A droga, vendida livremente, tratava de dor de dente a depressão e contava com entusiastas como Sigmund Freud e o papa Leão 13
Déborah de Paula Souza
Sigmund Freud podia comprar cocaína em qualquer farmácia de Viena. O pai da psicanálise adorava o seu efeito erótico. Numa de suas cartas apaixonadas a Martha Bernays (com quem depois se casou e conviveu por 53 anos), escreveu: "Ai de você, minha princesa, quando eu chegar. Vou beijá-la até você ficar bem corada e alimentá-la até que fique rechonchuda. E se você for bem teimosa, verá quem é mais forte: uma delicada jovem que não quer comer o suficiente ou um grande e selvagem homem que tem cocaína no corpo". Em outras cartas, desculpou-se com a amada pelo ardor das confissões, alegando que a cocaína destravava sua língua.
De acordo com o psicanalista argentino Emilio Rodrigué, autor da biografia Sigmund Freud, o Século da Psicanálise, o médico vienense passou a consumir cocaína a partir dos 28 anos - e fez isso por mais de uma década. Não fosse seu ímpeto em elogiar a substância na fase inicial das pesquisas, teria lugar de honra na psicofarmacologia moderna, já que foi um dos pioneiros a experimentar e fazer registros científicos de psicoativos. No século 19, seu artigo Über Coca (Supercoca) sintetizou o clima de esperança dos cientistas com a nova droga. Freud recomendava o uso como estimulante, para distúrbios digestivos, fraqueza, no tratamento de dependentes de álcool e morfina, contra a asma, como afrodisíaco e, por fim, como anestésico. Seu estudo abriu o caminho para que seu colega Carl Koller entrasse para a história da medicina como o descobridor da anestesia local. Rodrigué diz, brincando, que Freud teria antecipado a Coca-Cola ao escrever um bilhete chamando o médico de "querido amigo Coca Koller".
Os primeiros testes da anestesia local de Koller foram feitos em uma rã - bastaram algumas gotas de colírio à base de cocaína nos olhos do bicho para que fosse operado sem trauma nem dor. O trabalho causou comoção numa convenção de oftalmologia em 1884. Koller levou a fama pela anestesia ocular, mas, no mesmo ano, nos Estados Unidos, o pai da cirurgia moderna, William Stewart Halsted (1852-1922), desenvolveu uma espécie de bloqueador neural. Com injeções de cocaína em alguns nervos, conseguia anestesiar determinada área. Publicou mais de mil casos bem-sucedidos de cirurgias indolores, mas como testava drogas em si mesmo, acabou viciado em cocaína e morfina.
No final do século 19, uma paciente de Freud morreu de overdose e, entre 1885 e 1990, novos relatos clínicos revelaram tudo o que a comunidade científica precisava saber para abandonar de vez o uso da cocaína como medicamento. A reputação de Freud só não foi destruída porque era impossível controlar abusos de pacientes. O "pó mágico" era consumido livremente, fabricado por grandes laboratórios e considerado um remédio de largo espectro - era encontrado até em forma de pastilhas para dor de dentes. Os laboratórios Merck e Parke Davis apresentavam a droga em versões variadas: pó, extratos fluidos, inaladores, sprays e tônicos. Além dos medicamentos, doses generosas de cocaína estavam presentes em cigarros e bebidas, como o Vinho Mariani e a Coca-Cola, que foi lançada em 1886 e só retirou o alcaloide da fórmula em 1903.
Drinque do papa
As propagandas do fim do século 19 pregavam que a cocaína "tornava os homens mais corajosos e enchiam as damas de vivacidade e charme". Para ter uma ideia da popularidade da droga, o papa Leão 13 (1810-1903) estampava o rótulo do Vinho Mariani, um poderoso coquetel à base de cocaína e álcool criado pelo químico francês Angelo Mariani em 1863 -, que se tornou a bebida predileta do Sua Santidade. O médico Howard Markel, autor de Anatomy of Addiction (Anatomia do Vício), afirma que Mariani foi um dos primeiros a fazer fortuna com a cocaína - o "drinque do papa" conquistou rapidamente intelectuais e celebridades. A lista dos admiradores inclui os escritores Julio Verne, Henrik Ibsen, Alexandre Dumas e Arthur Conan Doyle (o criador do detetive Sherlock Holmes, um usuário notório). Thomas Edison e o ex-presidente americano Ulysses S. Grant completam a lista. Antes de morrer de câncer na garganta, em 1885, Grant redigiu suas memórias sob o efeito desse "vinho tônico". E é muito provável que tenha exagerado as façanhas e os efeitos da bebida.
À venda: A cocaína, exposta em anúncios do fim do século 19
A moda da cocaína no século 19 não poderia ter acontecido se o princípio ativo da folha de coca não tivesse sido isolado por Albert Niemann em 1859. Três séculos antes, a planta de coca, in natura, já havia desembarcado na Europa por meio dos navegadores espanhóis. Talvez os deuses americanos, aos quais era consagrada (leia ao lado), tivessem tentado protegê-la do desastre, pois não fez nenhum sucesso entre os europeus. As folhas chegavam murchas e perdiam suas propriedades na longa viagem. Durante 3 séculos, permaneceu intocável, para uso exclusivo da comunidade andina - que a consome até hoje. Qualquer turista em Cuzco e Machu Picchu toma chá de folhas ou chupa balas de coca para driblar os efeitos perversos da altitude.
O primeiro país a proibir a cocaína foram os Estados Unidos, em 1914. No Brasil, a primeira lei que restringiu a droga, junto com o ópio e a morfina, chegou em 1921 - fruto de um acordo internacional firmado em Haia dez anos antes. A maconha foi proibida em 1930 e as primeiras prisões por porte de droga foram registradas em 1933, no Rio de Janeiro. Até então, não havia controle policial e o uso era tolerado em prostíbulos frequentados por "rapazes finos".
Mesmo proibida, a cocaína nunca deixou de ser consumida, claro. Apenas 3 países produzem coca: Peru, Colômbia e Venezuela. O Brasil participa do ciclo criminoso com o refino e a distribuição da droga. Nos anos 1970, novas leis tentaram combater o narcotráfico colombiano, que, sob comando de Pablo Escobar, era responsável por 80% da cocaína distribuída nos EUA. A droga ficava cada vez mais barata e combinou com o espírito competitivo dos negócios da década seguinte. Consumo e tráfico explodiram na década de 1980. "As drogas ilegais representam o terceiro mercado mais lucrativo do mundo. Só perdem para petróleo e armas", diz Ana Cecília Roselli Marques, pesquisadora do Instituto Nacional de Tecnologia e Ciência para Políticas sobre Álcool e Drogas. A proibição da cocaína mostra que os defensores da restrição de drogas que ainda são vendidas legalmente podem ter esperança.
A planta dos deuses
Os deuses devem estar loucos. Eles colocaram a folha de coca na Pacha Mama (a mãe Terra) para que pudesse curar os homens, animá-los para o trabalho e para as grandes travessias de montanhas e desertos. E também para que fizesse uma ponte entre homens e deuses. Essa era a crença das antigas tribos indígenas do Peru. No Império Inca (século 13), só a elite tinha acesso à respeitável planta do poder. Ela era então utilizada em rituais de cura, festas e funerais - existem registros de desenhos da folha em cerâmicas cerimoniais. Os sacerdotes do Sol mastigavam e queimavam folhas de coca em honra às divindades. E elas respondiam com fartas colheitas, saúde e proteção.
A coca é um arbusto que pode atingir até 3 m de altura. Produz um fruto vermelho e flores pequenas, mas é a folha que concentra poderes anestésicos e energéticos, que trazem a sensação de vigor e saciedade. Essas características, descobertas pelos indígenas, fazem parte da cultura peruana. Até hoje os camponeses têm o hábito de mascar folhas ou usá-las em infusões. Com a chegada dos colonizadores no século 16, o vice-rei da Espanha no Peru, Francisco Toledo, proibiu o uso entre os nativos. Voltou atrás ao perceber que trabalhavam muito mais sob o efeito da coca.
Crack, o barato mortal
A pedra de crack, resultado de uma pasta de cocaína em pó misturada com solventes (álcool, benzina ou parafina), surgiu nos bairros pobres de grandes cidades do EUA nos anos 1980, mas tem antecedentes em países andinos, onde anos antes já se fazia o "basuco", que chegou ao Brasil com o nome de paco ou oxi - basta trocar os solventes do crack por ácido sulfúrico ou querosene.
O crack costuma ser fumado - a versão de uso que se popularizou. A droga é barata e "eficiente". Uma pedra custa 5 reais no Brasil. Em 15 segundos uma baforada de crack provoca ondas de prazer e sensação de onipotência dez vezes maiores que a cocaína ao liberar endorfina no cérebro. A ilusão acaba logo e os "noias" ("noia" é o diminutivo da paranoia alucinatória provocada pela droga) fazem qualquer coisa para repeti-la - roubo, prostituição e desagregação familiar são alguns efeitos colaterais. No centro de polêmicas recentes entre a polícia e o sistema de saúde pública, não faltam divergências sobre o modo mais eficaz de combate e tratamento de dependentes. Pesquisa recente realizada pelo Datafolha revelou que 2% dos brasileiros com mais de 16 anos (cerca de 3 milhões de pessoas) dizem já ter experimentado a droga.
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br