Conflito mais sangrento de toda a história dos Estados Unidos, a Guerra Civil deixou 620 mil mortos e foi crucial para unificar definitivamente a nação americana
BIBLIOTECA DO CONGRESSO, WASHINGTON D.C
O general Lee (à esq.) ofereceu a rendição dos confederados ao general Grant em 9 de abril de 1865, na Virgínia
por Farid Ameur
“Espere um pouco, mas qual dos dois se rende ao outro?”, ironiza uma testemunha da rendição do general Robert Lee em Appomattox Court House, no estado da Virgínia. A cena é solene. No dia 9 de abril de 1865, Lee, o comandante confederado, vestia seu melhor uniforme, com a espada cerimonial presa à cintura. Apesar do peso da derrota, sua dignidade é admirável. Sofrendo de enxaqueca, o general Ulysses S. Grant se junta a ele vestindo uma jaqueta desabotoada, botas e calças sujas de lama. Respeitoso, ele contém a emoção, enquanto seu adversário fica impassível ao assinar o ato de rendição das tropas confederadas. Seguindo as recomendações do presidente Abraham Lincoln, o vencedor mostra-se magnânimo. Lee ainda consegue que seus companheiros de armas não sejam processados por traição. A guerra havia acabado; era a hora da reconciliação.
A Guerra de Secessão foi o capítulo mais triste da história dos Estados Unidos. Quatro anos de combates deixaram o país devastado: 360 mil nortistas e 260 mil sulistas pagaram com suas vidas. Em média, um em cada cinco soldados foi morto. O número de feridos e inválidos é de aproximadamente 1 milhão. As perdas totais registradas entre 1861 e 1865 são quase tão grandes quanto às de todos os outros conflitos de que os EUA participaram desde o início de sua história. Nem os civis foram poupados. Tais perdas materiais comprovam a obstinação dos dois exércitos combatentes e a eficácia do equipamento militar.
O sul, proporcionalmente mais afetado já que era menos povoado, perdeu um quinto da população ativa. A marcha dos exércitos e a intensidade das batalhas reduziram a cinzas os estados que lutavam pela divisão dos EUA. Para os derrotados, a reconstrução foi longa e dolorosa. Seriam necessários quase 100 anos para curar as feridas de uma guerra fratricida. A violência repentina causou espanto, pois os EUA reuniam todos os elementos do sucesso. Fundado como modelo democrático, seu sistema político era de dar inveja. A Constituição de 1787 previa a separação dos poderes. Primeiro exemplo aplicado de federalismo no mundo, o país foi consagrado por instituições livres e representativas. Some-se a isso a adoção, em 1791, da Declaração dos Direitos dos Cidadãos (Bill of Rights), que garantia as liberdades individuais e públicas de todos.
No século XIX, os EUA estavam em vias de se tornar uma potência cujo território – 8 milhões de km2 – atingira uma dimensão continental. No censo de 1860, a União tinha 31 estados – repartidos de costa a costa, e do Canadá ao México – além das áreas conquistadas a oeste do Mississippi. O crescimento populacional era tão excepcional quanto a expansão territorial. Nessa época, os EUA tinham 31,5 milhões de habitantes. No espaço de 20 anos, a população dobrou graças aos importantes fluxos migratórios da Europa. Essa mão de obra era oportuna, pois o panorama econômico oferecia oportunidades de desenvolvimento. Em uma terra tão rica e fértil, o mercado dos EUA parecia inesgotável. Acima de tudo, a jovem nação caminhava para uma industrialização que já competia com as potências europeias.
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No célebre discurso de Gettysburg, Lincoln definiu o fim da guerra como o nascimento da liberdade que traria igualdade a todos os americanos
Mas um sentimento separatista surgiu no coração do país. Desde o início do século XIX, sinais de desunião podiam ser detectados entre a indústria do norte, vetor do progresso, e o sul, terra de uma sociedade patriarcal e agrária, baseada na escravidão. Para proteger a indústria, os estados do norte defendiam a aplicação de uma tarifa protecionista, enquanto os do sul desejavam uma política de livre comércio, a fim de promover a exportação de algodão, principal fonte de riqueza. Os sulistas ainda exigiam o direito de quebrar o pacto federativo e deixar a União Federal se sentissem que seus direitos estavam sendo violados, o que os nortistas contestavam, seguindo uma interpretação literal da Constituição. Em 1832, o estado da Carolina do Sul já havia feito uma ameaça antes de ceder à pressão do presidente Andrew Jackson.
A questão da escravidão pôs lenha na fogueira. De debate moral, tornou-se um problema político com a expansão em direção ao oeste. Os sulistas, cuja cultura do algodão esgotava o solo, tentavam exportar seu modelo de plantação, e com ele o sistema escravista. A ameaça era grave para os agricultores do norte, que cobiçavam essas novas terras. Por meio de acordos, o equilíbrio precário foi mantido, mas o mal-estar se tornou inevitável.
Assim, em 6 de novembro de 1860, quando Abraham Lincoln foi eleito presidente, o sul se inflamou. A vitória do republicano, que representava os interesses do norte, foi percebida como uma provocação. Em 20 de dezembro, a Carolina do Sul se separou do restante do país. Em 4 de março de 1861, quando Lincoln entrou na Casa Branca, sete estados escravistas proclamaram a dissolução da União e formaram uma confederação, à qual aderiram outros quatro estados do sul. Em 12 de abril, o ataque a Fort Sumter, reduto federal na entrada da baía de Charleston, na Carolina do Sul, jogou o país em uma guerra civil.
Lincoln declarou estado de insurreição. Por falta de um exército permanente, ele convocou voluntários para abafar a rebelião. Em 19 de abril, um bloqueio foi montado para asfixiar a economia do sul. Era o plano Anaconda. Para vencer, o norte contava com a superioridade de seus recursos humanos e materiais. Com 22 milhões de habitantes, 80% das indústrias do país, uma importante rede ferroviária, uma concentração de centros comerciais e financeiros, os principais projetos de construção naval, a União podia muito bem enfrentar a Confederação, que dispunha de apenas 9 milhões de habitantes (dos quais 3 milhões eram escravos), e sofria com a falta de bens manufaturados, armas e dinheiro.
Entretanto, o norte não encontrou facilidade. Com muito sacrifício, o general Ulysses S. Grant abriu o caminho rumo ao Tennessee, ocupando em fevereiro Fort Henry e Donelson Fort. O golpe principal foi dado na foz do rio Mississippi. No final de abril, a esquadra do almirante David Farragut tomou Nova Orleans, a maior cidade da Confederação. Sua queda ameaçava o sul de dissolução e obrigou Jefferson Davis, presidente dos estados separatistas, a alistar civis para a guerra. Na Virgínia, os confederados, sob a liderança do general Robert Lee – um oficial de carreira que se manteve fiel ao sul embora considerasse a secessão inconstitucional e condenasse moralmente a escravidão –, conseguiram adiar o êxito das tropas do norte. Em junho de 1862, o general Lee forçou o general George McClellan, que chegara às portas de Richmond, quartel-general dos sulistas, a dar meia-volta. Nos dias 29 e 30 de agosto, Lee impôs uma nova derrota ao exército da União, em Bull Run. Em seguida, invadiu o estado Maryland em uma tentativa de tomar a capital federal. Mas em 17 de setembro foi derrotado nas margens do córrego Antietam, perto da cidade de Sharpsburg. Com 23 mil vítimas, esse foi o dia mais sangrento do conflito.
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Ao assumir o front da Virgínia em 1864, o general Grant travou um duelo de gigantes com o general Lee
Em 1863 as coisas mudaram. Primeiramente, porque Lincoln assinou em 1° de janeiro o ato de libertação dos escravos, que foi, em certos casos no norte, sinônimo de abolição. Em segundo lugar, porque a guerra tomou uma grande proporção, as batalhas eram cada vez mais sangrentas. O desenvolvimento de novas armas, os 3 milhões de homens mobilizados dos 14 milhões disponíveis, a vasta faixa territorial onde se davam as batalhas, a importância dos meios de trans-porte e comunicação (ferrovias, telégrafo) e a organização de operações por terra e água refletiam a evolução dos projetos militares. Pela primeira vez um conflito mobilizava todos os recursos da sociedade civil. O esgotamento dos recursos do sul foi a chave para a vitória.
Depois de duas vitórias, em Fredericksburg (em 13 de dezembro de 1862) e Chancellorsville (em 2 de maio de 1863), Lee invadiu a Pensilvânia, mas seu progresso foi interrompido pelo general George Meade em Gettysburg, em julho de 1863. Cerca de 51 mil soldados foram postos fora de ação. Foi um momento-chave da guerra. No dia 4 de julho, data da independência americana, Grant tomou Vicksburg, no Mississippi, dividindo a Confederação em duas partes. Dominando todo o curso do rio Grande, os nortistas chegaram às portas do sul. Em 1864, Grant foi transferido para o fronte de Virgínia com a missão de derrotar Lee, que se viu obrigado a recuar. Em 14 de abril de 1865, o assassinato de Lincoln, em um teatro em Washington, deu uma dimensão ainda mais trágica àquele momento.
No sul arruinado, devastado, sujeito à dura lei dos vencedores, os anos de reconstrução foram conturbados. Muitos sulistas, desafiando a derrota, perpetuaram o mito da “causa perdida”, daí o clima de extrema violência, ilustrada pelos crimes de bandidos como Jesse James ou de sociedades secretas como a Ku Klux Klan. Ocupado militarmente até abril de 1877, o sul só sairia de seu estado de subdesenvolvimento depois da Segunda Guerra Mundial, como resultado das obras realizadas na bacia do Mississippi e da exploração de petróleo e gás no Golfo do México. Os negros, por sua vez, precisaram esperar até os anos 1960 para conquistar os direitos civis. Isso mostra como a Guerra Civil afetou a história americana. Não à toa ela é tema recorrente nas obras de escritores do sul, como William Faulkner, ou no cinema, de O nascimento de uma nação (1915) a Cold mountain (2003), passando por ...E o vento levou (1939).
O conflito perdura como uma epopeia nacional, o único que opôs americanos. Ao longo de gerações, o sonho de Lincoln se realizou. Seu triunfo tornou o pacto federativo indestrutível. Foi essa experiência terrível, e não a luta pela independência, que fez dos americanos um povo unido, consciente de seu destino único. A Guerra de Secessão foi uma espécie de segundo nascimento gravado para sempre na memória coletiva dos americanos.
Fonte: http://www2.uol.com.br/historiaviva/reportagens/o_nascimento_de_uma_nacao.html
2.4.14
O nascimento de uma nação
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