A fortaleza portuguesa tomada por guerras e crises que teve de se mudar às pressas da África para os confins do Brasil
Texto Marcelo Testoni | Ilustrações Bruno Algarve
Arqueólogos da Universidade Federal de Pernambuco não acreditavam no que haviam encontrado. Ao sul de Macapá, às margens do Rio Mutuacá, ruínas de um projeto colonial, organizado e modesto, envolvendo traçados de ruas, tumbas coletivas e alicerces de uma igreja surgiram a seus pés. As construções, encravadas na Floresta Amazônica, foram descobertas em 2003. A História do Brasil acabava de ganhar um novo capítulo: Mazagão, a fortaleza que atravessou o Atlântico na tentativa de renascer feito fênix do outro lado do mundo.
Entre os anos de 1770 e 1773, fidalgos portugueses (cerca de 2 mil pessoas distribuídas em 470 famílias) exilados pela invasão muçulmana da Vila de Mazagão, no Marrocos, desembarcaram em Belém do Pará com o objetivo de reconstruir, na foz da Bacia Amazônica, no Amapá, sua cidade-forte. O povoado também serviria de apoio tático à expansão territorial pelo interior do país. No entanto, bastaram alguns anos e, em 1783, o plano de reconstrução seguiu rio abaixo. A obra, cópia da versão africana, não resistiu às condições hostis da América portuguesa.
O fascínio por trás da odisseia de Mazagão é tão grande que inspirou lendas e festas regionais, como a de São Tiago, que trata de batalhas travadas entre portugueses e mouros, ainda mais difundida depois das recentes descobertas no meio da floresta. "Trata-se de uma história muito importante não apenas para a cultura do Brasil como também para Portugal e Marrocos, pois dessa forma podemos entender um pouco mais sobre o passado comum a esses três países", diz o arqueólogo e membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil Marcos Albuquerque, líder da pesquisa.
A fundação
Em 1513, os portugueses ergueram na Baía de Dukkala, no Marrocos, uma fortaleza que até hoje surpreende especialistas em engenharia de fortificações. Batizada de Mazagão, do árabe "água quente", devido à abundância de poços artesianos na região, a base militar servia aos navegantes que faziam a rota do Cabo, em direção às Índias, e defendia cristãos de ataques dos nativos muçulmanos.
O auge chegou em 1534, durante o reinado de dom João III. Com a ocupação islâmica de diversas colônias portuguesas no norte da África, como Safim, Azamor e Arzila, Mazagão se transformou em um baluarte das forças portuguesas. Para ser considerada uma rocha impenetrável e permanente, passou por uma total restauração de suas defesas. No início do projeto, foram convocados os melhores matemáticos e consultores de geometria do Renascimento. De acordo com o historiador Rafael Moreira, autor de História das Fortificações Portuguesas no Mundo, sua presença inabalável "imitava um navio de guerra pétreo pronto para zarpar". Segundo ele, o rei teria dito ao arquiteto Miguel de Arruda, em 1541: "Quanto mais metida no mar, melhor e mais segura será". Um dos arquitetos envolvidos na reforma, Benedetto de Ravenna, havia sido auxiliar de Leonardo da Vinci. Portugal foi capaz de erguer uma verdadeira barreira amuralhada, com fossos profundos, com planta em formato de estrela de quatro pontas, em uma ilha na costa marroquina. No lado interno, na vila, ainda foram construídas algumas casas, uma prisão, uma igreja paroquial e um hospital. A cidade-forte de Mazagão foi, até 1769, a maior obra pública construída por portugueses fora da Europa.
"A proximidade do litoral garantia o embarque e desembarque de mercadorias e pessoas, sem grandes sobressaltos, conforme o movimento das marés", afirma Paulo de Assunção, doutor em História pela Universidade de São Paulo e Universidade Nova de Lisboa. Mas isso não freou as investidas contra Mazagão. Ao longo do século 16, a fortaleza foi alvo de cercos e sempre saiu ilesa dos ataques. Cada nova vitória era comemorada pela população com procissões e jogos que exaltavam a supremacia católica diante do islã. Contudo, a privação e a tensão sempre estiveram atreladas à rotina daquela gente. Tarefas comuns como buscar água ou arar os campos eram sempre arriscadas.
No século 17, os mazaganistas foram catalogados em duas classes sociais e ocupavam mais de 700 casas e lotes agrícolas, segundo registro feito pelo estatístico francês Pierre Davity, publicado em 1660. Os mais ricos, denominados fronteiros, pertenciam à nobreza, como governantes, generais e barões, que permaneciam com suas famílias no local até o cumprimento dos mandatos. A outra parte, pobre em sua totalidade, era composta de militares, marinheiros, agricultores, artesãos, médicos e escravos com suas famílias, além de migrantes das Ilhas do Açores, prestadores de serviços aos nobres.
O êxodo
Essa sociedade múltipla estava com os seus dias contados. Ao longo do século 18, crises recorrentes comprometeram as finanças públicas e o controle das despesas para manter a defesa de Mazagão. "A crise dos produtos coloniais, que se desencadeou nos anos 1750, ampliou o déficit metropolitano, ainda mais aprofundado pelo imenso canteiro de obras de reconstrução de Lisboa, depois do tremor de terra de 1755", afirma Laurent Vidal, autor de Mazagão: A Cidade que Atravessou o Atlântico e professor da Universidade de La Rochelle, na França.
Como se não bastasse, os exércitos mouros haviam se multiplicado, assim como as epidemias e pragas. Sem o auxílio da metrópole, o caos era inevitável. Diante de mais um problema, o rei dom José I resolve convocar o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho Melo, o futuro Marquês de Pombal, para modernizar a geopolítica do reino. "Em setembro de 1763, Carvalho e Melo, aconselhado por seu irmão, o ministro da Marinha, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, decidiu substituir o governador Vasques da Cunha, rancoroso demais, pelo próprio sobrinho, Dinis Gregório de Melo Castro de Mendonça", diz Laurent Vidal.
O novo governador tinha consciên-cia de que gerir Mazagão não seria fácil. Logo depois de desembarcar, enviou ao tio relatos sobre as condições em que se encontrava a população e solicitou ajuda imediata. De nada adiantaram os esforços de Pombal, enviando embarcações com munição, dinheiro e suprimentos. Na medida em que Lisboa tentava revigorar a fortaleza para não deixá-la à própria sorte, em Marrakesh o sultão e mulá Mohamed entendia que era o momento certo para atacar. Silenciosamente, reuniu 75 mil combatentes, uma possante artilharia e ainda intimou todos os xerifes árabes de suas tribos para suscitar o pavor no jovem governador. Em janeiro de 1769, a rendição da cidade foi reivindicada sob mais de 200 disparos de granadas.
A essa altura, ressalta Paulo de Assunção, da USP, `"Mazagão não atendia mais aos interesses comerciais, marítimos, administrativos e religiosos de Portugal". Com isso, a decisão de abandonar a fortaleza tornou-se irrevogável.
No início de março, uma trégua de três dias ficou estabelecida entre as partes para a retirada dos moradores. Enquanto mulheres e crianças eram levadas a bordo junto com as riquezas da igreja e de documentos oficiais do governo, os homens esvaziavam casas, prédios públicos e destruíam tudo aquilo que pudesse cair nas mãos dos muçulmanos. Ao final, o ``espírito¿¿ da fortaleza deixou o litoral marroquino, provisoriamente repartido em 14 caravelas, rumo a Lisboa.
Ao ancorarem às margens do Rio Tejo, os mazaganistas não imaginavam o que seria de seu destino, mas o governo português, sim. O plano para a futura Mazagão já estava traçado. "A fuga do Marrocos coincidia com um perío-do em que a política portuguesa buscava intensificar o povoamento das fronteiras de sua colônia americana, havendo a necessidade de transferir mais gente para dominar o norte do Brasil¿¿, diz Marcos Albuquerque. Antes da longa travessia pelo Atlântico, os exilados tiveram de esperar oito meses até que a Coroa definisse o local e condições efetivas para que o projeto fosse estabelecido. Nesse ínterim, algumas pessoas fugiram e novos grupos, de camponeses e soldados, aderiram à empreitada. A frota em direção a Belém do Pará partiu em setembro de 1769. As primeiras embarcações traziam os colonos, o restante carregava mercadorias, materiais de construção, objetos de culto e recursos para viabilizar a Nova Mazagão na Amazônia. Nas palavras do historiador Paulo de Assunção: "Vestígios de um passado que seriam lançados como semente no novo local".
O recomeço
Em janeiro de 1770, Mazagão aportou no Brasil. Ao analisar cartas e registros da época, o professor Laurent Vidal ressalta que as caras novas que chegaram ao Pará foram muito bem acolhidas pelas autoridades locais. "Já em suas primeiras semanas em Belém eles encontram alimentos em abundância, um hospital bem aparelhado e habitantes satisfeitos em alojá-los." Temporária, a presença dos mazaganistas ali, até a reconstrução de sua cidade-forte, em Macapá, representava uma oportunidade financeira inesperada e vantajosa para a região.
O governo português aproveitou a hospitalidade dos anfitriões para aplicar um calote nos novos colonos. Como todos já haviam sido devidamente instalados, Portugal achou melhor atrasar e cortar, aos poucos, as pensões, a distribuição de escravos para o trabalho agrícola e o investimento com o transporte dos operários até a obra. Acreditava-se que a reconstrução da nova Mazagão levaria os cofres públicos à falência.
A situação se agravaria ainda mais à medida que o traslado das famílias para a Vila Nova de Mazagão ia sendo adiado. Os meses de espera logo evoluíram para anos, e, ao final de 1776, Belém ainda acolhia mais de 300 hóspedes. O restante das famílias foi separado e transportado para regiões próximas. Em comum, todos esperavam se reencontrar em uma cidade de estrutura espantosa. Um local que justificasse tantos atrasos. Pura expectativa. "A Vila Nova de Mazagão era precariamente erguida, a começar pelas casas modestas e de estrutura questionável", registrou o historiador Paulo de Assunção.
Com a morosidade no andamento das obras, não demorou muito para que o vínculo entre os antigos vizinhos mazaganistas se perdesse. A interação com os trabalhadores indígenas e moradores de Belém possibilitou o surgimento de comunidades mistas, com interesses e costumes próprios. De início, a situação não agradou as autoridades coloniais, receosas em terem suas terras invadidas por outras nações europeias, mas verificou-se que, tendo os nativos como aliados, a população se fotaleceria. O projeto seguia a proposta do complexo marroquino, mas teve de ser adaptado às feições tropicais da Amazônia e às práticas indígenas para melhor atender as necessidades da nova sociedade. A cidade-fortaleza se erguia como um monumento à resistência do homem na região inóspita da floresta. No entanto, a força da natureza logo se faria sentir.
A degradação
Tão logo o quarteirão com igreja e poucos edifícios públicos foi inaugurado, os habitantes começaram a chegar de barco. Mas o clima e as condições do local não ajudavam. Apavorados, os viajantes cortavam a mata fechada, sob o sol implacável, ensopados pela umidade e transtornados pelos mosquitos. Os que sobreviviam, ao chegar à curva do Rio Amazonas encontravam ainda o que parecia ser uma cidade-forte em construção. Um dos problemas dos mazaganistas é que não possuíam um sistema político bem organizado - disputas entre os líderes dos colonos e o governador eram constantes. Protestos e reivindicações contra os descasos por parte da Coroa aconteciam quase todos os dias.
Para se adaptar ao novo lar, não havia outra opção a não ser deixar de lado o passado militar e se adaptar à vida de camponês. Mas plantar naquela região pantanosa era uma tarefa desgastante. "Quando não o calor, era a vez da chuva e da umidade destruírem as colheitas, decomporem as casas feitas de palha e madeira e proliferarem as doenças", afirma o arqueólogo Albuquerque.
Em pedaços, Vila Nova Mazagão ainda suportou virar o século 19 antes de entregar os pontos. Sua sentença se consumou em 18 de outubro de 1828, com a instituição da Vila de Macapá como capital da região. Mas somente em 1833 os últimos 40 moradores da vila receberam uma notificação real que suprimia o nome da localidade, agora substituído pelo de "Regeneração".
O legado na floresta
Os cerca de 500 habitantes do atual município de Mazagão Velho, fundado a dezenas de quilômetros da extinta Vila de Nova Mazagão, herdaram de seus ancestrais, vindos do Marrocos, a festa de São Tiago, sobre batalhas entre portugueses e mouros. ``Esse tipo de festa, cuja origem remonta à época colonial, é muito difundido na América Latina¿¿, diz o historiador Laurent Vidal. "A conquista da América estava deliberadamente inscrita pelas coroas ibéricas no prolongamento da Reconquista." Realizado em julho, o evento atrai mais de mil pessoas vindas de Macapá, moradores ribeirinhos e famílias de mazaganistas dispersas na região - até na Guiana Francesa - que fazem questão de acompanhar as atrações. Ao longo de gerações, a missa, os bailes e as encenações folclóricas passaram por transformações. No início do século 20, ex-escravos que se reagrupavam em quilombos introduziram elementos da cultura africana à festa, como os orixás e as batucadas. Hoje, cabe aos mais jovens fazê-la evoluir. "As máscaras modernas, o Judas com o nome de George Bush, dão testemunho desse desejo", comenta Vidal. Mas até a tradição está ameaçada. O governo do estado do Amapá, que investiu R$ 150 mil nas descobertas científicas, agora promove marchas "ecoturísticas religiosas" no local dos sítios arqueológicos e pretende transportar a festa de São Tiago, com suas imagens e simbologias, para um museu de entretenimento. Mazagão, mais uma vez, está em apuros.
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/aventuras-historia/mazagao-cidade-atravessou-mar-752370.shtml