Testamentos e inventários de escravas alforriadas revelam talento para os negócios com base nos ensinamentos que trouxeram da terra natal.
Em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, confira abaixo um artigo da edição deste mês da Revista de História da Biblioteca Nacional sobre as “Sinhás pretas”, no qual a historiadora Sheila de Castro Faria conta como as escravas alforriadas usavam ensinamentos de sua terra natal para encarar o mercado de trabalho. Este é apenas um dos artigos doDossiê África, que conta ainda, por exemplo, com Alberto da Costa e Silva narrando a história dos escravos brasileiros que eram obrigados a deixar para trás suas origens e tradições; uma entrevista exclusiva com Paul Lovejoy, referência certa nas pesquisas sobre a escravidão no próprio continente africano; João José Reis e o caso da Revolta dos Malês, em Salvador, que contou com cerca de 600 combatentes africanos de origem muçulmana; além de vários outros artigos, do dossiê e muito mais, que você encontra somente nas bancas.
Aproveite também e visite outras edições da RHBN que contam, por exemplo, como a solteirice feminina foi opção de vida condenada e estereotipada durante séculos, no artigo “Ficando para titia”, da historiadora Cláudia de Jesus Maia. Destacamos também “As sementes do feminismo no Brasil”, onde Constância Lima Duarte fala de Nísia Floresta, uma das primeiras mulheres a publicar na grande imprensa brasileira, e como ela abalou as estruturas da sociedade patriarcal brasileira do século XIX ao defender a valorização da mulher.
Sinhás pretas
Por Sheila de Castro Faria
Imagem: Fundação Biblioteca NacionalAna foi escrava de outra mulher, preta forra, ambas da Costa da Mina. Talvez como sua ex-senhora, talvez ensinada por ela, conseguiu se alforriar pagando pela liberdade com recursos de sua “própria indústria e trabalho”, conforme declarou em seu testamento, de 1798. Chamava-se Ana Teixeira Guimarães e tinha mais de 60 anos quando morreu, em Mariana, Minas Gerais.
A documentação relativa ao período escravista do Brasil permite pouca observação sobre a vida material e as escolhas dos escravos em seu cotidiano. Uma das formas de se vislumbrar alguns aspectos é por meio de inventáriose testamentos. Geralmente feitos por pessoas com recursos, os documentos eram ditados pelos doentes desenganados. Poucos meses depois do falecimento, realizavam-se os inventários, quase uma fotografia dos bens materiais dos proprietários no momento da morte. Tudo era descrito, até mesmo objetos sem valor.
O conjunto de dezenas desses inventários permite entrever padrões de certos grupos sociais, como o das pretas forras, mulheres que conseguiram libertar-se da escravidão e acumular bens.
Ana teve inventário porque possuía bens, e bens significativos. Era dona das casas de sobrado onde morava, em frente à Capela da Ordem Terceira de São Francisco, avaliadas em 310 mil réis, valor pelo qual poderia comprar pelo menos três jovens escravos recém-chegados da África. Tinha cinco escravos: quatro mulheres e um homem da nação Angola. Uma delas era Juliana, da Costa da Mina como ela, para quem deixou, divididos em quatro partes, 76.800 réis pelo tempo de seis anos a contar do dia de seu falecimento. Em seis anos, vivendo de seu próprio trabalho, Juliana tinha de completar o valor estipulado.
Ana deixou como herdeira de seus bens a “cria” de sua escrava Juliana, sua afilhada Francisca, de dois anos, liberta no batismo. Deixou de “esmola” a Juliana uma morada de casas cobertas de telhas.
Ser proprietária de casas e escravos era uma situação já bastante confortável para essas mulheres. Mas Ana possuía outros bens: braceletes, brincos, anéis, laços e botões de ouro adornados com pedras preciosas, como diamantes e topázios, e colheres e garfos de prata, num valor suficiente para a compra de dois escravos jovens: 197.200 réis.
Ser proprietária de casas e escravos era bastante confortável, mas Ana possuía também braceletes e botões de ouro adornados com diamantes e topázios
Imagem: Fundação Biblioteca NacionalTambém era dona de outros bens requintados e restritos a poucos afortunados, de mercadorias importadas, provavelmente destinadas ao comércio, não sendo necessariamente para seu próprio uso. Uma delas era uma imagem em marfim de Santa Rita, objeto raro até mesmo entre os mais ricos da região. De seu inventário constam ainda fronhas e lençóis de linho, colchas e toalhas de algodão, saias de veludo carmesim e preto e de seda branca, muitas camisas de linho e de algodão, vestimentas de cambraia, de lemiste (tecido fino de lã inglês), chapéus elegantes, uma variedade incrível de lenços de diversos tecidos, pintados com flores ou aves na Ásia ou na Europa. Saias de veludo carmesim e preto não eram pouca coisa: o valor das duas saias somava 30 mil réis, um terço do preço de um escravo jovem.
Até os objetos feitos com materiais do Brasil eram dos melhores: sete catres – um tipo simples de cama –, dois espelhos, mesas grandes e pequenas de jacarandá, muitas com pés torneados, gavetas e fechaduras.
Mesmo sabendo que certas palavras da época não tinham o mesmo significado de hoje, algumas eram de difícil entendimento. Ana tinha três “pratos de pó de pedra”. Segundo Luís Frederico Antunes, a louça europeia imitando padrões decorativos orientais era denominada de “louça de pó de pedra”. Mais interessante ainda era “prato de guardanapo da Índia”. Ana tinha oito deles. Esses pratos constam de vários inventários de mulheres forras de Mariana e figuram nas cargas de naus da Carreira da Índia. Eram pratos finos, talvez de porcelana, usados nas refeições. Por serem trazidos em navios da Carreira das Índias, eram considerados como da Índia, embora feitos na China.
Mercadorias importadas da Ásia ou da Europa eram bens consumidos pelas elites. Mas, em meio a este grupo social, devem ser considerados outros estratos da população, como o formado por essas pretas forras, nascidas na África e transferidas para o Brasil em idade suficiente para terem adquirido a cultura de seus povos de origem. Podiam não ter prestígio social na sociedade escravista, mas tinham riqueza. Também compunham uma elite.
Suas escravas eram quase sempre mulheres nascidas na África. Em suas casas, era comum que só houvesse mulheres: as “sinhás pretas” viviam com suas escravas. A maioria não tinha filhos. Deixavam seus bens em herança para ex-escravas ou para as “crias”, ou crianças nascidas em suas casas, filhas de suas escravas.
Foram as mulheres, com suas redes de comércio, que dinamizaram a economia de regiões da África, e continuaram a fazer o mesmo nas Américas
Essas escolhas eram delas ou imposições da sociedade? Não tinham filhos porque foi impossível ou porque não quiseram? Eram proprietárias de mulheres em vez de homens porque eram mais baratas? Por que investiam seus recursos em joias, roupas caras e louças importadas? Cada vez tenho mais certeza de que eram escolhas próprias e pautadas por suas culturas de origem.
Em várias formações africanas havia uma rígida divisão sexual do trabalho. As mulheres eram responsáveis pelo preparo das comidas e pelo comércio de produtos agrícolas, de alimentos e das mais variadas mercadorias. Mulheres comerciantes predominavam nos mercados e feiras das aldeias e cidades em muitas regiões que tiveram contato com os europeus. A pimenta era um dos produtos mais procurados por eles na costa da África desde os primeiros tempos da expansão marítima, e eram as mulheres que monopolizavam seu comércio. Conclusão: ficaram ricas. Com o tempo, incorporaram novos produtos, provenientes de outras praças mercantis.
Interceptavam comerciantes, a fim de comprar barato e revender com lucro suas mercadorias; participavam do comércio de longa distância, inclusive por meio de procuradores, e intermediavam os produtos do tráfico de escravos português, como a cachaça, o tabaco e os panos das Índias. Um exemplo foi Madame Tinubu, que atuou em Badagry e Lagos, no golfo de Benim, na segunda metade do século XIX, onde negociava sal e tabaco, e era intermediária dos comerciantes de escravos do Brasil. Juntou grande fortuna, era dona de muitos escravos e ficou conhecida por seus opositores como “o terror de Lagos”.
Nem sempre tão poderosas como Tinubu, mas com redes comerciais importantes, foram as mulheres que dinamizaram a economia de muitas regiões da África e continuaram a fazer a mesma coisa nas Américas.
Explica-se a escolha de escravas, e não de escravos, por parte das pretas forras no Brasil: as cativas atuariam no comércio ao lado ou a mando delas. Não tinham filhos porque não queriam procriar na diáspora. Ana, como muitas outras, deixou herança para uma afilhada, Francisca, e uma casa para a mãe da menina, certamente para que cuidasse dela e lhe transmitisse ensinamentos. Juliana provavelmente se transformaria em uma nova Ana ao usufruir os recursos. Ana tinha entre seus bens trempes e fogareiros, tachos e apetrechos de cozinha, utilizados na preparação e na venda de alimentos. A quantidade de catres sugere que sua casa pode ter sido uma hospedaria, incluindo o fornecimento de comida.
A entrada de novas mercadorias nesse comércio não assustava as comerciantes: incorporavam as novidades às suas transações. Os objetos nos quais decidiram investir seus recursos eram luxuosos no Brasil: joias, tecidos e louças importados do Oriente. Eram parte de um comércio de longuíssima distância. Uma delas entregou tecidos a um comerciante para que lhe trouxesse uma escrava da África.
São impressionantes a capacidade de adaptação e o desempenho de mulheres como Ana Teixeira de Guimarães. Chegaram ao Brasil à força, nas condições mais adversas e no pior lugar social possível. Essas “Anas” conseguiram resultados que fariam inveja à maioria dos homens que nunca foram escravos, que se mudaram para a América por iniciativa própria, em busca de enriquecimento, e tiveram as expectativas frustradas.
13.3.12
Sinhás pretas
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