imundo Donato do Prado Ribeiro
Vivemos a emergência da velocidade e do excesso de informações em nossa contemporaneidade, cremos que a premissa dessa emergência é indiscutível em nosso cotidiano. Eventualmente encontramos um discurso falacioso que atribui às tecnologias da informação uma responsabilidade pela frieza, pelo distanciamento e pela velocidade que impõem um ritmo que distancia os indivíduos de um convívio social mais amplo e rotineiro.
Podemos considerar que as conseqüências do uso das novas tecnologias da informação têm propiciado, junto às ciências humanas, questionamentos de que essas tecnologias estariam forjando a emergência de uma nova concepção dos lugares de memória, propiciada pela digitalização de dados e imagens, e também pela suposta capacidade infinita de armazenamento de dados.
A tensão posta entre as ciências humanas e as novas tecnologias da informação engendra várias possibilidades de investigação, uma vez que, há de se reconhecer, as novas tecnologias da informação causam um grande impacto ao provocar as acuidades dos sentidos. Assim, mais do que qualquer outra tecnologia em qualquer outra época, a da informação, acrescida da velocidade sem igual, altera, além da percepção do tempo e do espaço, também o imaginário de uma sociedade, acenando para a possibilidade de uma realidade virtual.
Depreende-se dessa afirmação que as novas tecnologias da informação estão forjando, frente à cultura histórica e aos lugares de memória, novas concepções ou novos sentidos para algumas categorias das ciências humanas, tais como: indivíduo, sociedade, as habilidades de leitura e de escrita e as de memória. O termo "cultura histórica", aqui utilizado, parte da conceituação do historiador Jacques Le Goff. O sentido desse termo é muito específico e não visa sobrepor a história às demais áreas de conhecimento que lidam com a cultura. O termo se estabelece numa busca pela nomeação de tudo aquilo que, nas sociedades, constitui ou produz práticas e ou discursos que se combinam no estabelecimento da relação de uma historicidade com o passado. Ou seja, o próprio sentido da história nas sociedades é uma construção respondendo a uma cultura, esta que também é constituída historicamente.
Construída historicamente, a nossa contemporaneidade tem no tempo e no espaço uma redefinição daquela erigida no decorrer das sociedades industriais. Redefinição esta que se coloca na própria inteligibilidade do sentido do tempo e do espaço, que há muito deixou de significar os limites postos pelas fronteiras de um bairro, de uma cidade ou de um país.
Em qualquer tempo, a memória é evocação do passado, o tempo que ficou perdido e não voltará mais. A lembrança e o esquecimento são componentes da memória, um não existe sem o outro, no processo de atualização do passado, quando evocado. É a memória que nos dá a sensação de pertencimento e existência, daí a importância dos lugares de memória para as sociedades humanas e para o indivíduo.
Essas imagens diferem das apresentadas pelas novas tecnologias da informação na nossa contemporaneidade, no que diz respeito à memória. Nestas, o acesso à memória da máquina é feito de maneira aleatória, seu acesso independe de seqüência e ordem. Os dados informacionais são peças dispostas de modo a permitir diferentes combinações de informações as quais, ao mesmo tempo, podem vir a homogeneizar essas informações.
Reconhecemos que a memória é sempre seletiva, o que não é diferente com a memória informacional; mas a questão aqui é que a memória dos grupos e dos indivíduos é marcada pela heterogeneidade e diversificação nas seleções, mediadas pelas mais diferentes naturezas, enquanto que, com a possibilidade oferecida pelas novas tecnologias, ela poderia tornar-se una, a partir da seleção daqueles que controlariam as tecnologias de recepção e distribuição de informações.
As tecnologias da informação quase sempre são apresentadas no âmbito de um museu de grandes novidades, com os últimos lançamentos tecnológicos, quando reconhecemos que, para além das inovações tecnológicas, essas tecnologias estão proporcionando novos questionamentos e construindo novos objetos e novos problemas também para as ciências humanas. Isso significaria, em certa medida, reconhecer a instituição da informática - não apenas como tecnologia, mas como linguagem e, como tal, oferecer-nos-ia uma memória informacional automatizada, como aquela capaz de acumular, homogeneizar e traduzir a memória social. Introduzindo mudanças nos mais diferentes campos de atuação, percepção e construção da memória do homem contemporâneo, a informática poderia construir um novo sentido para a individualidade, ou destituí-la.
A memória informacional oferece um modelo extremamente homogeneizador, aparentemente satisfatório e competente; daí a importância das chamadas memórias subterrâneas na nossa contemporaneidade e dos defensores dos códigos livres na rede com seus trabalhos de subversão e de resistência a uma perspectiva política que aposta numa sociedade "globalizadora", que justifica a "evolução", o "progresso" a qualquer custo e tenta impor uma idéia apaziguadora, neutra e objetiva de ciência e tecnologia.
Confrontamo-nos assim com a tensão cultura/história - tecnologia da informação, já que impõe-se uma nova possibilidade de memória que não é aquela calcada na tradição dos documentos e da oralidade, como também na da seleção e do esquecimento; mas sim, a que oferece pela rede a capacidade da democratização das informações e de realização plena de um novo humanismo através das novas tecnologias da informação, da velocidade eficiente e dos bytes.
Ao reconhecermos que as novas tecnologias da informação inserem-se dentro de uma história e de uma cultura, reconhecemos que elas incorporam e/ou traduzem todas as grandes tensões postas, pelo princípio fundante da velocidade, nas relações de poder do cotidiano. São relações que tensionam novas percepções sensoriais do espaço, do tempo, das imagens e que concomitantemente possibilitam também tensões nos mais diferentes campos de atuação, percepção e construção da memória e dos lugares de memória, em última palavra, nas dimensões da "cultura histórica".
Compreendemos que as novas tecnologias da informação estão alterando as relações da nossa contemporaneidade com a cultura histórica, mas esse reconhecimento mais do que encerrar o inevitável, recoloca justamente outros movimentos em nossa contemporaneidade, que podem ser lidos, ainda que com equívocos, modalidades de resistência e debates, que se presentificam nas práticas discursivas presentes nos embates acadêmicos, nos movimentos sociais, nas propostas de musealização e mesmo nas falas que atribuem ao nosso tempo a alcunha de "sociedade do esquecimento", dentre outras. São expressões que trazem em seus interiores paradoxos inerentes a todo campo discursivo em disputa.
Disputas que nos instigam e nos dão a sensação de não-pertencimento, com olhares-caleidoscópio, procurando lugares de memória que fazem sentido para a nossa contemporaneidade. Oscilamos pelo temor entre soltar ou manter Prometeu acorrentado e, diante desse dilema, jogamos para o passado uma nostalgia de um mundo que era diferente, idealizado numa calmaria e numa docilidade nas relações; quando não, criamos projetos de futuro, utopias da plena realização, cujo recurso seria o desenvolvimento das novas tecnologias, desdobrando-se em variados mundos.
O esquecimento é algo inerente e constante nas mais diferentes culturas. Ele ocorre por diferentes questões: mediações entre os grupos, lutas e disputas. Às vezes o esquecimento pode ser necessário para a reconciliação e o perdão, quer para os indivíduos, quer para as comunidades recuperarem suas vidas. A capacidade ilimitada de armazenamento de registros, longe de significar a plena realização da memória dos grupos sociais ignora a memória destes grupos e indivíduos, uma vez que intenciona uma outra concepção de memória, qual seja, exclusivamente compreendida como registros, contrapondo-se à dos indivíduos e grupos que pressupõe lembranças e esquecimentos.
São essas várias facetas que compõem os conflitos que regem a cultura histórica em nossa contemporaneidade. As novas tecnologias da informação e a cultura histórica, em nossa contemporaneidade, não estão divorciadas nas suas relações, mas sim aproximam-se e fazem história e cultura.
Vislumbramos em nossa contemporaneidade, com um temor muito grande, o futuro, diante das incertezas do passado; porém, o inferno ou o céu não estão no futuro. Para Calvino, num determinado momento da obra As cidades invisíveis, ao tratar da possibilidade da existência do inferno, argumenta que o inferno não é algo que será, mas se existe, é este que vivemos todos os dias. E diante dessa condição que nos aproxima do inferno das incertezas do nosso cotidiano, para ele só existiriam duas alternativas: a primeira, confundir-se com o inferno e tornar-se parte dele até o ponto de deixar de percebê-lo. E a segunda alternativa, que Calvino considera arriscada e que demanda atenção e aprendizagem contínuas, pois exige tentativas de saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, preservá-lo e abrir espaço.
A presença das novas tecnologias da informação não implica num mundo inteiramente novo. Pensamos um futuro que irá conviver e coexistir com temporalidades e historicidades distintas. Vestígios do passado sempre estão presentes - nos artefatos culturais, nos recônditos das memórias, na presença de lugares da memória, na necessidade das sociedades em produzirem vínculos com o passado, criando formas de relação e diálogo com esse tempo dos ancestrais; em outras palavras, com a cultura histórica. A coexistência ou suplantação de formas de se relacionar com a cultura histórica é uma evidência em qualquer tempo, a questão é a de mantermo-nos como intérpretes do mundo e do tempo em que vivemos.
Raimundo Donato do Prado Ribeiro é doutor em Ciências Sociais - Antropologia, pela PUC-SP e coordenador do curso de História da Universidade Metodista de Piracicaba.
Este artigo foi produzido tendo por referência o trabalho de Ribeiro, Raimundo Donato do Prado. Cultura História e as Novas Tecnologias da Informação. Tese de Doutorado. Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais - Antropologia da PUC-SP, São Paulo, 2001.
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