2.3.11

A compra do nordeste

Livro conta que Portugal pagou o equivalente
a 63 toneladas de ouro pelo Brasil holandês

Paulo Moreira Leite

Fotos: Oscar Cabral
Evaldo Cabral de Mello, o Brasil dos Países Baixos e dom
João IV: 28 anos de negociação

Todos os estudantes brasileiros aprenderam que os holandeses foram expulsos do Brasil, em 1654, numa guerra valente movida contra eles por índios, negros e portugueses. Só faltou explicar como essa gente armada de espingarda, espada e arco e flecha foi capaz de vencer a principal potência econômica e militar do século XVII. Em O Negócio do Brasil Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669 (Topbooks; 264 páginas; 33 reais; que deve chegar às livrarias nos próximos dias), o historiador Evaldo Cabral de Mello conta o que aconteceu. Portugal comprou o Nordeste dos holandeses.

A aventura colonial dos Países Baixos começou em 1630, com o desembarque de 7.000 soldados no Recife. Por duas décadas eles controlaram uma faixa da costa que ia do Maranhão às vizinhanças de Salvador, no único pedaço do Brasil que tinha algo a dizer na riqueza do mundo, pois ali se plantava cana-de-açúcar. Vencidos pelas tropas de Henrique Dias, Felipe Camarão e João Fernandes Vieira, os Países Baixos assinaram a rendição, mas como um pacto provisório. Sob ameaça permanente de novos ataques, no Nordeste e também em Lisboa, Portugal atravessou quinze anos em negociações até fechar negócio em 1669, pagando uma indenização de 4 milhões de cruzados por aquele pedaço do Brasil — um dinheiro colossal. Era o equivalente a 63 toneladas de ouro, igual a toda a receita da alfândega portuguesa em um ano, aí incluído o que se arrancava na América, na África e na Ásia. Em moeda de hoje, seriam 650 milhões de dólares, mas essa comparação é enganosa, pois a humanidade vivia numa idade econômica muito mais pobre e primitiva.

Com dificuldades irremediáveis de caixa, a coroa atravessou quatro décadas pagando prestações anuais. A demora foi tamanha que, entre o início das negociações e a última remessa, quatro ocupantes diferentes haviam sentado no trono de Lisboa. De vez em quando Portugal ameaçava um calote, o que levou os Países Baixos a despachar a Marinha de Guerra até a Foz do Rio Tejo. No fim, o acordo funcionou. "Portugal fez uma aposta que tinha tudo para dar errado quando quis o Nordeste de volta", explica Evaldo Cabral de Mello. "Mas deu certo, graças às mudanças ocorridas na Europa." Tesouro econômico, cultural e militar do século XVII, os holandeses eram tão ricos que podiam aproveitar a vida no conforto civilizado de seu país, usando aquela roupa preta com colarinho branco dos quadros de Rembrandt, enquanto contratavam vizinhos pobres, escoceses, alemães e poloneses para dar duro como mercenários na colônia remota. O Brasil holandês não foi obra de governo nem de conquistadores destemidos, mas uma operação comercial de uma empresa privada, a Companhia das Índias Ocidentais. Os acionistas dos Países Baixos calcularam investimentos e lucros, contrataram um executivo com biografia militar e poderes absolutos para tocar o negócio — Maurício de Nassau — e foram para casa esperar pelo retorno. (No fim da aventura, o desastre foi tão grande que a companhia faliu.) O destino do Nordeste foi resolvido por mudanças no minueto das potências européias. Os Países Baixos perderam força e riqueza, a França tornou-se a nova senhora do continente e a Inglaterra começava a se mostrar grande em todo o planeta.

Até agora, nem mesmo autores estrangeiros haviam tratado da compra do Nordeste com atenção. O estudo mais recente, uma tese do holandês C. van de Haar, de 1961, encerra as investigações quando a negociação estava em fase de rascunho. "Sempre desconfiei que o fim do Brasil holandês fora mais complicado do que se dizia nos livros", lembra Evaldo. "Mas precisava pesquisar para saber o que havia ocorrido." O Negócio do Brasil não é uma obra de primeira leitura, mas uma jóia de sabedoria que exige o conhecimento dos dados básicos, como nomes e datas importantes, para não se perder o fio da meada. Além de narrar as negociações em todas as etapas, Evaldo ainda ajuda a explicar por que o Brasil se tornou o que é, com o tamanho que tem, com a cultura e o povo que possui.

Como acontece com as grandes obras históricas, o livro promove um retorno aos acontecimentos, num encantamento que permite ao leitor de hoje enxergar o mundo com os olhos do século XVII. Ao fim de cada capítulo é fácil perceber que nem de longe estava predeterminado que o Brasil iria ficar do jeito que ficou. Cada um em sua hora, portugueses e holandeses tiveram alternativas e fizeram opções. Vendo a História como uma obra humana, e não como uma sucessão de fatalidades, econômicas ou religiosas, Evaldo reconstrói fatos mas não despreza oportunidades perdidas. Respeitável pelo que ensina, seu livro também comove pelo que permite imaginar. Nem dom João IV, el rei de Portugal, sabia direito o que queria fazer com o Nordeste e mudou de idéia várias vezes.

Preciosidades na
biblioteca do Itamaraty:
"Quem quer originalidade
não pode delegar
a pesquisa"
Foto: Oscar Cabral

O plano português era levar o Nordeste pagando barato. Enquanto negociava com os Países Baixos, por baixo do pano el rei mandava homens e armas para guerrear com os holandeses. A astúcia acabou após algumas prisões, quando a artimanha foi descoberta. Desmoralizado, el rei perdeu o controle da situação. Iniciada como guerrinha de mentira, a luta de Pernambuco transformou-se em conflito duro e sangrento, com derrotas pesadas dos holandeses. Temeroso de ser atacado por um inimigo infinitamente mais forte, que poderia derrubá-lo do trono português num estalar de dedos, dom João IV resolveu desistir de tudo e entregar esse pedaço do Brasil à Holanda. Em troca, ao menos salvava a coroa, garantindo a independência de Portugal, ainda que amputado da colônia mais rica. Os holandeses adoraram a oferta. Os portugueses não. Fundador de um governo fraco, dom João IV não era um monarca com plenos poderes. Fazia tantas consultas antes de tomar decisões que o embaixador francês em Lisboa, legítimo representante do absolutismo em vigor em seu país, se queixava de que "para infelicidade deste Estado, a voz do povo aqui é muito escutada". A entrega do Nordeste era apoiada por uma voz no auge de seu prestígio, o Padre Antônio Vieira. Mas isso era pouco. A Inquisição não aceitava a cessão porque implicava transferir gentios brasileiros para hereges protestantes. Os nobres não queriam perder a região que pagava as pensões com que eram vestidos, alimentados e aquecidos. Para os comerciantes, ali era o lugar certo para enriquecer. Desperto pela independência e pelo culto a dom Sebastião, que morrera na luta contra os mouros, o povão de Lisboa considerava a entrega um insulto. Com uma rebelião vitoriosa na colônia e a metrópole contra si, dom João IV teve de curvar-se.

"Portugal fez uma
aposta que tinha tudo
para dar errado quando
quis o Nordeste de volta.
Mas deu certo"

Tataravô de Pedro I, que proclamou a independência do Brasil, dom João IV ficou conhecido por ter libertado Portugal após sessenta anos de domínio espanhol. O livro também trata dessa epopéia, delicada e incerta. Graças a uma revolta na região da Catalunha, o país escapou da espada do vizinho poderoso. Obrigada a se proteger do perigo francês, a leste, a Espanha ficou sem tropas para impedir o levante português, a oeste. Dom João IV era um rei que ninguém levava a sério. Parecia tão óbvio que seu país seria invadido outra vez que Holanda e Espanha fizeram uma nova partilha no mapa. A Espanha retomava Portugal. A Holanda não só mantinha o Nordeste mas arrematava também o resto do Brasil.

Evaldo retrata dom João IV cercado por auxiliares que repetiam máximas do florentino Nicolau Maquiavel, como "todo o útil é honesto", e recomendavam perder "o escrúpulo disso que chamam enganar". A corte portuguesa estava sintonizada. Dizendo que a política não se subordina à religião, Maquiavel foi o grande ideólogo do século XVII. Era tão popular entre homens de governo que o Vaticano desistiu de proibir suas obras, preferindo censurar trechos que considerava heréticos. Longe dos gabinetes, citava-se Maquiavel sem que fosse necessário ler um único livro seu. Para Evaldo, na época ele "impregnara a atmosfera intelectual como hoje fizeram o marxismo, a psicanálise e o estruturalismo".

O Negócio do Brasil é uma obra que pensa, compara e explica. Com uma erudição que flui, sem pedantismo, Evaldo localiza fios que mostram que o Brasil holandês foi bem mais do que um episódio pitoresco numa colônia remota. Atraídos por uma riqueza tão procurada, o açúcar, e também por um elemento que mobilizava recursos fabulosos, a posse de territórios, personalidades como Luís XIV, o Rei Sol da França, Oliver Cromwell, o Protetor da Inglaterra, e também Felipe IV, da Espanha, entram e saem da obra como entraram e saíram das negociações diplomáticas. "Esse livro é uma peça rara: uma contribuição brasileira importante para explicar a história da Europa", afirma Luiz Felipe de Alencastro, professor da Universidade Estadual de Campinas. Para ele a obra é comparável à antológica biografia de Antônio Vieira escrita por João Francisco Lisboa e publicada em 1891.

Com seis livros publicados, Evaldo Cabral de Mello é, possivelmente, nosso maior historiador vivo e, com certeza, o mais produtivo. Embaixador aposentado, vivendo no Rio de Janeiro, ele fez de O Negócio do Brasil uma obra marcada pelo esforço de pesquisa e até por um lance de sorte. Em 1970, num sebo de Lisboa, adquiriu uma edição rara com os três volumes da correspondência de Francisco de Sousa Coutinho, embaixador português em Haia no século XVII. Convencido de que a obra poderia ser útil um dia, resolveu guardá-la por quase trinta anos. Estava certíssimo. Difíceis de encontrar hoje em dia, as cartas de Sousa Coutinho fornecem boa matéria-prima ao livro. Em outras buscas, Evaldo descobriu preciosidades na biblioteca do Itamaraty, no Rio. No Recife, consultou as 6.000 páginas da versão original, em holandês, de um cartapácio intitulado Negócios do Estado e da Guerra em Torno das Províncias Unidas dos Países Baixos, 1621-1668. Para se proteger da poeira e do mofo, vestiu máscara de médico. "Fazia pelo menos quarenta anos que ninguém abria aquilo", conta. Apesar dos cuidados, pegou uma amigdalite. Em busca de um livro raríssimo, Evaldo recorreu a um filho que mora nos Estados Unidos. O exemplar acabou resgatado por uma estagiária do gabinete do senador Ted Kennedy. Em Lisboa, um aluno, Tiago dos Reis Miranda, foi atrás de manuscritos, depois copiados em xerox e enviados ao Brasil. Em São Paulo, o pesquisador Pedro Puntoni, que fez sua tese de mestrado e de doutorado inspirada pela lavoura intelectual de Evaldo, também se mobilizou. "Ele tem obsessão por documentos", conta Puntoni.

Medalhões do meio acadêmico utilizam estudantes não só para localizar documentos, mas até para ler a papelada e selecionar o mais interessante. Evaldo faz questão de examinar tudo o que encontra, folha a folha. Não chega ao ponto de ler palavra por palavra sempre. Muitas vezes, atrás de uma pista promissora, apenas percorre as páginas com o dedo indicador. Com esse cuidado, na obra-prima Olinda Restaurada conseguiu apresentar o melhor estudo já realizado sobre as técnicas de guerra que os homens de Pernambuco empregaram contra os holandeses. Em A Fronda dos Mazombos, traçou um painel vigoroso e revelador do episódio, conhecido como Guerra dos Mascates. O mesmo fez agora, ao descobrir que Portugal comprou o Nordeste. "Se você busca originalidade no trabalho, não pode delegar a pesquisa", ensina. "É no contato pessoal com o documento que vem a intuição, a idéia."

De Witt, o que pegou a verba

Poucos holandeses quiseram tanto vender o Nordeste como Johan de Witt, principal político de seu país na época. "Sem a energia e competência desse oligarca, a História do Brasil poderia ter sido um pouco diferente", escreve Evaldo Cabral de Mello. Convencido de que o controle do comércio valia mais do que o domínio de territórios, De Witt derrotou os acionistas da Companhia das Índias Ocidentais, principais adversários do acordo com Portugal. Numa época lendária pela corrupção, De Witt tinha fama de manter as mãos limpas, mas Evaldo mostra indícios de que foi subornado pelos portugueses. "O verdadeiro mediador são os dez por cento", dizia um diplomata da época.


Vieira, o que pagou o preço

Antes do acerto definitivo, o Padre Antônio Vieira foi o principal defensor de um tratado em que se dividia a colônia brasileira e se entregava o Nordeste aos holandeses. Se a discussão era militar, Vieira lembrava que Portugal só podia desejar paz diante de um inimigo mais poderoso. Quando se falava de economia, argumentava que o Nordeste custava, em despesas de guerra, dez vezes mais do que pagava em impostos. Apoiado nesses argumentos, Vieira foi colher votos no Conselho de Estado, sem sucesso. Enquanto el rei dom João IV mudava de lado, ele pagou o preço de sua opinião. Malvisto pela Inquisição, caiu em desgraça e se viu forçado a mudar para o Brasil.


Fonte:Veja