Bandeira de Raposo Tavares Embarcados a segunda vez, se lhes renovou o primeiro indício com verem surgir e mergulhar (alguns) botos, mas andavam estes tão peregrinos do mar quanto eles da sua terra. Aos oito dias de viagem deram na madre do rio, e navegando por ele (coisa que se não tivera tantas testemunhas parece indigna de todo o crédito), gastaram onze meses inteiros na navegação, sem saber para onde iam, até que aportando à fortaleza de Gurupá, conheceram que tinham descido pelo rio das Amazonas abaixo. E todos estes onze meses só 33 dias se detiveram em espalmar e consertar as canoas, e todos os outros navegaram. E posto que as jornadas que faziam eram breves, dando a cada um somente dez léguas, que é o menos que podiam andar, indo tão ajudados da corrente, vem a fazer o que navegaram mais de 3 mil léguas de rio. Três anos e dois meses puseram neste grande rodeio, que deram ao interior da América: e em tantas quaresmas e páscoas, em tantas enfermidades, guerras, mortes e outros infortúnios que passaram de vida e alma, nenhum destes homens se confessou, nem recebeu ano algum sacramento; e, ao meu ver, menos é ainda não receberem sacramentos em tanto tempo, que saírem de suas terras tantos homens cristãos e para uma tal jornada, sem levarem consigo quem lhos administrassem. Nenhuma comunidade de calvinistas nem luteranos, nem ainda de turcos, partiu a outra muito menor viagem, por mar ou por terra, que não levassem consigo os ministros da sua seita.
A visão religiosa acerca da bandeira comandada por Raposo Tavares entre 1648 e 1651, em uma carta de 1654 do padre Antônio Vieira ao seu superior
Na primeira carta disse a Vossa Reverendíssima a grande perseguição que padecem os índios, pela cobiça dos portugueses em os cativarem. Não tenho que dizer de novo senão que ainda continua a mesma cobiça e perseguição, a qual cresceu agora mais, e assoprou muito o seu fogo um grande número de homens moradores em São Paulo, que por este tempo se acharam no Pará pela ocasião que brevemente aqui direi, posto que seja matéria de larga narração. No ano de 1649 partiram os moradores de São Paulo ao sertão, em demanda de uma nação de índios chamados os serranos, distante daquela capitania muitas léguas pela terra dentro, com intento de, ou por força ou por vontade, os arrancarem de suas terras e os trazerem às de São Paulo e aí se servirem deles como costumam. Constava todo o arraial de duzentos portugueses e mais de mil índios de armas, divididos em duas tropas. A primeira governava o mestre de campo Antônio Raposo Tavares, que ia também por cabo de tudo, a segunda o capitão Antônio Pereira. Andados [...] meses de viagem, encontrou esta segunda tropa com uma aldeia de índios da doutrina dos padres da Companhia, pertencente à Província do Paraguai, e estando todos na igreja, e o padre dizendo-lhes a missa solene, por ser dia de Todos os Santos, segundo a relação dos que menos querem encobrir a fealdade do feito, entraram os soldados de mão armada na aldeia, e dentro da mesma igreja prenderam e meteram a ferro a todos os índios e índias que não puderam escapar, e nem os altares, vestiduras e vasos sagrados perdoava a cegueira e cobiça, porque de tudo despojaram a igreja. Sobre esta presa se detiveram oito dias na mesma aldeia, fazendo bastimentos e tendo sempre em custódia ao padre, para que não pudesse ir buscar algum remédio às miseráveis ovelhas de que era pastor. Tiveram contudo notícias do caso, por alguns dos que escaparam, os padres de duas aldeias vizinhas, os quais, fazendo logo armar os seus índios, vieram tanto em socorro dos já cativos, como por ver se, rompendo o inimigo comum, podiam escapar de o ser. Saíram os de São Paulo à batalha, e podendo mais a melhoria das armas que a da causa, fugiram os índios e ficou no campo morto um dos padres de uma bala. O matador, ao tempo que isto escrevo, está no Pará, e se aponta com o dedo, e os que governam o eclesiástico e o secular, posto que o conheçam, o deixam andar tão solto e tão absoluto como os demais, mas permite Deus muitas vezes que semelhantes delitos os dissimulem os homens, porque quer que se paguem com maiores castigos do que são os que se pode dar na terra. O certo é que não faltou o do céu a esta grande impiedade, porque dentro de um mês se viram os executores dela castigados com peste, fome e guerra: a peste foi tal que nenhum ficou que não adoecesse mortalmente, a fome era quase extrema, porque as raízes e os frutos agrestes das árvores era o maior regalo dos enfermos, e esses não havia quem tivesse forças para ir buscar e colher; sobretudo, no meio desta fraqueza e desamparo, eram continuamente assaltados de bárbaros de pé e de cavalo, que os atravessavam com (frechas), não lhes valendo a diferença e melhoria das suas armas, porque apenas havia quem as manejasse. Finalmente, ao cabo de um ano das maiores misérias que jamais se padeceram, se vieram a encontrar com a outra tropa, tão diminuídos que dos portugueses lhes faltava a metade e dos índios as duas partes, e os que restavam mais pareciam desenterrados que vivos.
Juntas assim as duas tropas chegaram enfim à terra do seus desejados serranos; as quais porém seis meses se detiveram neste lugar insistindo com novas diligências de força e manha para reduzir a si os serranos; e posto que neste tempo, e em todo o ano seguinte, que também gastaram em descobrir novos sertões e gentes, se lhes renderam alguns índios, assim serranos como doutras nações, os quais três léguas das suas povoações os receberam com frechas e ciladas que lhes tinham armado, e metendo-se todos pelos bosques os deixaram frustrados das suas esperanças, após das quais havia dois anos que caminhavam com promessa de os acompanharem e os seguirem. Até nisto se viu o castigo de Deus. Todos enfim lhes faltaram com a palavra e os deixaram todos no meio daquela imensidade de terras, mais cuidadosos de salvar as poucas vidas que lhes restavam, que dos interesses e presas que vieram buscar.
Andando em demanda de novo e mais breve caminho, encontraram um rio, não mui caudaloso, que por indícios de uma [...] entenderam estavam perto do mar. Resolveram-se a buscar por ele a costa do Brasil e a fabricarem embarcações para navegarem, que para tudo traziam oficiais e instrumentos. Lançadas as canoas à água, ao terceiro dia se lhes sumiu o rio entre uns juncais; mandaram decobridores a buscá-lo, e depois de três dias de jornada tornaram a dar com ele, mais distante do lugar onde se lhes tinha escondido. Deliberaram-se a passar as canoas à pura força de braços e de ombros, como dos argonautas contam as fábulas, com exemplo verdadeiramente grande de constância e de valor, se o não deslustrara tanto a causa.
Mas, tornando ao que verdadeiramente foi uma das mais notáveis (viagens) que até hoje se tem feito no mundo, muito digna coisa fora de se saberem (que) alturas e por que rumos a fizeram, mas só destes instrumentos iam faltos, e assim não sabem dizer coisa certa. Segundo (muitos deles) dizem, quando a primeira vez entraram neste grande rio estavam na altura do Espírito Santo, que são dezenove graus da banda do sul, e, segundo os lugares por onde lhes demorava o sol, afirmam que os primeiros seis ou sete meses caminharam sempre, já a sul, já a leste, e que nos últimos quatro, como cansados de andar tanta terra, tomaram de carreira para o norte e nordeste, a desembocar no mar; de aqui se colhe que este rio se estende pelas terras que há no interior da América, aonde ainda nem da parte do Peru chegaram os castelhanos, nem da parte do Brasil os portugueses, e que estas não descobertas terras têm sem dúvida maior latitude da que lhe mediram até agora os cosmógrafos e se pinta nos mapas.
A multidão de nações de que são habitadas as ribeiras destes rios, ou para dizer melhor, as praias deste mar doce, que assim lhes chamaram os que o viram, nem eles o sabem contar senão por admirações. A quinze dias de entrada no rio começaram a ver povoações, e daí por diante nenhum dia houve que não vissem alguma; e ordinariamente todos os dias muitas. Cidades viram, em que (contaram) trezentos ranchos, que assim lhes chamam os sertanistas de cá. São umas casas ou armazéns mui compridos, sem distinção nem partimento algum, em que vivem juntamente muitas famílias, e alguns há tão capazes que agasalham quarenta e cinqüenta. Desta grandeza eram os desta cidade, e, lançando às contas ao que poderia alojar entre grandes e pequenos, julgaram que seriam 150 mil almas. Já na jornada de descobrimento de Quito, me disseram pessoas dignas de fé que viram lançadas, junto à ribeira do rio, povoações como a de Lisboa.
O em que falam os de São Paulo, pela coisa mais notável que viram neste gênero, foi um reino fechado, de uma e outra banda do rio, pelo meio do qual atravessaram oito dias inteiros, e estavam e eram as povoações tantas e tão juntas que quase não havia distância entre uma e outra. E o que se deve notar, que o que estes homens dizem é só o que está edificado à beira do rio, porque do que vai daí para dentro eles não viram coisa alguma. Também não viram nem dão notícia do que contêm outros muitos rios, que vêm entrar nele, tão largos e caudalosos que, se não correram tão perto deste, tiveram grande nome. A gente que isto habita é toda, com pouca diferença, da cor da do Brasil, e quase do mesmo trajo, porque em partes andam as mulheres vestidas. As línguas são totalmente diversas, e elas foram só as que os defenderam dos homens de São Paulo, não bastando para isso nem a resistência, nem as armas, nem a multidão. Tomavam (alguns), e como não entendiam a língua os tornavam a lançar de ali, pela maior parte em diferentes terras. Espero em Deus que estes, que por ali foram semeando, não hão de servir muito algum dia para a conversão, porque terão aprendido as línguas e podem ser intérpretes de umas nações a outras. O modo com que estes índios recebiam os portugueses era ordinariamente de paz, e só com sinais de grande espanto e pasmo, que lhes causava a novidade de gente e trajos que nunca tinham visto; e outros havia que, ou de maior valor ou de maior medo, tomavam as armas e se punham em defensa de suas casas. E perguntando eu a um dos cabos desta entrada, como se haviam com eles, me respondeu com grande desenfado e paz de alma: "A esses davamos-lhe uma carga cerrada, caíam uns, fugiam outros, entrávamos na aldeia, tomávamos aquilo de que havíamos mister, metiamo-los nas canoas e, se algumas das suas eram melhores que as nossas, trocávamo-las e prosseguíamos a nossa viagem". Isto me respondeu este capitão como se contara uma ação muito louvável; e assim fala toda esta gente nos tiros que fizeram; nos que lhe fugiram, nos que alcançaram, nos que lhe escaparam, nos que mataram, como se referisse às festas duma montaria, e não importavam mais as vidas dos índios que as dos javalis ou gamos.
Todos estes homicídios e latrocínios se toleram em um reino tão católico como Portugal, há mais de sessenta anos, posto que, no tempo em que estivemos sujeitos a Castela, se acudiu com provisões reais e breves dos sumos pontífices, que se não guardaram. Com a restituição da Coroa ao legítimo rei se nos acabou a desculpa destas maldades, (que) ainda se continuam como dantes, sem haver por elas nem devassa, nem (procedimento), nem castigo, nem ainda por pejo do mundo um leve homizio; senão pública e total imunidade.
O merecimento por que são concedidos aos sertanistas de São Paulo estes privilégios, declaram ele mesmos com muita galanteria, não sei se com igual verdade, que o ouro que se tira das minas de São Paulo, se põe todo em barretas em que se vai a cunhar, e dizem eles que, em fazendo barretadas a estes ministros com estas barretas, logo ficam tanto em suas graças que dos seus pecados lhes fazem virtudes. De alçadas que foram a São Paulo e governadores que têm ido ao Brasil, se contam casos particulares e verdadeiros. O pior será que as cortesias destas barretadas tenham também lugar na Corte. O certo é que os maiores autores deste delitos, à Corte vão, na Corte vivem, na Corte requerem, na Corte se lhes corre a folha, sendo que, se se corressem as de todos os matos do Brasil, se haviam de achar todas tintas com o sangue destas tiranias e nenhuma havia de haver que se não convertesse em línguas para pedir castigos e vingança ao céu. Mas ainda mal, porque vemos os castigos e o maior de todos é não acabarmos de conhecer que é esta a principal causa.
Se os reis não emendarem por si estas tiranias, não há que esperar que os autores delas tenham nunca emenda. E bem se viu na ocasião desta jornada, porque, sobre virem tão açoitados e castigados dela, a contrição que tiraram deste castigo foi embarcarem-se logo alguns que em São Paulo têm maior poder e mais (cabedal), para de lá tornarem ao sertão do Pará, e tirarem dele os índios tupinambás e outros da língua geral, de que aqui tiveram notícias, e se teme que já os terão levado.
Estas são, padre provincial, as notícias que posso dar a Vossa Reverendíssima desta conquista do Maranhão de onde faço esta.
[Ass.] Antônio Vieira
Cortesão, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil (Rio de Janeiro: Serv. Doc./MEC, 1958, pp. 439-49), apud Darcy Ribeiro & Carlos de Araujo Moreira Neto (orgs.), A fundação do Brasil: Testemunhos, 1500-1700. Petrópolis: Vozes, 1992, pp. 300-1.]
Fonte: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=1130