Os pensadores elaboraram uma “doutrina cristã da guerra”, mostrando que a violência não era sempre repreensível (Saul massacrando Naás e os amonitas; Samuel ungindo Saul e o sacrifício do Senhor, iluminura, manuscrito The crusader Bible, c. 1240)
Por Bertrand Schnerb
Em seu Livre des saintes paroles et des bons faits de notre saint roi Louis(Livro das santas palavras e dos bons feitos de nosso santo rei Luís), Joinville (por volta de 1224-1317) evoca um cavaleiro borgonhês, Josserande de Brancion, morto durante a Sétima Cruzada. Desejando esclarecer o espírito que animava essa cruzada, ele conta que esse cavaleiro tomou as armas para defender uma igreja pilhada por cruzados alemães. Uma vez repelidos os bandidos, “o conselheiro se ajoelhou diante do altar, e implorou a Nosso Senhor em voz alta: ‘Senhor, peço-lhe que tenha piedade de mim, e me tire dessas guerras entre cristãos, onde vivi muito tempo, e me conceda o direito de morrer a seu serviço, e assim eu possa ter o seu reino dos céus’”.
Sem dúvida alguma, Joinville, assim como Josserand de Brancion, considerava que a intervenção contra um bando de ladrões que saqueava uma igreja era uma ação de guerra perfeitamente justificada, mas, embora tivesse como objetivo restabelecer a ordem e proteger um santuário, ela não era menos condenável, visto que provocava um banho de sangue cristão. Aí estava uma contradição à qual se viam confrontados muitos homens de guerra. A guerra do Ocidente medieval envolveu os membros de uma sociedade cristã, enquanto o amor ao próximo e a rejeição à violência eram a base dos ensinamentos de Cristo. As primeiras comunidades cristãs adotaram princípios pacíficos, até mesmo pacifistas. Enquanto o Estado romano permaneceu pagão, essa atitude não gerou nenhuma contradição, mas, quando o poder foi assumido por imperadores que se tornaram cristãos e o cristianismo foi instituído como religião do Estado, foi preciso conciliar a mensagem do Cristo com a necessidade de recorrer às armas, o que não era fácil.
Entretanto, o fato de a cristianização do Império Romano corresponder a um período em que esse império estava na defensiva facilitou a tarefa dos pensadores que deviam elaborar uma “doutrina cristã da guerra”, demonstrando que o recurso à violência não era necessariamente repreensível. Era mais fácil justificar um conflito conduzido para a defesa do povo cristão que uma guerra de conquista. Assim nasceu a ideia da guerra justa. Um desses teóricos mais importantes foi Santo Agostinho (354-430), cuja influência sobre o pensamento político medieval foi considerável.
GUERRA JUSTA É PELA PAZ E JUSTIÇA
Nessa construção intelectual, a guerra era justa desde que visasse restabelecer a paz, a lei e a justiça. Uma ação violenta cujo motivo fosse o desejo de conquista não poderia ser justificada. Aquele que recorria a ela se tornava, aliás, culpado por cometer pecados capitais, como a cólera, o orgulho e a inveja. Contrariamente, um conflito para defender a própria pessoa e seus bens era considerado justo e legítimo. Por isso, uma guerra ofensiva não era necessariamente injusta se fosse conduzida com objetivo de restabelecer um direito ou recuperar bens roubados.
Assim, quando em novembro de 1337 o rei da Inglaterra, Eduardo III, declarou guerra ao monarca francês Filipe VI, acusando-o de ter usurpado a Coroa da França à suas custas, ele pôde afirmar que sua ação era justificada perante Deus e os homens, embora preparasse uma guerra de agressão: “Nós vos garantimos que exigiremos e conquistaremos nossa herança da França por nosso poder e pelo poder dos outros”, escreveu nas cartas de desafio que fez chegar a seu adversário. Aliás, tal desafio era necessário, pois uma guerra não podia ser considerada justa se não fosse oficialmente declarada.
No início, a concepção cristã da guerra foi influenciada pelo direito romano: a guerra justa era aquela conduzida sob a autoridade de um príncipe legítimo e segundo o princípio de obediência a ele devida pelo combatente. No entanto, o enfraquecimento do poder central e o advento de uma “ordem senhorial” provocaram uma evolução na definição da guerra. O chamado Movimento da Paz de Deus, surgido no início do século XI por iniciativa de bispos locais, enriqueceu essa definição ao excluir da ação guerreira pessoas (os clérigos e todos aqueles desarmados) e lugares (como as igrejas) antes de limitar o recurso às armas, instituindo a “trégua de Deus”.
Paralelamente, a Igreja propôs aos combatentes um programa destinado a torná-los “soldados de Cristo”. Confiou-lhes a missão de preservar a paz de acordo com normas de comportamento, na base do que se convencionou chamar “o ideal cavalheiresco”. E, a partir da segunda metade do século XI, a Igreja fez da peregrinação armada na península Ibérica e na Terra Santa uma ação ainda mais meritória que o combate pela paz em terra cristã.
UM DIREITO DE VINGANÇA... QUE ERA DISTORCIDO
À definição religiosa da guerra se uniu uma concepção que decorria do direito consuetudinário e oferecia aos indivíduos, às famílias e a algumas comunidades a possibilidade de recorrer à violência como a uma via de direito. O direito de vingança era assim reconhecido em muitos costumes e permitia usar a força em ações coletivas que designamos como guerras”. Estas, pelo jogo das solidariedades, podiam tomar grande dimensão. Mas o uso desses direitos conheceu restrições a partir do século XIII. No território francês, o direito consuetudinário apresentava muitas vezes o “direito de guerra” como um privilégio da nobreza: na segunda metade do século XIII, o jurista Philippe de Beaumanoir afirmou, em seu Coutumier de Beauvaisis: “Somente um gentil-homem pode guerrear”.
No entanto, é verdade que em certas regiões, como Flandres, as cidades, organizadas em comunas, usavam um direito de guerra que consideravam um de seus privilégios. Seja como for, a evolução do costume tendeu a restringir as condições do recurso à guerra: Beaumanoir indicou, ainda, que ela só podia ser declarada por motivos de extrema gravidade, como um homicídio ou um crime da mesma ordem. Segundo ele, as hostilidades deveriam começar somente após o envio de um desafio e a observação de um prazo de 40 dias imposto pelo poder real. Além disso, o costume excluía algumas categorias de pessoas, mais numerosas que aquelas protegidas pela paz de Deus: os religiosos, as mulheres, as crianças menores, os internados em hospícios, os peregrinos e aqueles que serviam ao rei.
CONTROLAR O TAMANHO DOS CONFLITOS
Na realidade, as guerras senhoriais muitas vezes ultrapassavam os limites estabelecidos pelo costume. Então, diante de usos que ameaçavam a paz, os poderes reais que durante o século XIII começavam a se afirmar reagiram tentando enquadrá-los mais estreitamente. Na França, o poder capetíngio impôs, a partir de São Luís, a “quarentena do rei”, um prazo de 40 dias entre a declaração de guerra e o início das hostilidades, para que todos aqueles que poderiam ser envolvidos fossem avisados. Paralelamente, o rei da França esforçava-se para impor os recursos à Justiça, mais do que à força. E, embora essa política não fizesse com que essas práticas desaparecessem – os nobres, em particular, continuando a invocar seu direito de guerra –, elas limitaram certamente seu impacto e difusão. Além disso, o desenvolvimento dos Estados, no fim da Idade Média, teve como consequência a afirmação da ideia, já contida na doutrina agostiniana, de que apenas a guerra conduzida pelo rei ou o príncipe e sob sua autoridade era legítima. Nos séculos XIV e XV, na França e na Inglaterra, uma literatura didática para os nobres e, mais em geral, para os que portavam as armas divulgava a ideia segundo a qual aqueles cuja função era combater deviam servir ao príncipe na defesa de sua pessoa, de seus domínios e de seus súditos. Nascia assim uma nova ética: a da guerra nacional.
16.5.15
As guerras na Idade Média: as razões para os conflitos
Fonte:http://www2.uol.com.br/historiaviva/artigos/as_guerras_na_idade_media_as_razoes_para_os_conflitos.html