6.8.13

A cobra fumou!

Filho de pracinha, o baterista e escritor João Barone relembra a corajosa e pouco conhecida atuação dos soldados brasileiros no front italiano da Segunda Guerra Mundial



A FEB num posto em Mozzano, na Itália: 1º Ten. Heraldo Portocarrero; cabo Francisco Coutinho; cabo Waldemar Húngaro e 1ºTen. Alceu Grisólia representando o Brasil na luta contra o nazismo

por João Paulo Arruda



No dia 16 de julho de 1944, os primeiros homens da Força Expedicionária Brasileira a desembarcar na Itália, em Nápoles, adentraram o teatro de operações italiano na Segunda Guerra Mundial debaixo de vaias. Eram 5.800 militares, que caminharam para Agnano, 25 quilômetros distante do porto, ouvindo gritos como tedesco maledetto (alemão maldito). João Barone, filho de pracinha, baterista dos Paralamas do Sucesso e autor do livro 1942 – O Brasil e sua guerra quase desconhecida, explica os motivos para a bizarra recepção: “O uniforme do Exército brasileiro lembrava um pouco os alemães e italianos no corte, na coloração esverdeada, no bibico (casquete militar) e nos muitos botões na parte da frente das jaquetas. Os cidadãos locais suspeitaram de que se tratasse de um contingente de prisioneiros alemães sendo transladados, o que gerou as demonstrações de hostilidade”.

O episódio seria utilizado, ao longo das décadas, por aqueles que insistem em desqualificar a presença brasileira em território italiano durante a Segunda Guerra, menosprezando, em relação a outros aliados envolvidos no conflito, a cota verde e amarela de sangue, suor e lágrimas. Porém, se a chegada não foi das mais bem-sucedidas, a partida, por outro lado, deixaria para trás histórias de vários sucessos que transcendem até os grandiosos feitos de armas, como a tomada do monte Castelo. Em algumas cidadezinhas italianas, dar uma lata de pêssegos em calda, ainda hoje, simboliza um gesto de amizade profunda. Os pêssegos eram americanos. O costume, hoje, é italiano. E o gesto foi tipicamente brasileiro, dos pracinhas da força expedicionária que dividiam as rações de guerra com a população então castigada pela guerra e passando fome.

No primeiro teatro de operações importante para a reconquista da Europa, os nazistas, com sua blindagem panzer, haviam triunfado em dezenas de batalhas. Os brasileiros, com suas armas, mas também suas latas de pêssego, foram decisivos para a vitória aliada. Naquelas localidades, onde muitos exércitos são lembrados pelos mortos que deixaram, os brasileiros são venerados.

O INÍCIO A Segunda Guerra Mundial começa de fato para o Brasil quando os navios sob nossa bandeira são atacados pelos submarinos do Eixo, italianos e alemães – o primeiro deles, em março de 1941; os demais, após janeiro de 1942, quando o Brasil interrompe relações diplomáticas com o Eixo. Em agosto de 1942, um pracinha da Força Expedicionária Brasileira, o soldado do 7º Grupo de Artilharia de Dorso Dálvaro José de Oliveira estava, com outros 95 militares, a bordo do vapor Itagiba, que zarpara do Rio de Janeiro com destino a Recife, com escalas previstas em Vitória e Salvador.

Quatro dias antes, três navios haviam sido afundados na costa de Sergipe. Na manhã do dia 17, quando já era possível avistar a costa e um certo alívio tomava conta da tripulação e passageiros, uma grande explosão foi sentida. Um torpedo alemão atingira o navio, que rapidamente foi a pique. Trinta e seis pessoas morreram. Dálvaro foi resgatado por um outro velho vapor, o Arará, que, em pouco tempo, também seria torpedeado. O submarino alemão U-507 havia ficado na área para terminar o serviço. Dálvaro se tornou náufrago pela segunda vez na mesma manhã. Alertados, o cruzador Rio Grande do Sul e aviões afugentaram o submarino nazista. O soldado Dálvaro foi resgatado novamente e o Brasil ganhou um pracinha.

As imagens dos corpos dos náufragos chegando à costa de Sergipe provocaram uma comoção generalizada. Depois de 742 mortes provocadas por ataques do Eixo, em sua maioria a alvos civis, o Brasil declara guerra às potências do Eixo em 22 de agosto de 1942.




Tropas brasileiras em uma barcaça britânica. De Nápoles, ponto de chegada da travessia do oceano, os pracinhas seguiam para Livorno, nessa foto datada de 6 de outubro de 1944

O Brasil estava em guerra. Depois dos ataques, Getúlio Vargas foi obrigado a se decidir de que lado ficaria. A decisão não foi tão simples, já que, como é sabido, Vargas tinha em seu gabinete germanófilos que pregavam a aproximação com Hitler e Mussolini. Por pouco, o país não ficou do lado errado da história. Mesmo depois da definição, quando se posicionou, houve quem torcesse ardentemente contra os pracinhas. Os primeiros grandes inimigos da Força Expedicionária Brasileira estavam aqui.

No envolvimento brasileiro no conflito, não faltam lances dignos de cinema. Aqui mesmo, ninhos de espiões dos dois lados proliferavam, enquanto o Exército americano mantinha contingentes em nosso território, especialmente no Rio Grande do Norte, ponto estratégico para patrulhamento do Atlântico. Mas foi no Rio de Janeiro que se desenrolou um dos enredos mais prosaicos. O luxuoso transatlântico Queen Mary, requisitado para o transporte de tropas, levava 8 mil soldados canadenses para a Austrália. Seu afundamento seria um terrível golpe. Mas os quinta-colunas foram neutralizados a tempo, e o espião alemão Jose Starzinski, que, do Leblon, passava coordenadas para aviões nazistas, acabou preso. O Queen Mary, depois da escala no Rio, mudou de rota e escapou do bombardeio inimigo.

FORMA -SE A FEB Oficializada a entrada do Brasil na guerra, começou a formação da Força Expedicionária Brasileira. Tendo optado pelos Aliados, Getúlio Vargas, atendendo aos anseios de parte da sociedade brasileira, fez questão de deixar marcada a participação verde e amarela no conflito com o envio de homens. Já não bastavam o suporte estratégico e as parcerias realizadas até então.

“Acima de tudo, existe a constatação de que a gente tomou parte numa guerra de verdade, para valer”, explica João Barone. “A participação do Brasil foi relativizada depois porque não mandamos milhões de homens. Tentou-se desinflar o papel real do Brasil. Mas tivemos gente morrendo sob fogo de metralhadora nazista.”

Não foi nada fácil montar a FEB, lembra Barone. O Ministério da Guerra, chefiado pelo general Eurico Gaspar Dutra, pretendia enviar 100 mil homens em três divisões. No fim, acabou sendo possível reunir pouco mais de 25 mil. Faltaram voluntários. A maior parte foi convocada. Praças muito jovens, com pouca ou nenhuma experiência militar, eram chamados às pressas. Esse foi o caso de João de Lavor Reis e Silva, pai de João Barone, que precisou deixar o emprego nos Correios e Telégrafos de São Paulo, além “dos violões e das serestas”, diz o baterista dos Paralamas, em 1942.

Não bastassem as dificuldades logísticas, havia ainda a desconfiança dos líderes estrangeiros. O presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, apesar de seu firme apoio às tropas brasileiras, suspeitava em dado momento que a ditadura Vargas estava mais interessada em receber armas e equipamentos militares dos americanos do que realmente entrar em batalha. Não à toa, como seria lembrado pelos críticos da FEB, os brasileiros chegaram à Itália desarmados.




O Ministro da Guerra Eurico Gaspar Dutra (esquerda) e o general Mascarenhas de Moraes, comandante da Força Expedicionária, posam no alçapão de um tanque no qual fizeram viagem de inspeção à IV Corporação

O primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, também se mostrava relutante em ter mais uma nação envolvida no teatro de operações italiano – já eram cerca de 20, de poloneses a franceses livres. Mas Churchill acabou convencido por Roosevelt, que havia dado sua palavra a Getúlio Vargas.

Os problemas para os pracinhas começaram já no treinamento. Como conta João Barone, “os novos equipamentos dos americanos não chegavam em quantidade suficiente para treinar o efetivo da FEB, problema que se estendeu de janeiro a julho de 1944, às vésperas da partida do primeiro escalão para a Itália”. O 9º Batalhão de Engenharia, situado em Aquidauana, Mato Grosso do Sul, foi obrigado a improvisar nos treinamentos de prospecção de minas terrestres. “Os integrantes do batalhão pediram à população que doasse todas as latas de goiabada disponíveis, que seriam utilizadas para simular minas enterradas.”

A COBRA FUMOU Mas, de qualquer maneira, a cobra ia fumar. O termo, aliás, surgiu na época. Alguns dizem que os brasileiros, em suas folgas em São Paulo, iam para a praça da Sé e lá se divertiam com um caixeiro-viajante que se exibia fazendo uma cobra, de fato, fumar. Também corria a lenda, improvável, de que o próprio Adolf Hitler teria dito que era mais fácil uma cobra fumar do que os pracinhas brasileiros lutarem na guerra. O fato é que a FEB saiu do Brasil avisando que a cobra ia fumar. E fumou.

Chegando à Itália, a Força Expedicionária Brasileira foi incorporada ao XV Grupo de Exércitos Aliados. Por lá passaram nomes lendários, como o do general americano George Patton, um terror tanto para os soldados nazistas quanto para seus próprios combatentes (entre outros feitos, Patton enfrentou uma corte marcial após esbofetear um soldado americano com neurose de guerra, internado num hospital de campanha).

Os 655 homens do 9º Batalhão de Engenharia eram os principais responsáveis por desativar as mortíferas minas terrestres alemãs, que mataram e mutilaram muitos pracinhas. Entre os terríveis engenhos estavam as chamadas booby traps (armadilhas para bobo). “Eram cargas explosivas presas por um fio ou dispositivo de disparo a um chamariz qualquer, uma pistola, um capacete, um binóculo ou qualquer outro objeto que atraísse a atenção dos incautos, que detonavam o explosivo ao tocá-lo.”

por João Paulo Arruda
Leia essa reportagem na íntegra na História Viva 117
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/a_cobra_fumou_.html