uma análise eliasiana Marcel Luis de Moraes Oliveira[1] Resumo: O escopo desse artigo é desenvolver uma análise sobre a formação do indivíduo na sociedade moderna tal como esta é concebida pelo sociólogo alemão Norbert Elias. Este autor fundamenta sua teoria na relação indissociável entre o indivíduo e a sociedade e nos processos interacionais e históricos resultantes da civilização que configuram a personalidade e as ações do indivíduo ao mesmo tempo em que moldam a sociedade. Palavras-chave: Norbert Elias; Indivíduo; Sociedade; Civilização THE FORMATION OF THE INDIVIDUAL AT MODERNITY: an eliasian analysis Abstract: This article aims to develop an analysis about the formation of the individual at modern society as it is designed by the German sociologist Norbert Elias. This author’s thesis is based on the inseparable relation between the individual and society and on the interactional and historic process resulting from the civilization that configures the personality and the actions of the individuals at the same time as it molds the society. Key words: Norbert Elias; Individual; Society; Civilization É apenas na sociedade que a criança pequena, com suas funções mentais maleáveis e relativamente indiferenciadas, se transforma num ser mais complexo. Somente na relação com outros seres humanos é que a criatura impulsiva e desamparada que vem ao mundo se transforma na pessoa psicologicamente desenvolvida que tem o caráter de um indivíduo e merece o nome de ser humano adulto. (…) Somente ao crescer num grupo é que o pequeno ser humano aprende a fala articulada. Somente na companhia de outras pessoas mais velhas é que, pouco a pouco, desenvolve um tipo específico de sagacidade e controle dos instintos. (…) tudo isso depende da estrutura do grupo em que ele cresce e, por fim, de sua posição nesse grupo e do processo formador que ela acarreta. (ELIAS, 1994a, p.27) Para o sociólogo alemão Norbert Elias, a noção de indivíduo deve ser analisada dentro de um contexto mais amplo que é a relação entre indivíduo e sociedade, quebrando qualquer possível dicotomia e/ou antagonismo entre os dois termos. Segundo Elias, o indivíduo não pode ser considerado em seu isolamento, tampouco a sociedade pode ser considerada substantivamente. Até então e segundo o próprio autor, esta relação era disputada por duas correntes antagônicas que pretendiam explicar o papel do indivíduo na sociedade: uma delas compreende a sociedade como produto da racionalidade humana, criada a partir de determinado planejamento por indivíduos específicos e com objetivos bem traçados; a segunda linha, em oposição à primeira defende o indivíduo como elemento passivo de um conjunto que segue sua evolução de maneira independente. Elias fornece então sua compreensão sobre essa relação, inicialmente definindo o termo sociedade, tema que possui uma variedade de significados e nem sempre é definido de maneira clara, como uma rede de funções que as pessoas exercem umas sobre as outras de maneira interdependente: cada pessoa singular está realmente presa; está por viver em permanente dependência funcional de outras; ela é um elo nas cadeias que ligam outras pessoas, assim como todas as demais, direta ou indiretamente, são elos nas cadeias que as prendem. Essas cadeias não são visíveis e tangíveis, como grilhões de ferro. São mais elásticas, mais variáveis, mais mutáveis, porém não menos reais, e decerto não menos fortes. E é a essa rede de funções que as pessoas desempenham umas em relação a outras, a ela e a nada mais, que chamamos “sociedade” (ELIAS, 1994a, p. 21). É importante ressaltar que essa rede de funções é um todo produzido historicamente – um conjunto de condições históricas específicas foi necessário para essas redes se configurassem dessa maneira e esse é um ponto-chave para compreensão do pensamento eliasiano. Elias estabelece relações entre a constituição do Estado e a formação da consciência e autocontrole individuais, explicitando como a sociedade transforma, ao longo de seu desenvolvimento, a coação externa em auto-coação. A sua segunda obra Sociedade de Corte (1987), atesta a grandeza da visão e transformação sociais, sobretudo, da esfera das relações entre Estado e individuo que ele examinou, com base em sua teoria das civilizações (ALVES, 2009, p.5). Decorrente dessa configuração social e produto do devenir histórico, Elias (1994a) afirma que a própria noção de “eu” constitui a expressão de uma singular conformação histórica do indivíduo pela rede de relações, por uma forma de convívio dotada de uma estrutura muito específica (p. 23). Ou seja, o surgimento de um self, de uma consciência de si mesmo interna e irredutível à rede social “corresponde à estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo civilizador” (Op. cit., p. 32). De maneira simplificada, podemos definir o self como a capacidade humana, somente desenvolvida pela socialização, de se ver a si próprio através dos olhos alheios ou, simplesmente, de perceber e sentir o próprio ego como objeto, além de sujeito (VILA NOVA, 2009, p.133) A sensação de uma unidade interior, isolada e independente da sociedade é produto dessa evolução, daí a necessidade funcional dos termos indivíduo e sociedade e sua aparente (e ilusória) dissociação. Essa evolução, que não necessariamente indica progresso, corresponde às mudanças estruturais que aconteceram na sociedade a longo prazo e está relacionado ao desenvolvimento da capacidade humana de síntese e representação simbólica, entrelaçada a interiorização das limitações e autocontrole dos impulsos, sob o efeito das transformações provocadas pela formação do Estado Moderno. As transformações gerais sofridas pelas sociedades acarretam em alterações ocorridas nas estruturas de personalidade dos indivíduos que a formam. “As estruturas de personalidade e da sociedade evoluem em uma inter-relação indissolúvel” (ELIAS, 1994b, p. 221). Para o autor, a mudança “nas estruturas de personalidade é um aspecto específico do desenvolvimento de estruturas sociais” (Op. cit., p. 221). Esta civilização[2], para Elias, constitui em mudanças na conduta e sentimentos humanos rumo a uma direção muito específica. Esse processo não é racional, no sentido que não é planejado e tampouco irracional, considerando que não surgiu de maneira incompreensível como uma mera sequência de mudanças caóticas e aleatórias. É um processo contínuo, ainda não acabado e sem a possibilidade de definição de uma causa única ou algum tipo de ponto inicial. Considerando a continuidade do processo, a progressiva diferenciação social e o crescente aumento das divisões e especializações entre as funções[3], Norbert Elias (1994a) afirma que quanto mais essa divisão avança numa sociedade e maior é o intercambio entre as pessoas, mais estreitamente elas são ligadas pelo fato de cada uma só poder sustentar sua vida e sua existência social em conjunto com muitas outras (p. 44). Em outras palavras, a civilização aumenta também os níveis de interdependência e individualização dos indivíduos participantes do grupo. Esses níveis variam de grupo para grupo e a sociedade industrial moderna, marcada por um alto grau de complexidade (VELHO, 1994), é onde se percebe o nível de especialização maior do que em qualquer outra época histórica da humanidade (VIANA, 2001). O grau de especialização das funções na sociedade moderna pode ser percebido na quantidade de tempo dispensado na preparação das pessoas para o mercado de trabalho, sob a forma de instituições educadoras. Essa dependência resultante da especialização crescente entre as pessoas molda suas condutas e seus hábitos que são cada vez mais pautados nos semelhantes e na expectativa em relação a suas reações – num processo de domínio dos seus impulsos e paixões e policiamento do próprio comportamento, uma vez que as pessoas passam a ser obrigadas a viver de maneira pacífica e são constantemente observadas pelas outras (controle social). Esse mecanismo, identificado por Elias (1994b) como autocontrole passa então a fazer parte da personalidade do indivíduo, num processo de internalização concomitante a civilização que transformava as ações conscientes dos indivíduos em ações cada vez mais inconscientes: o controle mais complexo e estável da conduta passou a ser cada vez mais instilado no indivíduo desde os seus primeiros anos, como uma espécie de automatismo, uma autocompulsão à qual ele não poderia resistir, mesmo que desejasse (Op. cit. pp. 195-196). Além de as ações se tornarem cada vez mais inconscientes e pautadas no outro, a civilização traz uma série de modificações na estrutura da personalidade e identidade do indivíduo – processo chamado de psicologização: A aventura que é o pensamento independente altamente individualizado, a postura através da qual a pessoa prova que é uma “inteligência criativa”, não tem como precondição apenas um “talento natural” individual muito particular. Ela só é possível dentro de uma estrutura específica de equilíbrios de poder; sua precondição é uma estrutura social bastante específica. E depende, além disso, do acesso que o indivíduo tem, numa sociedade assim estruturada, ao tipo de aprendizagem e ao pequeno número de funções sociais que, elas apenas, permitem desenvolver-se sua capacidade independente de reflexão (ELIAS, 1994b, p.232). O indivíduo Eliasiano é um ser resultante de todo seu contexto histórico-social e não pode ser estudando desassociado deste contexto, tampouco pode ser compreendido fora das relações sociais que moldam suas funções psicológicas. Produtos e produtores do meio em que estão inseridos, “ninguém dúvida de que os indivíduos formam a sociedade ou de que toda sociedade é uma sociedade de indivíduos” (ELIAS, 1994a, p. 16). Para compreendê-lo é necessário compreender como se deu a evolução nas estruturas e nas normas de conduta social que controlam as pulsões dos indivíduos, conformando hábitos culturais civilizados e padrões de relacionamento que são internalizados pelos indivíduos e reproduzidos quase automaticamente. O aumento no nível de autocontrole dos impulsos “selvagens” acaba por determinar uma “segunda natureza”, que é parte constitutiva da personalidade dos indivíduos e tem sua estrutura determinada pelas configurações sociais existentes e pelas instituições civilizatórias, como a família, escola, trabalho, etc. Essa modificação na personalidade e na maneira como o indivíduo percebe e se relaciona com o mundo, com si mesmo e com os outros, por sua vez, molda suas relações com os outros indivíduos, alterando, num processo contínuo, a estrutura da sociedade. [1] Graduando em Ciências Sociais pela Fundação Universidade Federal do Vale do São Francisco. [2] O termo civilização aqui está sendo usado na concepção eliasiana e indica o processo civilizador, não um estado que, uma vez alcançado, permanece estático. [3] Aqui é possível observar uma aproximação das idéias de Norbert Elias com as de Émile Durkheim em Divisão do trabalho social. Fonte:Referências bibliográficas