15.12.11

Abolição - Contra a corrente, a cultura negra floresce

Em 1902, o afro-descendente Rodrigues Alves assumia a Presidência da República. No entanto, foi exatamente na gestão desse afro-descendente que o Brasil começou a pôr em prática, a partir de sua capital, um programa cultural visando europeizar-se de vez. Desde a abolição, a elite se empenhava em construir a nação que sempre pretendeu. Nela, a cultura africana e mesmo a presença negra eram indesejadas. Afinal, não era animador pensar no futuro de um país de “selvagens inferiores” e “negros boçais e degenerados”, nas palavras de um literato como José Veríssimo (1857-1916).

Apesar disso, os descendentes dos antigos escravos buscaram a auto-afirmação e a inclusão social por meio de suas práticas culturais. O tempo que transcorreu da abolição até o recenseamento da população, em 1920, foi, para artistas e intelectuais afro-descendentes, um período de intensa atividade. Escrevendo e atuando em dezenas de montagens teatrais em circos cariocas e pelo Brasil, Benjamin de Oliveira, o “palhaço negro”, cria o teatro popular brasileiro, tão importante à época quanto a televisão em nossos dias. Da mesma forma, o período marca o apogeu de Eduardo das Neves, adversário porém amigo de Benjamin; da compositora Chiquinha Gonzaga; do compositor e regente Paulino Sacramento; do jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, pioneiro da crônica carnavalesca; de Zeca Patrocínio, pioneiro do cinema brasileiro; de Hemetério dos Santos, autor da primeira gramática da língua portuguesa, bem como o surgimento de Pixinguinha e Grande Otelo, para ficar só nesses exemplos.

Nessa época, se fortalecem e se difundem no eixo Salvador-Rio de Janeiro, por intermédio da ialorixá Mãe Aninha, as bases do culto aos orixás jeje-nagôs, o mais forte traço da africanidade brasileira. Enquanto isso, os batuques bantos recriados no meio rural completam o amálgama do qual nasceu o samba.

Era a cultura brasileira se plasmando pelas mãos da “gente de cor”. Logo depois, todo esse universo de ações e intenções seria apropriado, e mais tarde sufocado, pela indústria cultural globalizada.

Na cena cultural brasileira de hoje, pretos e mulatos somos, quando muito, coadjuvantes, contando-se nos dedos aqueles de nós que chegam ao protagonismo. E dos que chegam, boa parte tem que abrir mão de sua essência e de sua afro-descendência, tolhidos por modernas formas de escravidão, cativos da mídia e do mercado – que ainda nos querem do jeito que a sociedade brasileira nos queria cem anos atrás.

Nei Lopes é compositor, escritor e autor do livro Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana (Selo Negro Edições, 2004).

(RHBN. Nº 32. Maio 2008. P. 22)

Revista de História da Biblioteca Nacional