Os filhos do nazismo
67 anos após o término do regime totalitarista empregado na Alemanha de 1933 a 1945, filhos de generais alemães, que contribuíram diretamente para o sofrimento e morte de milhões de pessoas, carregam o peso pelos pecados que não cometeram. Está no sangue de cada um a herança de um dos episódios mais aterradores da história...
Por Thais e Silva
Heinrich Himmler e sua filha Gudrun, 1941
Recentemente, foi descoberto que netos postiços do ministro da propaganda de Adolf Hitler, Joseph Goebbels, herdaram do avô biológico, Guenther Quandt, uma quantia milionária. Quandt era dono de indústrias bélicas que, entre 1940 e 1945, produziram armas e mísseis para o governo nazista, muitas vezes à custa de trabalho forçado realizado por prisioneiros dos campos de concentração. Quando morreu, em 1954, deixou uma grande fortuna para seus filhos, Herbert e Harald, que anos depois compraram parte da fabricante de automóveis BMW, aumentando consideravelmente seu capital.
Na década de 1960, a família de Herbert evitou a quebra da BMW em um momento delicado pelo qual a empresa passou. A estratégia foi a criação de novos modelos de carros e, diante do sucesso, tornou-se acionista majoritária da montadora. Já a família de Harald participava mais timidamente das ações da empresa, porém seus descendentes contam hoje com uma fortuna de cerca de R$ 6 bilhões.
Por mais que a herança não tenha vindo do avô postiço (Goebbels era o segundo marido de Magda, avó dos herdeiros), diretamente envolvido com o nazismo, a descoberta abriu margem para discussões sobre os possíveis caminhos que descendentes de pessoas envolvidas com o regime tenham percorrido. Quem são, por onde andam e quais fardos os filhos do nazismo carregam?
Joseph Goebbels, em um retrato oficial Guenther Quandt Harald Quandt
Herbert Quandt Magda Goebbels, avó de Harald e Herbert Katrin Himmler
A herança nazista
O regime político instaurado na Alemanha por Adolf Hitler, e que se estendeu de 1933 a 1945, deixou marcas profundas em todos os aspectos da história mundial. A visão nacionalista amplamente difundida entre o povo alemão, por meio de propagandas, discursos - e outras formas de contato do Führer com a população -, rapidamente se tornou uma "ideologia" e, como tal, subjugou a sociedade alemã, fazendo com que Hitler fosse literalmente venerado.
A "limpeza racial" foi uma das primeiras medidas tomadas pelo ditador. Judeus, negros, testemunhas de Jeová e homossexuais foram severamente perseguidos, mas os judeus eram odiados de maneira singular por Hitler - que os considerava responsáveis pelo fracasso da Alemanha na 1ª Guerra Mundial. Foi criada, então, a Gestapo (Polícia Política Secreta) com o propósito de perseguir e prender os que faziam parte desses grupos e, em seguida, os campos de concentração - destino das pessoas sumariamente capturadas durante o regime.
Os atos de violência praticados nesses campos jamais foram esquecidos - mesmo com o fim do regime. As imagens das atrocidades divulgadas após a chegada das tropas dos aliados estarreceram o mundo e legaram uma marca indelével na história mundial. Muitas vidas foram destruídas, outras tantas marcadas para sempre, porém, não apenas as dos sobreviventes ao massacre, mas também a dos descendentes dos que comandaram durante o período.
O passado presente
O alemão Rainer Hoess, neto de Rudolf Hoess, primeiro comandante do campo de concentração de Auschwitz, não consegue lidar facilmente com o passado de sua família. O pai de Rainer, que nunca perdeu a ideologia nazista, foi criado em uma casa próxima ao local e brincava com os brinquedos construídos pelos prisioneiros... Contudo, foi em uma passagem com a avó que Rainer ficou conhecendo a suástica, cruz símbolo do nazismo. Ela estava estampada em um baú em que fotos de família eram guardadas.
Rainer carrega consigo a culpa das atrocidades cometidas em Auschwitz a mando de seu avô. E também sente vergonha por sua família ter feito parte do regime que sentenciou a vida de milhões de pessoas. Somente após os 40 anos de idade decidiu visitar o local onde o campo de concentração funcionou. Após momentos de indignação ao sentir de perto a atmosfera de horror que paira no lugar, Rainer teve um momento de absolvição quando descendentes de sobreviventes ao regime lhe disseram que os familiares dos nazistas não têm culpa do que aconteceu.
Outra descendente que por algum tempo carregou culpa e vergonha por fazer parte da mesma família de um nazista foi Katrin Himmler, sobrinha-neta de Heinrich Himmler, figura importante na organização e execução do Holocausto. Em uma tentativa de amenizar o peso negativo que existe sobre o sobrenome de sua família, Katrin escreveu o livro The Himmler Brothers: A German Family History (Os Irmãos Himmler: História de uma Família Alemã). Na obra, ela tentou contar a história da família de uma maneira mais distante e crítica, dissociando-se de todos os acontecimentos.
E Katrin Himmler foi além em seu intento de se desvencilhar de qualquer ligação com o regime nazista: casou-se com um judeu filho de sobreviventes da Polônia.
AS MARCAS DOS DESCENDENTES JUDEUS
Se de um lado, o legado do nazismo é um fardo para descendentes de pessoas envolvidas com o regime, do outro, parentes de judeus que vivenciaram o Holocausto também encaram a história com bastante pesar, mas fazem questão de mantê-la viva. É o caso do israelense Doron Diamant, de 40 anos, que tatuou em seu braço o número 157622 - referente ao registro ao qual seu pai foi submetido ao chegar no campo de concentração de Auschwitz, em 1942. Ele declara que é uma forma de preservar a memória do pai e não deixar que as práticas do nazismo caiam no esquecimento.
Outra judia envolvida diretamente com a memória de seus antecessores é a brasileira Claudia Ehrlich Sobral, que em visita à Alemanha durante a Copa do Mundo de 2006 foi tomada por sentimentos indescritíveis contra o povo alemão e sentiu a necessidade de saber o que os pais e avós daquelas pessoas fizeram durante o nazismo. Para superar esses "fantasmas", decidiu produzir um documentário com depoimentos de descendentes de militares nazistas, o que deu origem ao filme de média-metragem Os Fantasmas do Terceiro Reich. Diante dos depoimentos, regados de sentimentos de culpa e lamentações, Claudia chegou à conclusão de que todos, descendentes de judeus e de nazistas, são vítimas do que aconteceu no passado.
Depoimentos
Em documentário lançado em 2011, intitulado Hitler's Children (Crianças de Hitler), além de depoimentos de sobreviventes do Holocausto, descendentes de nazistas contam como descobriram, cresceram e convivem com o legado deixado por seus antepassados.
Foi a vez de Monika Hertwig, que já tinha visto a história de seu pai, Amon Göth, chefe do campo Plaszów, imortalizada no filme "A lista de Schindler", contar como foi descobrir os episódios dos quais seu pai teve um dos principais papéis. "Perguntei para a minha mãe: quantos judeus o papai matou? Ela disse: alguns. Eu perguntei: alguns quantos, dois, três, quatro? Nenhuma resposta. Minha mãe disse que ameaçou largar meu pai se ele matasse mais judeus. Ele parou de fazer, pelo menos na frente dela. O que ele fazia nos campos era outra coisa", conta Monika no filme.
Foi aos 13 anos que ela conheceu o primeiro judeu, quando viu um número tatuado no braço de um homem. Era o dono da lanchonete em que ela estava. Ele, ao descobrir de quem Monika era filha, pediu que ela se retirasse do local.
Outro descendente que participou do documentário foi Niklas Frank, filho de Hans Frank, chefe do governo-geral polonês e responsável pelos campos de extermínio do país. Hoje, Niklas ministra conferências e palestras sobre o nazismo para jovens alemães embasado, em pesquisas que ele realizou durante anos sobre a atuação de seu pai no regime. "Sim, eu me sinto responsável pelas ações do meu pai e me envergonho delas. Não posso amar um pai que deixou fornos cheios de corpos. Existem dois modos de sobreviver como um filho de criminoso de guerra: defendê-lo até o fim como meus irmãos mais velhos, ou confrontar suas ações e admitir: sim, nosso pai foi um assassino", diz ele na produção.
Rainer Hoess, neto do comandante de Auschwitz, Rudolf Hoess
Heinrich Himmler (centro) e sua jovem filha Gudrun Himmler (esq.), em uma visita a um campo de concentração
Rudolf Hoess Amon Göth
A "princesa nazista" Gudrun Burwitz hoje vive uma vida anônima em um subúrbio de Munique
Marcha pela vida: a união dos herdeiros
Em agosto de 2012, descendentes de soldados alemães e de judeus mortos durante o regime nazista se uniram em uma marcha que simbolizou a reconciliação dos dois povos.
O evento aconteceu na Polônia com a participação de cerca de 400 pessoas que percorreram um trajeto de quase 2 mil quilômetros de extensão: com início no campo de Auschwitz, local onde ocorreu a maior parte das mortes em decorrência do nazismo, e com ponto final em Treblinka, perto da capital Varsóvia. Durante todo o percurso, os participantes carregaram bandeiras da Alemanha, Polônia e Israel.
Atitude extrema
Para não passar adiante os genes da família, interrompendo um legado difícil de suportar, dois irmãos optaram por uma atitude radical. Bettina Goering e seu irmão, sobrinhos-netos de Hermann Goering, o primeiro na linha de poder do Partido Nazista depois de Hitler, recorreram à esterilização. Não existir mais "Goerings" no mundo era o grande objetivo, que eles definem como "o fim da linha".
Além do sobrenome, outro detalhe que perturbava Bettina era a semelhança com o tio-avô, fato que a fez se mudar da Alemanha para o Estado do Novo México, nos EUA, há mais de 30 anos. Ela considera que é mais fácil lidar com o passado mantendo distância da família.
Monika Hertwig William Patrick Hitler
Alois Hitler Jr. Hermann Goering
Brigitte, Hans e Niklas Frank Niklas, aos 71 anos, após uma conversa com estudantes no cemitério em Nagold, Alemanha, onde há 40 túmulos de escravos do nazismo
O sobrenome Hitler
Carregar a alcunha de alguém envolvido diretamente com o nazismo se tornou um fardo pesado para muitas pessoas. Mas ter nos documentos o sobrenome Hitler parece algo mais difícil ainda. Tanto que três descendentes do ditador (filhos de William Patrick Hitler, meio-sobrinho do Führer), que vivem na pequena cidade de Patchogue, em Nova Iorque, decidiram adotar outro sobrenome: Stuart-Houston. Alexander, Louis e Brian são comerciantes, donos da empresa de jardinagem Fantastic Gardens.
O pai dos irmãos Stuart-Houston era filho de Alois Hitler Jr., meio-irmão de Adolf por parte de pai (fruto do primeiro casamento do sr. Alois). Apesar do ódio declarado ao tio, William batizou seu primeiro filho de Alexander Adolf. O primogênito, além de comerciante e proprietário da empresa de jardinagem, é um assistente social que cuida de veteranos de guerra. Os três irmãos sempre evitaram conversar com a imprensa e decidiram não ter filhos para "acabar com a saga".
A curiosidade acerca da árvore genealógica do ditador nazista é tamanha que um funcionário público belga dedicou dez anos a uma pesquisa sobre os descendentes de Hitler, cujo resultado foi revelado em 2009. Marc Vermeeren descobriu a existência de 40 parentes diretos de Führer, a maior parte deles na Baixa Áustria, local de origem do Führer. Nenhuma delas manteve o sobrenome Hitler: substituíram por Hüttler, Schmidt ou Komppensteiner.
Saiba +
Hitler's Children (Crianças de Hitler). Direção: Chanoch Zeevi (documentário).
Os Fantasmas do Terceiro Reich. Direção: Claudia Ehrlich Sobra (documentário).
Lore. Direção: Cate Shortland (filme).
Folha de S. Paulo - Herdeiros de Goebbels, ministro de Hitler, hoje são bilionários.
BBC Brasil - Filhos e netos de nazistas relatam trauma de lidar com passado sombrio.
Fonte: http://leiturasdahistoria.uol.com.br/ESLH/Edicoes/61/artigo290384-3.asp