13.8.15

Cícero e a conjuração de Catilina: o memorável embate



O memorável embate entre a República e a Desordem ocorreu por ocasião em que Marco Túlio Cícero, o maior orador romano de todos os tempos, ascendeu à posição de cônsul, entre os anos de 64-63 a.C. Seu grande rival na disputa pela mais alta posição da magistratura de Roma fora outro político chamado Lúcio Sergio Catilina. Tratava-se de um egresso da nobreza empobrecida e que nem por isso perdera a soberba ou a ambição de voar com as águias.


Cícero acusando CatilinaFoto: Afresco de Cesare Maccari, 1882/88 / Reprodução

As forças políticas em Roma
Derrotado nas eleições para cônsul, ressentido, Catilina, com larga folha de velhacarias passadas, tratou de conjurar contra o regime para vir a alcançar o poder pela força. Pensou em conquistar com um golpe de espada o que as urnas lhe negaram. Travou-o Cícero, advogado brilhante. Tratado como fora-da-lei pela verve implacável do cônsul, o conspirador teve que fugir de Roma, fracassando rotundamente no seu intento de subverter a ordem.

A normalidade republicana emergira aos poucos da ditadura de Sila (88-79 a.C.), tirano violento que perseguira e esmagara a todos os que lhe fizeram oposição (curioso este Sila, situação rara no mundo romano, morrera tranquilo na vila onde se retirara, aposentado). Recuperado o poder pelo Senado e pelas magistraturas eleitas, tudo indicava que as velhas instituições voltariam a funcionar a contendo e as veneráveis prerrogativas dos cidadãos seriam de novo respeitadas.

As circunstâncias e as necessidades estratégicas gerais de um império em expansão e formação é que fizeram com que o Senado se visse obrigado a voltar a delegar poderes extraordinários a um só homem. Ainda que dentro da lei, era um risco terrível, visto que cumular um chefe militar com excessiva carga de autoridade implicava em diminuir a margem de poder e autonomia dos pais conscritos (como os romanos designavam seus senadores).

Todavia, não lhes restou alternativa senão apoiar um novo “homem forte”. No ano de 66 a.C., o tribuno Aulus Gabinia, em vista da campanha naval que Gneo Pompeu realizava contra os piratas que pululavam pelo Mediterrâneo Oriental, propôs que o Senado lhe desse poderes absolutos, quase de um rei: a Lex Gabinia. Somente com aquela legislação de força, ampliada ainda mais pela Lex Manilia (que pretendia entregar a Pompeu o governo de várias províncias orientais, como base para atacar o rei do Ponto, Mitríades VI Eupator, em luta contra Roma no norte da península da Anatólia, na Ásia Menor), é que o general poderia levar a cabo a sua missão de limpar os mares dos bandidos e submetê-los a quem lhe dava apoio. Deste modo, o próprio Senado depositou nas mãos de Pompeu o seu destino: fez dele “o rei da Ásia”.

Entrementes, enquanto pairava a tensão entre os defensores de um Pompeu que colhia vitórias no exterior e um Senado temeroso quanto ao seu futuro, novas contendas eram urdidas em Roma.


Aproveitando-se do cenário confuso, proliferaram pela cidade os “bandidos políticos”, em geral gente da classe patrícia ou equestre que decaíra socialmente, atolada em dívidas e assolada pelos usurários. Entre eles, como caudilho do desacato, destacava-se Lúcio Sérgio Catilina, um ex-sicário que se colocara a serviço da ditadura de Sila e que, agora, assombrado pelos credores após dilapidar o patrimônio herdado, dissipando-o no vício e na luxúria, cabalava uma solução radical para seus problemas: assaltar o poder para assim quitar sua colossal dívida.

Em geral, tipos como ele andavam pela cidade acompanhados por um destacamento de desordeiros e rufiões que se entregavam às mãos do chefe. Tinham os olhos vigilantes, postados em tudo o que se movia, ouvidos aguçados prontos a acolher qualquer sopro de intriga, enquanto os punhos, em alerta, erguiam-se prontos a socar e a espancar a quem bem lhes aprouvesse.

Confederados para o achaque, a intimidação era o seu negócio, viviam disso. Aparentemente a república não teria como defender-se daquele batalhão do mal: os jovens lobos famintos da alcatéia de Catilina. Roma via-se assim presa de uma porfia entre Pompeu, o Senado e os bandidos políticos, procurando equilibrar-se entre a tirania militar, o poder oligárquico e a anarquia dos bandoleiros.

A conjuração
Era voz corrente pela cidade que Catilinia, impudente, exalando atrocidades e crimes, estava maquinando uma das suas. Planejava uma arremetida direta contra as instituições. Para tanto, cabalava junto à escumalha humana que compunha o lumpesinato urbano, gente sem eira nem beira, perdidos que bem pouco tinham a perder ao envolver-se numa aventura revolucionária. Era o abraço da ambição de um Catilina falido com a grande miséria dos muitos. Se insurgidos, provocariam uma aluvião de sangue.

Não o conseguiram porque Cícero, cônsul, com coragem solitária, brecou-lhes o chefe em pleno Senado com seu vozeirão de advogado do rostro (tribuna situada no Foro romano de onde os oradores arengavam ao povo). Ele mesmo, uns dias antes, por pouco escapara de uma tentativa de assassinado dos sicários a mando de Catilina. Cícero contra-atacara colocando os seus para seguirem os passos dos desordeiros, terminando desta maneira por descobrir a extensão da conjura bem mais vasta do que inicialmente imaginava, chegando inclusive a coletar os nomes dos principais cabecilhas: Mânlio, Lêntulo e Cetego, todos conluiados com Lúcio Sérgio no atentado às instituições. Um ar pesado, de chumbo, dominava Roma naqueles dias que prenunciavam o golpe.

Os desatinados pareciam ter escondido palha seca em cada canto da cidade, em seus esconsos e porões, para tocar fogo em tudo na hora a combinar. Era certo que o incêndio viria. Tanto assim que a data de 26 das Calendas de Outubro fora aquela fixada para um ataque geral contra as famílias patrícias, fazendo com que muitas delas, ao ouvir falar do golpe, temerosas, saíssem de Roma procurando abrigo nas suas herdades campestres bem afastadas da cidade. Entrementes, Catilina com seu bando ia e vinha pelas ruas, impune, saboreando o medo que causava.

As Catilinárias
Foi então que num daqueles dias de agitação ele, Catilina, foi ao Senado. Tal uma mente criminosa que se delicia com o pavor que causa, sentou-se nas arcadas. Agiu no Senado como se tivesse jurado a morte dos presentes, olhando um por um nos olhos antes de lançar-lhes o dardo mortal. Deu-se então que Cícero, exasperado com o exibicionismo, a arrogância e o descaramento do conspirador, postou-se bem em frente a ele e disse bem alto para que todos ouvissem:

“Até quando, ó Catilina, abusarás da nossa paciência? Por quanto tempo ainda há de zombar de nós essa tua loucura? A que extremos se há de precipitar a tua audácia sem freio? Nem a guarda do Palatino, nem a ronda noturna da cidade, nem os temores do povo, nem a afluência de todos os homens de bem, nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado, nem o olhar e o aspecto destes senadores, nada disto conseguiu perturbar-te? Não sentes que os teus planos estão à vista de todos? Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem? Quem, de entre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, em que local estivestes, a quem convocaste e que deliberações foram as tuas. Ó tempos, ó costumes!”

Se todos sabiam do andamento da conspiração, porque razão a permitiam? Cícero atribuía tal leniência dos seus colegas à incerteza que pairava sobre a cabeça dos pais conscritos. Muitos deles tinham dúvidas da veracidade dos boatos e da intensidade das ameaças que cercavam o nome de Catilina. Ou simplesmente estavam acovardados pelo insolente. O orador também computou a brandura com que o sedicioso era até então tratado como resultado da tolerância do senado atual, do tempo de Cícero, em relação à tradição antiga. Em épocas mais remotas, a assembleia patrícia, imbuída de grande disciplina moral, era muito mais rigorosa nas questões de sedição, não hesitando em ser implacável com quem ousasse erguer-se contra as tradições da cidade, como fora o caso dos Graccos, do tribuno L.Saturnino ou ainda de Spúrio Melo (supliciados e executados pelas autoridades), acusados de crime de lesa-república.

Ainda assim, o “conselho do mundo”, como Cícero gostava de designar o Senado, protelava em aplicar leis exemplares contra Catilina, agindo como se fosse um legionário irresponsável que se negasse a tirar a espada da bainha para prostrar um inimigo de Roma, deixando o atrevido não só com vida como ainda fazendo pouco caso de tudo.

Cícero expõe Catilina


Marco Túlio CíceroFoto: Reprodução


Para Cícero tudo estava claro. Aquele que estava ali sentado na sua frente, nas arquibancadas senatoriais, era um criminoso, um inspirador de “mortandades e incêndios”, tendo inclusive ao seu lado alguns dos senadores presentes que, insensatos, andaram juntos prevaricando contra a lei.




O cônsul sabia de tudo. As manobras clandestinas de Catilina eram-lhe conhecidas pelos espiões que colocara no encalço dele. Cícero estava ciente dos mínimos detalhes da conjura, de quem era quem na obra de traição à cidade sagrada. Ao sedicioso ele ainda dava uma oportunidade: que Catilina saísse da cidade e levasse consigo seus asseclas, “a perniciosa sentina dos seus sócios”. Ele era uma peste a quem Júpiter Stator, protetor de Roma, devia expulsar dos seus muros, pois não era apenas uma ameaça à vida do cônsul que o acusava, mas sim à Itália por inteiro.

Prova desse efeito maléfico que dele exalava era o fato de que, ao sentar-se na arquibancada, todos os que estavam próximos se levantavam e iam ajeitar-se bem mais afastados. Ninguém no Senado queria ser visto próximo ao sedicioso. Como então ele pensava levar adiante o motim?

Disse-lhe Cícero então: “sai já de Roma, livra de temor a República: se esperares por este preceito parte já para o desterro!” Que o bandido fosse juntar-se aos outros predadores para insurgir-se: com Mânlio, acampado mais ao norte da cidade com um “exército de gente perdida”. Que as esquadras de falidos, de mendigos e de outros desesperados, liderados por Catilina, ainda com o auxílio de centúrias de gauleses cabalados por ele, ousassem enfrentar o gládio de Roma.

O próprio Cícero tece então considerações sobre a proposta feita de banir o demônio. Se o acusado era aquele veneno todo, por que deixá-lo partir? Não cairia o cônsul no desagrado do povo, deixando a serpente sair da toca e ir-se embora rastejando, mas livre? Contudo, argumentou ele, queria expor Catilina aos olhos de todos os cidadãos, permitindo que o descarado chefe dos maus mostrasse o punhal de assassino da pátria, que ele publicamente erguesse a tocha com que pretendia ver a Cúria em labaredas. Era com o clarão das chamas da insurreição que ele, Cícero, assumindo os riscos, pretendia esclarecer tudo.

Andavam muito confusas as coisas em Roma: legalidade e ilegalidade, senadores e bandidos políticos, o saudável e o doente, a pátria e seus traidores, os bons e os malvados pareciam andar juntos, misturados. Era hora de por um fim naquele caos e conúbio entre a moralidade e a imoralidade, de por as coisas no seu devido lugar.

O conspirador, se solto e fora da cidade, como um imã, atrairia para si os pérfidos e os malfeitores, os parricidas e os latrocinas, enquanto a República teria como seu escudo os cidadãos honestos e íntegros. Tudo então se acertaria: os bons contra os maus. A República estaria salva e o Senado recomposto. O motor da conjura banido ou morto.

Chicoteado pelas palavras de Cícero, nada mais restou ao réprobo senão escapar da cidade e jogar-se na aventura de um tudo ou nada. Mais ao norte, se aliou aos seus sequazes sendo facilmente batido por um destacamento militar enviado em diligência contra eles pelo cônsul. Catilina morreu em Pistóia, no ano de 62 a.C.. Os seguidores dele que ainda haviam ficado em Roma, Lêntulo, Címbro Gambínio, P.Statílio, Cétego e outros, integrantes do partido dos perdidos, foram detidos, levados aos suplícios e, depois de algum tempo no cárcere, foram executados às instâncias de Silano e Catão, com a aquiescência do cônsul.

O povo em Roma celebrou o grande orador, honorificando Cícero como o apodo de “pai da pátria”, salvador da República e das instituições por ter evitado que o império conhecesse mais uma guerra intestina sangrenta. Foi título merecido, visto que a oratória de Cícero serviu como arma num dos casos raros da história em que um discurso contundente e corajoso conseguiu abortar um golpe contra as instituições republicanas.

(*) Cícero, de fato, pronunciou diversas arengas contra Catilina e seus asseclas. A IIª das Catilinárias foi dedicada às justificativas dele ter deixado o malfeitor livre para deixar a cidade expondo-lhe intenções subversivas, na IIIª ele descreveu detalhadamente a conspiração exigindo que se congratulassem com ele pelo bom sucesso das diligências na apuração da conjura, enquanto que a IV Catilinária foi dedicada à divergência instaurada entre os senadores a respeito de quais seriam as penas a serem aplicadas aos sediciosos encarcerados.





Salústio retrata Catilina


O historiador Salústio (86 a 36 a.C.), que conheceu ambos, a Cícero e a Catilina, deixou um vivo retrato do celerado caído em desgraça, descrevendo-o assim:

“Lúcio Catilina, nascido de linhagem nobre, foi um homem de grande fortaleza física e psicológica, mas de temperamento depravado e inclinado para o mal. Desde sua adolescência, muito lhe agradaram as guerras intestinas, as matanças, os espólios, a discórdia civil, exercitando nelas a sua juventude. Seu corpo era capaz de suportar a fome, frio e vigílias... muito acima do que se poderia acreditar. Seu espírito, temerário, trapaceiro, volúvel, era capaz de fingir e dissimular qualquer coisa. Cobiçador do que era do alheio e dissipador do que era seu. Era ardente nas suas paixões. Na eloquência era justo; pouco de prudência. Seu espírito insaciável ansiava sempre pelo desmesurado, o incrível, o que estava sempre demasiadamente alto. Depois da tirania de Lúcio Sila se apoderou dele uma irrefreável ânsia de conquistar a Republica e não tinha o menor cuidado em lançar mão de quaisquer meios que fossem na busca de tal poder absoluto. Seu espírito feroz a cada dia mais e mais se revoltava devido à pobreza do seu patrimônio familiar e a lembrança dos seus crimes... incitavam-no ainda mais os costumes corruptos da cidade, costumes que dois vícios péssimos punham a perder: o luxo e a avareza.”

(Salustio - A Conjuração de Catilina - Retrato de Catilina, V 1-8)



Bibliografia

Cícero – Obras. São Paulo: Edições Cultura, 1942.

Cowell, F.R. – Cícero e a República Romana. Lisboa: Editora Ulisséia, 1967.

Salustio – A Conjuração de CatilinaFonte:http://noticias.terra.com.br/educacao/historia/cicero-e-a-conjuracao-de-catilina-o-memoravel-embate,be302e227ecf5410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html

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