução contra anseios dos reacionários, que queriam o retorno ao Antigo Regime. Homens como o líder Maximilien de Robespierre, “o incorruptível”, uma vez instalados no poder, trataram as disputas políticas em termos de uma luta entre o “bem” (eles) e o “mal” (os outros). Ao fim do período do Terror, Robespierre também foi parar na guilhotina.
Tragédia do ponto de vista da humanidade, o Terror foi fundamental para a formação da máquina militar francesa que teria grandes triunfos nos anos seguintes, inclusive no período da expansão bonapartista. Expansão que, além da guerra, também levou a outras paragens instituições revolucionárias, como o governo constitucional. A partir do século XIX, estas instituições herdeiras de 1789 se configuraram nos governos liberais que se espalharam pelo ocidente, garantindo certas liberdades e, principalmente, colocando grilhões na violência do Estado. A possibilidade de eliminação do indivíduo por conta de injunções políticas não desapareceu, mas estava regulada. Até que grupos políticos organizados fora do âmbito do Estado começaram a se utilizar sistematicamente da violência como estratégia para mudanças institucionais.
Nas primeiras décadas do século XIX, vários grupos revolucionários se reuniram clandestinamente na Europa. Resgatando a experiência revolucionária francesa, associando-a a princípios políticos de esquerda consolidados logo depois, como a defesa dos extratos sociais inferiores, os “carbonários” tinham como elemento de união o ódio aos ricos. Inspirados na maçonaria, estes grupos reuniam indivíduos interessados em instaurar regimes populares, mas não acreditavam que o próprio “povo” estivesse apto a lutar politicamente por esta nova ordem. Outras organizações, chamadas pelo historiador britânico Eric Hobsbawm de “terroristas”, como os Whiteboys (“Rapazes brancos”) e os Ribbonmen (“Homens das fitas”), estiveram ativos na Irlanda entre os séculos XVIII e XIX, atuando violentamente contra os grandes proprietários.
O anarquista Mikhail Aleksandrovitch Bakunin / Imagem: Wikimedia-cc
Ao longo do século XIX, estes grupos organizados fora das estruturas formais do Estado – e às vezes francamente contrários aos seus dirigentes – e que tentavam impor uma revolução social, um objetivo justo sob muitos pontos de vista, instrumentalizaram o medo como forma de ação política. Na década de 1880, os anarquistas formularam uma estratégia chamada “Propaganda pelo Ato”. Proposta pelo russo Mikhail Bakunin e pelo teuto-americano Johann Most, consistia no uso da violência dirigida a alvos políticos estruturais. A longo prazo, o objetivo seria angariar o apoio das massas para a derrubada do sistema capitalista burguês. Ultrapassando as palavras, os atos violentos seriam um meio mais eficiente de impor uma nova realidade político-social. Outros grupos passaram a se utilizar da estratégia ao longo do século XX – como os próprios carbonários, envolvidos no assassinato do rei D. Carlos I de Portugal e do seu filho e herdeiro, o príncipe D. Luís Filipe, em 1908.
Os atos de “terror”, ações violentas “cirúrgicas” com propósitos políticos – em geral, mas não sempre, contra o status quo –, passaram a integrar definitivamente o arsenal das mais diversas correntes ideológicas. Em 1914, o sérvio Gravilo Princip, membro da organização nacionalista terrorista Unificação ou Morte (também conhecida como Mão Negra), assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono da Áustria. Era o estopim para a Primeira Guerra Mundial, que inaugurava um século de conflitos e de extremismos políticos. Ao longo deste tempo, os terroristas assumiram as mais variadas colorações, aumentaram a escala da sua ação e foram vistos de forma negativa ou positiva dependendo do contexto no qual atuaram e, principalmente, de quem os qualificava. Assim, os guerrilheiros islâmicos em atuação no Afeganistão foram chamados de “insurgentes” pelos norte-americanos quando lutavam contra a dominação soviética durante a Guerra Fria, mas seus remanescentes se tornaram “terroristas” quando a União Soviética desapareceu e o seu alvo atravessou o Atlântico.
Osama bin Laden, que foi morto recentemente / Imagem: Wikimedia-cc
Agindo de forma isolada, como o norte-americano Theodore Kaczynski, mais conhecido como Unabomber, que realizou atentados a bomba nos Estados Unidos entre 1978 e 1995 em protesto contra a sociedade industrial e tecnológica, ou em organizações estruturadas, como o ETA, grupo basco de orientação nacionalista e separatista que atua na Espanha, os “terroristas” conquistaram definitivamente a atenção dos meios de comunicação. Se os seus fins mais explícitos não têm sido alcançados (a sociedade capitalista industrial não parece estar em vias de recuar, apesar das seguidas crises; países latino-americanos não parecem dispostos a adotar sistemas comunistas de orientação leninista, malgrado o constante ribombar dos artefatos das facções armadas; o estado de Israel na Palestina não dá sinais de que vai desaparecer, não obstante o sangue continue a correr nas ruas de Tel-Aviv), o meio de luta tem sido um sucesso.
Em maio deste ano, após a morte do terrorista árabe Osama bin Laden, o presidente norte-americano Barack Obama afirmou que a operação foi mais um passo na luta para tornar o mundo um lugar mais seguro – uma etapa do que foi chamado de Guerra ao Terror após os atentados sofridos pelos Estados Unidos em setembro de 2001. Dias depois, em Moscou, o presidente russo Dmitry Medvedev declarou que “a eliminação dos terroristas – até mesmo pessoas em pé de igualdade com Bin Laden – tem efeito direto na segurança dentro da Rússia”. A impressão que se teve a partir de comentários deste tipo, repercutidos pela imprensa de todo o mundo, é de que o nível de insegurança (ou medo) global diminuiu. A julgar pelo histórico da questão, esta não parece uma impressão muito acertada.
Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos/o-terrorismo-e-as-suas-varias-acepcoes