A Múmia de Lenin
Vladmir Ilitch Uliánov, mundialmente conhecido como Lenin, transcorridos quase oitenta anos da sua morte, ainda não teve o seu corpo devidamente sepultado. Contra sua própria vontade, ele que sempre combateu a idolatria, qualquer que ela fosse, acabou mumificado e transformado num ícone do regime soviético. Hoje, depois do término do regime comunista em 1991, discute-se na Rússia que fim dar aos seus restos.
"Agora vai iniciar-se outra guerra, não sangrenta, uma guerra contra a fome, contra o frio, a enfermidade, a miséria, a desorganização, o obscurantismo..."
V.I.Lenin - Jornal Pravda, 8.2.1920
Um Trenó na Neve
Lenin discursando para os soldados
A pequena Claudia teve suas botas arrancadas das mãos pelo seu irmão mais velho, um fedelho de sete ou oito anos. Antes que ela pudesse chorar ou esbravejar viu-o calçá-las e jogar-se porta a fora. Em frente ao casebre, num frio medonho, passava uma troica puxada por cavalos com neve pelas canelas carregando o corpo de Vladmir Lenin. Levavam-no do seu retiro em Nizhniy-Novgorod para Moscou. À menina só restou ver um vulto escuro de uma janela embaçada.
Stalin não saiu do lado de Lenin morto
A notícia da morte dele logo se espalhara pelas aldeias vizinhas de Nizhniy (depois Gorki), onde ele, vítima de um derrame, passara entrevado seus últimos meses de vida. Apesar do clima polar, era o 22 de janeiro de 1924, milhares de camponeses e aldeãos postaram-se no caminho para render-lhe as homenagens, perfilando-se e tirando seus gorros em sinal de reverência. No trajeto de 400 quilômetros percorrido pelo trem até a capital não foi diferente. Em Moscou, a notícia do padecimento de Lenin provocou uma comoção, paralizando imediatamente as fábricas e as repartições, enquanto que as lojas cerraram suas portas.
Stalin comanda tudo
Coube a Stalin, o secretário-geral do Partido Comunista russo, comandar as exéquias. Apesar das relações entre ele e Lenin terem estremecidos devido a uma grosseira que Stalin cometera contra Krupskaia (a esposa de Lenin), uns tempos antes, o novo todo-poderoso do regime não se fez de rogado em aparecer publicamente como se fora o herdeiro do líder de 1917. Aliás, foi sugestão do próprio Stalin que lhe embalsamassem o corpo. A decisão fora tomada uns quatro meses antes da morte de Lenin, numa reunião do Politburo, na qual contou com o apoio de seis dos seus 11 integrantes. Outros camaradas, como Kamenev, Bukarin e Trotski, manifestaram estranheza e aberto repúdio à intenção de mumificar o chefe máximo da revolução, pois fora Lenin quem mais detestava e mais combatera os resquícios de medievalismo da Rússia bizantina, que teimavam em perdurar mesmo depois da ascensão dos bolcheviques ao poder.
Mumificando Lenin
Mausoléu de Lenin na Praça Vermelha, em Moscou
Stalin alegou que o Comitê Central não poderia frustar as massas. Autorizou então a entrega dos seus despojos ao doutor Alexei Abrikosov, um patologista, para que aplicasse uma solução de formalina, álcool, cloro, água e glicerina, no corpo do defunto. De fato, de todos os lados não cessava de fluir gente para vê-lo. Vindos do Cáucaso, da Ucrânia, dos Urais, da Sibéria, de todas as partes enfim daquele colossal império, a gente simples do povo, amontoando-se na neve - os humilhados e ofendidos de Dostoievski - guardava a esperança de olhar, ainda que a distância, para Lenin. Durante os primeiros três dias a procissão foi incessante, acredita-se que mais de um milhão de pessoas prestaram-lhe homenagem. Quando os altos dirigente comunistas decidiram fechar o recinto, em 26 de janeiro, um zumbido de revolta partindo da multidão os fez voltar atrás. Stalin convenceu-os então de que Lenin teria para si um mausoléu permanentemente aberto (aprontado somente em 1929).
Lenin previu o seu fim
Um milhão de visitantes
Quatro anos antes, também num inverno, em dezembro de 1920, Lenin com sua habitual franqueza, no 8º Congresso dos Sovietes, confessara publicamente que estava doente. Percebera que sua cabeça falhava, esquecia o que dizer. Até as palavras mais simples, queixou-se ele, sumiam-lhe da lembrança. O feito revolucionário o exaurira. Naqueles últimos anos o governo dos sovietes, fundando por ele em outubro de 1917, enfrentara uma sanguinária guerra civil com os exércitos brancos czaristas, repelira a ocupação estrangeira da Rússia, e ainda por cima inimizara-se de morte com o resto da esquerda não-bolchevique.
O Atentado, a Fome e o Tifo
O regime de Lenin sobrevivera ao bloqueio, à fome e ao tifo (que inclusive matou Anessa Armand, a amada do líder). Ele mesmo escapou de ser morto a tiros por um milagre num atentado da extrema-esquerda em 30 de agosto de 1918, quando duas balas atingiram-lhe o antebraço e o pescoço. Aturdido também ficou com a catastrófica grande fome de 1920-21, resultante das atribulações da guerra civil e da chamada política do "comunismo de guerra", quando pelotões vermelhos e esquadrões da Cheka (o comissariado da polícia secreta) varreram os campos russos, desesperados atrás de grãos e carnes, realizando extrações forçadas e requisições na ponta dos fuzis.
As requisições de alimentos e suas conseqüências (URSS, 1921)
Porém o mais doloroso para ele era a carência de pessoal, a falta de gente qualificada para levar o projeto revolucionário adiante. Os quadros bolcheviques, excelentes para destruir a velha ordem, eram incapazes, no seu ponto de vista, de forjar uma nova máquina administrativa que tornasse viável o slogan "socialismo = sovietes + eletricidade", no qual Lenin depositava suas maiores esperanças.
Atrás do Cordão Sanitário
Lenin, um espectro do que fora (1923)
"Comunas de ignorantes", os chamou certa vez exasperado. A isso somou-se a desesperança em ver a revolução socialista se espalhar pelo resto da Europa, por Munique, por Berlim, por Budapeste, por Varsóvia. Ao contrário do que pareceu num primeiro momento que iria ocorrer, a contra-revolução deteve os socialistas pró-bolcheviques em toda a parte. A antiga Rússia, dali em diante denominada de União das Repúblicas Soviéticas, ficou isolada do mundo. O Ocidente em peso a colocou atrás de um cordão sanitário (expressão do presidente francês George Clemenceau). Quando em 21 de janeiro de 1924 o terceiro e último derrame finalmente o prostrou, Lenin era apenas uma sombra do que fora. A sua prodigiosa energia esvaíra-se. Numa das suas últimas fotos, onde ele aparece
Casa Morozov
sentado numa cadeira de rodas, vê-se que ele envelhecera assombrosamente para um homem que mal ultrapassara os cinqüenta anos de idade (faria 54 anos em 22 de abril). Até no seu forte olhar, com as pupilas bem abertas, via-se que a sua hora chegara. Morreu na bela casa desapropriada de Morozov, um ricaço moscovita, terminando num sarcófago como se fosse um imperador bizantino.
Ícone Soviético
Lenin, ícone pop
Desde então Lenin morou no coração de grande parte do povo russo. Mesmo sabendo-o um homem duro, brutal, achavam-no bem intencionado, com uma imagem positiva. Entenderam-no como um Czar ilustrado, incorruptível, que queria colocar a casa em ordem e "dar pão ao povo". Tão popular ele se tornou que por toda a URSS os jovens nubentes, no dia do seu casamento, tinham por hábito, pensando em alcançar a sorte, postarem-se em frente a sua estátua (em cada cidade, vila ou aldeia russa havia uma) e jogarem na direção dela uma ramo de flores.
Com o colapso do regime comunista em 1991, a nova Rússia, confusa e caótica, hesita em dar um destino ao seu cadáver, como se não soubesse que passo dar adiante - o que fazer afinal com a múmia de Lenin?
Fonte: http://educaterra.terra.com.br/voltaire/mundo/mumia_lenin3.htm