7.2.11

Imagens de índios do Brasil: o século XVI

Manuela Carneiro da Cunha

Há vários discursos sobre os índios no século XVI: toda uma literatura e uma iconografía de viagens, com desdobramentos morais e filosóficos firma seus cânones ao longo do século; um corpus legiferante e de reflexão teológica e jurídica elabora, passada a era do escambo, uma ordenação das relações coloniais; paralela à conquista territorial, a conquista espiritual, por sua vez, se expressa sobretudo em um novo gênero, inaugurado pelos jesuítas e destinado a obter grande sucesso: as cartas, que se fazem cada vez mais edificantes. Excepcionalmente, temos o relato de um colono, e no finzinho do século, o olhar curioso da Inquisição na Bahia e em Pernambuco.

Os índios do Brasil são, no século XVI, os do espaço atribuído a Portugal pelo Papa no Tratado de Tordesilhas, ele próprio incerto em seus limites, algo entre a boca do Tocantins a boca do Parnaíba ao norte até São Vicente ao sul, talvez um pouco além se incluirmos a zona contestada dos Carijós. Os índios do rio Amazonas, na época sobretudo um rio "espanhol" , não contribuem propriamente para a formação da imagem dos índios do Brasil. Essa imagem é, fundamentalmente, a dos grupos de língua Tupi e, ancilarmente, Guarani. Como em contraponto, há a figura do Aimoré, Ouetaca, Tapuia, ou seja aqueles a quem os Tupi acusam de barbárie.

Primeiros Olhares

Os portugueses, fascinados pelo Oriente, pouco especularam sobre o Novo Mundo. Nem objeto de conhecimento ou reflexão, nem sequer ainda de intensa cobiça, o Brasil passou em grande parte despercebido durante os primeiros cinqüenta anos de seu contato. Camões dedica-lhe quatro magros versos - evocando o pau brasil - no último canto dos Lusíadas (estrófe 1086, v. 138-141), publicados em 1572, e até o espanhol Ercilla falará mais dos brasileiros do que o poeta português. É só na década de 1570 que Gandavo escreve seu Tratado da Terra do Brasil (circa 1570) e sua História da Província de Santa Cruz (1576),' obras provavelmente de incentivo à imigração e a investimentos portugueses, semelhantes às que, bem mais cedo, os ingleses haviam feito para a Virgínia. No prólogo à História da Provncia de Santa Cruz, Gandavo fala do "pouco caso que os portugueszes fizeram sempre da mesma província" e diz que " os estrangeiros a tem noutra estima, e sabem suas particularidades melhor e mais de raiz que nós'(p.76). Todo o interesse, todo o imaginário português se concentra, à época, nas índias, enquanto espanhóis, franceses, holandeses, ingleses, estão fascinados pelo Novo Mundo, cada qual aliás, a partir de regiões específicas: a América dos Espanhóis é antes de tudo o México e o Peru, a dos ingleses, a Flórida, e a dos franceses é sobretudo o Brasil (N.Broc 1984: 159).

A primeira carta sobre o Brasil, a belíssima carta de 1500, escrita por Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel, fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses. São as cartas de Américo Vespucci - as autênticas e as apócrifas - talvez por serem endereçadas a Lourenço de Medici e, através dele, ao público letrado europeu, que notabilizaram a então Terra de Vera Cruz e seus habitantes.

Por mais exatas que sejam (e certamente são mais escrupulosas do que muitos relatos posteriores), as primeiras cartas já se assentam em idéias propagadas desde o Diário da Primeira viagem de Colombo, elas próprias enraizadas nos relatos de viagens - reais ou imaginárias -de Marco Polo, de Mandeville, do Preste João: idéias de Paraíso terreno e de fonte da juventude à sua proximidade, de Amazonas e de seus tesouros, mitos de origem medieval ou clássica que povoam o imaginário dos "descobridores" (1), e que se insinuam nas mais verazes descrições. Os viajantes vêem por indícios e ouvem dos índios, sabe-se lá em que língua, o que a Europa procura e antecipa: seus relatos, confrontados às tradições clássicas, são por sua vez sistematizados por cosmógrafos - como Pedro Mártir, o milanês, que escreve em Sevilha - que, em pouco tempo, estabelecem um corpo canônico de saber sobre o novo mundo, realimentador da observação. Terão vida particularmente longa as primeiras notícias de Colombo sobre a inocência, a docilidade, a ausência de crenças da gente que encontrou, elaboradas, segundo Gerbi (1978(1975):27-28), para convencer os Reis Católicos da facilidade de se dominarem terras tão prodigiosamente férteis e ricas de ouro e especiarias.

A carta de Pero Vaz de Caminha é, na verdade, um diário, que registra de 22 de Abril a 10 de Maio de 1500, uma progressiva descoberta dos homens (desde o primeiro instante, não há dúvida de que são homens) e das mulheres de Porto Seguro. A primeira imagem, a mesma que Colombo tivera nas antilhas, é de que todos vão nus e são imberbes: " homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cubrisse suas vergonhas, traziam arcos nas mãos e suas setas' (P.V.Caminha 1968 (1773):21). E Caminha compraz-se em um jogo de palavras e em uma primeira comparação, dizendo das moças que tinham " suas vergonhas tão altas, tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha" (P.V.Caminha, ibidem: 36-7). E, mais adiante, dirá de outra índia que era " sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela"(ibidem: 40).

A essa imagem de nudez que será retomada, com menos talento literário, por Vespucci (2), associa-se a idéia de inocência (p.25, 91), Caminha, com aparente candura, contrasta a ingenuidade comercial e a confiança inicial destes homens que, desde o primeiro dia, se estendem e dormem no convés do navio, com a deslealdade, a cupidez e a sede de ouro e prata dos portugueses (pp.27,30,53,49,66,76). Esses homens são formosos, gordos e sadios, como as " alimárias monteses às quais f az o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas". Essa idéia de não domesticação dessa gente que nada domestica - nem plantas nem animais - é, em Caminha, tão poderosa, que o leva a ignorar a agricultura dos índios, a não dar realce às redes e jangadas que menciona, e a presumir, só para ser desmentido no dia seguinte, que eles sequer tenham casas onde se abriguem (pp.81,59, 65-66). Gente "bestial" a ser amansada (pp.59,58,77,82), por quem Caminha nutre uma evidente simpatia e sobre a qual inaugura uma série de duradouros e etnograficamente duvidosos lugares-comuns: não têm chefe ou principal (sequer distinguindo o capitão-mor que os recebe em toda a sua pompa) (pp. 46,52,27); não tem nenhuma idolatria ou adoração (pp.90-91, 80); são uma argila moldável, uma tabula rasa, uma página em branco - " e imprimir-se-á com a ligeiresa neles qualquer cunho, que lhes quiserem dar" (p.80). Gente, em suma, que não sujeita a natureza como não se sujeita a si mesma a jugo algum: gente montesa, gente " selvagem" (3).

Vespucci era o cosmógrafo da segunda expedição, a que Dom Manuel mandou em 1501, e que percorreu a costa durante dez longos meses, do cabo São Roque até São Vicente. Conta que passou 27 dias comendo e dormindo entre os "animais racionais" da Nova Terra, e é ele quem completa o inventário básico do que, daí por diante, se dirá dos índios(4). Vespucci, que fala da sua nudez, não fala mais da sua inocência: ao contrário, é ele quem relata pela primeira vez a antropofagia indígena. O retrato que faz é paradoxal: entre si, tudo têm em comum, mas vivem em guerra cruel contra seus inimigos. As razoes dessa guerra perpétua, diz Vespucci, são misteriosas já que não têm propriedade particular, já que não guerreiam para se assenhorearem de terras ou de vassalos, já que ignoram o que seja a cobiça, o roubo ou a ambição de reinar. Dizem eles apenas que querem vingar a morte de seus pais e antepassados. Fica assim introduzida a idéia de uma guerra desinteressada embora bestial e de uma antropofagia de vingança e não alimentar: distinção importante a que retornaremos mais adiante.

A ausência de propriedade e portanto de cobiça e de herança são elementos novos que Vespucci acentua. E Vespucci também quem, pela primeira vez - resquício do mito da fonte da juventude? - fala da longevidade dos brasileiros: " Son gente que vive muchos anõs, porque según sus descendencias conocimos muchos hombres que tienen hasta la cuarta generación de nietos. No saben contar los días ni el año ni los meses, salvo que miden el tiempo por meses lunares, y quando quierem mostrar la edad de alguna cosa lo muestran con piedras, poniendo por cada luna una piedra, y encontré un hombre de los más viejos que me señaló con piedras haber vivido 1700 lunas, que me parece son 130 años, contando trece lunas por año" (Vespucci, Carta a Lorenzo de Médici, Lisboa, outono de 1501 in L.N.d'Olwer 1963: 542) (5). De resto, com pequenos acréscimos sobre costumes matrimoniais não necessariamente corretos (mas também com boa descrição de casas, redes e adornos), Vespucci repete a Caminha: essa gente não tem lei, nem fé, nem rei, não obedece a ninguém, cada um é senhor de si mesmo. Vive secundam naturam e não conhece a imortalidade da alma (6).

Está assim formado o lastro de uma concepção dos brasileiros que vigorará, com poucos retoques, entre os que praticarem o escambo de pau-brasil, papagaios, macacos e outras riquezas, ou seja entre os portugueses, até 1549, e entre os outros europeus, até muito mais tarde. Os sucessivos navios de várias nacionalidades e os intérpretes normandos ou degradados portugueses aqui estabelecidos devem ter consolidado esse saber, de tal forma que, em 1519, o italiano Antonio Pigafetta, de passagem na expedição de Fernão de Magalhães, fornece já algo como um "dictionnaire des idées recues" sobre o Brasil do início do século XVI. Condensado, já tudo está lá: brasileiros e brasileiras vão nus, vivem até 140 anos, " não são cristãos mas também não são idolatras, porque não adoram nada" , comem a seus inimigos, tecem redes, fazem canoas, moram em grandes casas,...(A.Pigafetta 1985(1524?):57 ss.).

É somente a partir da década de 50 que o conhecimento do Brasil se precisará, e agora de maneiras divergentes. Teremos duas linhas divisórias básicas: uma que passa entre autores ibéricos, ligados diretamente à colonização - missionários, administradores, moradores - e autores não ibéricos ligados ao escambo, para quem os índios são matéria de reflexão muito mais que de gestão; a outra que separa, nesse período de intensa luta religiosa, autores usados por protestantes de autores usados por católicos.

Nesta última categoria, temos o detestável, pedante, condescendente e - segundo o huguenote Léry - mentiroso, franciscano André Thévet, que afirma ter visto o que não viu, ter estado onde não esteve e preenche suas lacunas com fastidiosos e desconexos exemplos clássicos para cada uma das instituições descritas (7). Contrapondo-se a Thévet, direta ou indiretamente, temos também dois autores excepcionais que estiveram entre os Tupinambá mais ou menos na mesma época, mas em posições simétricas, um como inimigo destinado a ser comido, outro como aliado: o artilheiro do Hesse, Hans Staden, que viveu prisioneiro dos Tupinambá, e os descreve como inteligência e pragmatismo em livro publicado originalmente em 1557 que conheceu imediato sucesso - quatro edições em um ano -, e o calvinista Jean de Léry que passa alguns meses, em 1557, com os mesmos Tupinambá quando a perseguição que Villegagnon move aos huguenotes os obriga a se instalarem em terra firme. O livro de Lery só é publicado em 1578, e embora o autor afirme que o redigiu em 1563, várias passagens atestam interpolações posteriores a esta data. Seja como for, a edição em 1592, em Francforte, da terceira parte da Coleção de Grandes Viagens ilustrada pelo ourives, gravurista e propagandista huguenote Theodor de Bry, que reunia os livros de Hans Staden e de Jean de Léry, publicados simultáneamente em alemão e em latim, consagra a influência desses autores fundamentais. Também republicado alguns anos mais tarde por Bry, provavelmente por atestar os péssimos hábitos dos conquistadores espanhóis, que chegam, entre outras coisas,a devorar enforcados, quando a fome os aperta em Buenos Aires, está o mercenário alemão Ulric Schmidel, que passou vinte anos perambulando pelo rio Paraguai a partir de 1537, e que fornece uma espécie de roteiro gastronômico das múltiplas etnias por que passou, entre os quais os carijós.

O Teu e o Meu

Um dos traços que mais será celebrado nesse contexto sobretudo por Jean de Lery é, sem dúvida, o da suposta ausência de propriedade material e de cobiça, com sua crítica explícita a sociedades movidas pelo lucro e pelo entesouramento (p.ex. J.de Léry 1972 (1578): 125-126,180, 230). Não que os Tupinambá não desejassem bens materiais, e todo o comércio baseava-se nesse desejo: simplesmente não acumulavam, não transmitiam a herdeiros e entre si partilhavam a comida (H.Staden 1972(1557): 167, A.Thévet 1972(1558) (:144). " Têm estes Tupinambás uma condição muito boa para frades franciscanos, escreverá Soares de Sousa (1971 (1587):313) que neste ponto concorda com os autores não ibéricos, porque o seu fato, e quanto têm, é comum a todos os da sua casa que querem usar dele; assim das ferramentas que é o que mais estimam, como das suas roupas se as têm, e do seu mantimento; os quais, quando estão comendo, pode comer com eles quem quiser, ainda que seja contrário, sem lho impedirem nem fazerem por isso carranca"

Sem F, Sem L, Sem R

Desde Caminha e Vespucci, e, já vulgarizada a idéia, em 1515 na Nova Gazeta Alemã (apud S.B.de Holanda 1977(1959): 106), menciona-se com certa ambivalência - seria o éden? seria a barbárie? -a ausência de jugo político e religioso entre os brasis. A idéia tornar-se lugar-comum ao longo do século (p.ex. Thévet 1978(1558): 98,), mas ganha com Gandavo uma forma canónica em que palavras e coisas se confundem: "A lingua, deste gentio toda pela Costa he, huma: carece de três letras - scilicet, não se acha nella F, nem L, nem R, cousa digna de espanto, porque assi não têm Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente" (P.M.Gandavo 1980 (1570): 52). Uma década e meia mais tarde, Gabriel Soares de Sousa retoma a fórmula de Gandavo com particular graça: " Faltam-lhes três letras das do ABC, que são F,L,R grande ou dobrado, coisa muito para se notar; porque, se não têm F, é porque não têm fé em nenhuma coisa que adorem; nem nascidos entre os cristãos e doutrinados pelos padres da Companhia têm fé em Deus Nosso Senhor, nem têm verdade, nem lealdade e nenhuma pessoa que lhes faça bem. E se não têm L na sua pronunciação, é porque não têm lei alguma que guardar, nem preceitos para se governarem; e cada um faz lei a seu modo, e ao som da sua vontade; sem haver entre eles leis com que se governem, nem têm leis uns com os outros. E se não têm esta letra R na sua pronunciação, é porque não têm rei que os reja, e a quem obedeçam, nem obedecem a ninguém, nem ao pai o filho, nem o filho ao pai (sic), e cada um vive ao som da sua vontade; para dizerem Francisco dizem Pandeo, para dizerem Lourenço, dizem Rorenço (sic), para dizerem Rodrigo dizem Rodigo (sic); e por este modo pronunciam todos os vocábulos em que entram essas três letras"(G.S.de Sousa 1971 (1587) :302).

Na França, onde os mercadores normandos continuam prosperando com o comércio de pau-brasil obtidos por escambo com os Tupinambá, essa carência de letras e de jugos não preocupam, mas ao contrário fazem sonhar. Ronsard, em sua "Complainte contre Fortune" de 1559, fala dessa América da Idade do Ouro para onde deseja ir.

"Où le peuple incognu
Erre innocemment tout farouche et tout nu
D 'habis tout aussi nu qu 'il est nu de malice
Qui ne cognoist les noms de vertu, ny de vice,
De Sénat, ni de Roy, qui vit à son plaisir,
Porté de l 'apétit de son premier désir"

O Brasil e os brasileiros estão lá em tão alta estima que, em 1550, quando o rei Henrique II e a rainha Catarina de Médicis fazem sua entrada triunfal em Ruão, é-ihes oferecida uma festa brasileira. Para a circunstância, trezentos figurantes, entre verdadeiros índios de trazidos à França, marinheiros normandos e prostitutas, todos despidos à moda Tupinambá, representam cenas de caça, de guerra, de amor, e até de abordagem a um navio português. Os choupos são pintados e carregados de bananas, papagaios e macacos são soltos no arvoredo (F.Denis 1851). O Brasil é o paraíso terreal.

Cães, Canibais

Paradoxalmente, a outra imagem que se vulgariza, e que se torna emblemática do Brasil é a dos índios como canibais. Em 1540, por exemplo, o mapa de Sebastian Munster, na Geografia de Ptolomeu publicada em Basileia, coloca laconicamente, no espaço ainda largamente ignoto entre a boca do Amazonas e a boca do rio da Prata, a palavra Canibali, e a ilustra com um feixe de galhos de onde pendem uma cabeça e uma perna (Schwartz e Ehrenberg 1980, p.50, p1.18 e p.45)."São cãis em se comerem e matarem" escreverá Nóbrega (Nóbrega in Leite vol.II:321), implicitamente evocando a assimilação que o Renascimento fez entre canibais e cinocéfalos, homens com cabeça de cães, como explica Rabelais no seu glossário do Quarto Livro de Pantagruel: "Canibales, peuple monstrueux en Afrique, ayant la face comme chiens et aboyant au lieu de rire" (Rabelais 1955(1552): 737). ps canibais são, na verdade, um fantasma, uma imagem, que flutua por muito tempo no imaginário medieval sem lograr ser geograficamente atribuído. Colombo, ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram, permite uma primeira localização americana desse fantasma, assimilando caribes e canibais numa sinonimia que irá perdurar, no século XVIII, até à Enciclopédia (8).

Antropófagos Mas Não Canibais

Os Tupi, no entanto, não são canibais, e sim antropófagos: a distinção que é, num primeiro momento léxica, e mais tarde, quando os termos se tornam sinônimos (9), semântica, é crucial no século XVI, e é ela quem permitirá a exaltação do índio brasileiro. A diferença é esta: canibais são gente que se alimenta de carne humana; muito distinta é a situação dos tupi que comem seus inimigos por vingança.

É assim que Pigafetta distingue os brasileiros que são antropófagos, dos canibais, imediatamente ao sul (A.Pigafetta 1985 (1524?). Thévet que assimila canibais, caribes insulares das Antilhas e possivelmente os caetés ou os potiguaras, escreve: "Os canibais, cujas terras vão do Cabo de Santo Agostinho às proximidades do Marinhão, são os mais cruéis e desumanos de todos os povos americanos, não passando de uma canalha habituada a comer carne humana do mesmo jeito que comemos carne de carneiro, se não até com maior satisfação" (A.Thevet 1971(1558): 199). Thévet chega a declarar que os "canibais" alimentam-se exclusivamente de carne humana (A.Thevet 1978 (1558): 100). Mas os Tupinambá, se comem aos inimigos, "fazem isto, não para matar a fome, mas por hostilidade, por grande ódio" (H.Staden: 176).

Quanto a Américo Vespucci, o primeiro a falar da instituição entre os tupi, uma leitura desatenta que poderia sugerir que ele esteja relatando uma antropofagia alimentar. O que ele diz, no entanto, falando da dieta variadíssima dos índios (ervas, frutas ótimas, muito peixe, mariscos, ostras, camarões e caranguejos), é que, quanto à carne, por não terem cachorros que os ajudem na caça, a que mais comem é carne humana (Vespucci, Carta a Lorenzo de Medici, Lisboa, outono de 1501 in L.N.d'Olwer 1963: 542). Um ano antes, em outra carta, relatando sua viagem à ilha da Trinidad, Vespucci havia falado, aí sim, dos canibais que vivem de carne humana(Vespucci, Carta a Lorenzo de Mediei, Sevilha, 18.07.1500 in L.N.d'Olwer 1963: 43).

A antropofagia, nisso não se enganaram os cronistas, é a Instituição por excelência dos tupi: é ao matar um inimigo, de preferência com um golpe de tacape, no terreiro da aldeia, que o guerreiro recebe novos nomes, ganha prestígio político, acede ao casamento e até a uma imortalidade imediata. Todos, homens, mulheres, velhas e crianças, além de aliados de outras aldeias, devem comer a carne do morto. Uma única exceção a esta regra: o matador não come sua vítima. Comer é o corolário necessário da morte no terreiro, e as duas práticas se ligam: "Não se têm por vingados com os matar sinão com os comer" (A.Blasquez a Loyola, Bahia, 1557 in Navarro e outros, 1988, p. 198). Morte ritual e antropofagia são o nexo das sociedades tupis (10).

São esses canibais que conhecerão com Montaigne uma consagração duradoura. Tornam-se a má-consciência da civilização, seus juizes morais, a prova de que existe uma sociedade igualitária, fraterna, em que o Meu não se distingue do Teu, ignorante do lucro e do entesouramento, em suma, a da Idade de Ouro. Suas guerras incessantes, não movidas pelo lucro ou pela conquista territorial, são nobres e generosas. Regidos pelas leis naturais, ainda pouco abastardas, estão próximos de uma pureza original e atestam que é possível uma sociedade com " peu d'artífice et de soudeure humaine" . Em uma passagem que Shakespeare retomará na sua Tempestade, Montaigne resume essas virtudes: " C 'est une nation... en laquelle il n*y a nulle espèce de trafique; nulle cognoissance de lettres; nulle science des nombres; nul nom de magistrat, ny de supériorité politique; nul x usage de service, de richesse ou de pauvreté; nuls contracts; nulles successions; nuls partages; nulles occupations qu 'oysives; nul respect de parenté que communnuls vestemens: nulle agriculture: nul métal; nul usage de vin ou de bled. Les paroles mesmes qui signifient le mensonge, la trahison, la dissimulation, I'avarice, I 'envie, la détraction, le pardon, inouies" (Montaigne 1952(1580): 235-236) (11). Até sua culinária é sem artifícios! Este resumo das virtudes dos canibais, com seus lapsos evidentes - a agricultura por exemplo, existe entre os Tupis (12) - não é um discurso de etnólogo e sim de moralista, e como tal deve ser entendido: constitui o advento de uma duradoura imagem, a do selvagem como testemunha de acusação de uma civilização corruptora e sanguinária. Não é fortuito que Montaigne, no fim de seu ensaio, mencione as objeções que ouviu de três índios brasileiros com quem o rei Carlos IX (que entrava em Ruão, em 1562, após a rebelião e a subjugação da cidade), conversou. Estranhavam que homens feitos obedecessem a uma criança - o rei. E estranhavam que existissem na mesma sociedade ricos e mendigos (Montaigne, ibidem: 243-4).

Semelhanças, Dessemelhanças

Procuram-se de um lado, semelhanças, continuidades. Os índios são humanos, ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI: a bula de Paulo III em 1534 serve menos provavelmente para dissipar dúvidas a respeito do tema do que para reivindicar a jurisdição da Igreja sobre uma parcela do globo. Com o Novo Mundo descobre-se também uma Nova Humanidade. Resta o problema crucial de inseri-la na economia divina o que implica inseri-la na genealogia dos povos. Para isso, não há outra solução senão a da continuidade, senão abrir-lhe um espaço na cosmologia européia. Por que a humanidade é uma só, os habitantes do Novo Mundo descendem necessariamente de Adão e Eva, e portanto de um dos filhos de Noé, provavelmente do maldito, Cam, aquele que desnudou seu pai - razão, especula Nóbrega, da nudez dos índios -; como camitas e descendentes de Noé, os Tupi da costa guardariam aliás uma vaga lembrança do dilúvio - " sabem do dilúvio de Noé, bem que não conforme a verdadeira história" (Nóbrega 1988(1549): 91) -, suficiente no entanto, para atestar sua origem (13). E por que não poderiam ter ficado à margem da Boa Nova, teriam sido visitados pelo apóstolo São Tomé, que seria lembrado (e cujas pegadas Nóbrega teria ido ver em 1549, na Bahia, gravadas na pedra) sob o nome levemente deturpado de Sumé ou Zomé (Nóbrega 1988 (1549): 78,91,101) (14). Há aí, claramente, toda uma problemática de confluência, em que a mitologia tupi de Sumé e do dilúvio é interpretada como vestígio, confuso e distorcido, de uma origem e de um conhecimento comuns à humanidade. A essa reciclagem do mito de Sumé, já evocada desde 1515 na Nova Gazeta Alemã (15), e que visa tornar inteligível e teologicamente aceitável para os jesuítas uma situação totalmente inédita, corresponderá, por parte dos índios, uma tentativa análoga de achar lugar para os recém-chegados em sua cosmologia, assignando-lhes inicialmente o lugar de caraibas, ou seja de profetas (Thévet 1978 (1558): 100), que Hans Staden saberá usar, quando prisioneiro dos Tupinambá, para salvar a pele.

Por outro lado, na França e, mais como eco, na Inglaterra, as viagens ou melhor, os relatos de viagens, darão início a uma reflexão humanista sobre a dissemelhança. Nota-se porém que pressuposto básico, aqui também, é uma similitude suficiente para garantir a comparabilidade: pois a reflexão renascentista é muito menos uma tentativa de compreender o outro do que de se ver a si mesmo " em perspectiva" , de se compreender a si mesmo em um mundo cuja ordem, com as guerras de religião, passou a ser relativa. O "selvagem" que Jean de Léry põe em cena e que é um dos únicos personagens "falantes" do século, por mais real que seja sua fala - e a tradução interlinear que Léry fornece do diálogo atesta sua veracidade - é, nao obstante, figura de retórica, contraponto positivo de todos os horrores que o huguenote perseguido que denunciar em sua França natal (Fr.Lestringant 1983). Shakespeare com seu infame Caliban, anagrama de canibal e tão retórico quanto o Tupinambá de Léry, só inverte os valores, sem inverter os personagens e cria assim um anagrama semântico ao índio de Montaigne.

Nos jesuítas, no entanto, preocupados com a gestão das almas, a dissemelhança é assunto de outro tipo de reflexão, não sobre si mesmo, senão sobre o estatuto do alheio. Reflexão cuidadosa de quem não se pode deixar enganar, e que imputa à semelhança um caráter ilusório. Ilusão que provem do grande deceptor, o Demônio, que faz da semelhança um arremedo: as santidades, santos ou caraíbas, profetas tradicionais que assumem, no processo colonial, aspectos milenaristas, são obra de inspiração sua (F.Cardim 1980: 87-88, Nóbrega aos Pes. de Coimbra, Baía, agosto de 1549 in S.Leite vol.I: 150-151). Há nas santidades uma competição implícita pela liderança espiritual e material. Mas há também um esforço notável, simétrico ao dos missionários, de abranger o dissemelhante, de incorporar e tornar inteligíveis os estrangeiros e suas crenças.

Colocada sob suspeita e passada ao crivo dos valores que encerra, a semelhança passa a não ser percebida: em 1554, dois irmãos da Companhia, Pero Correia e João de Souza, são mortos a frechadas pelos Carijós, que teriam sido incitados por um espanhol. Os irmãos, relata Anchieta de segunda mão, aceitam seu martírio com força de alma: todos os missionários anseiam por fecundar com seu sangue a seara de almas que está sendo plantada - o topos é recorrente, por exemplo em Anchieta e em Nóbrega. " Não foi pequena", escreve Anchieta ao relatar a morte dos irmãos a Santo Inácio de Loyola, " a consolação que recebemos de morte tão gloriosa, desejando todos ardentemente e pedindo a Deus com orações contínuas morrer deste modo" (Anchieta a Loyola, São Vivente, fim de março de 1555 in H.Viotti org. Anchieta, Cartas. São Paulo, ed. Loyola: 98). A descrição e os anseios encontram paralelos claros na descrição da morte ideal do guerreiro Tupi. Digna do guerreiro, só a morte cerimonial nas mãos dos inimigos, após um enfrentamento em que se ressalta a dignidade e a altivez de quem vai morrer. A única sepultura almejada é o estômago dos inimigos: " Até os cativos julgam que lhes sucede nisso coisa nobre e digna, deparando-se-lhes morte tão gloriosa, como eles julgam, pois dizem que é próprio de ânimo tímido e impróprio para a guerra morrer de maneira que tenham de suportar na sepultura o peso da terra, que julgam ser muito grande" (Anchieta a Loyola, São Paulo de Piratininga, l de Setembro de 1554, ibidem, p.74). O trecho faz parte de carta escrita por Anchieta a Santo Inácio apenas 6 meses antes da outra, e a semelhança com o martírio dos irmãos jesuítas chama nossa atenção, mas não a de Anchieta: mesmas cenas, mesmo ânimo, mesma crença no valor de tal morte. Mas são valores diferentes, e esta diferença cega o jesuíta, incapaz de perceber a estrita semelhança entre as cenas que descreve.

O Índio dos Jesuítas

Há vários gêneros na literatura jesuítica do período,e, talvez com exceção da lírica, todos eles pedagógicos. Há as cartas a que já nos referimos, que mais do que simples relatos, são também assunto para reflexão e estudo na metrópole. Há o catecismo de Anchieta. Há o teatro, ainda de Anchieta, que pretende fornecer ao índio uma nova auto-imagem. Há por fim uma peça bastante extraordinária pelo realismo de pelo menos sua primeira parte que é o "Diálogo da Conversão do Gentio" , em que Nóbrega põe em cena as dúvidas e os preconceitos dos missionários, deixando perceber que a visão jesuíta dos índios não é homogênea. Ele próprio, aliás, parte de uma posição humanista e letrada para chegar a um pragmatismo de administrador: comparem-se as cartas de 1549, ano da chegada de Nóbrega ao Brasil, em que louva aos índios por não entesourarem riquezas e partilharem seus bens, e por "em muitas coisas, guardarem a lei natual" (Nóbrega 1988: 100), com as cartas desencantadas dos anos subseqüentes.

O "Diálogo da Conversão do Gentio" é escrito por Nóbrega na Bahia em 1556 e 1557 põe cena dois jesuítas, que não são padres, e sim irmãos, e que representam a voz corrente entre os menos graduados da Companhia de Jesus. Um dos irmãos é pregador, outro ferreiro, e Nóbrega acaba evangelicamente dando ao ferreiro o papel de maior sabedoria. A conclusão de Nóbrega é otimista - não há por que os missionários desesperarem da conversão dos índios - mas a discussão inicial que ele imputa aos dois irmãos é reveladora de um hiato entre uma visão "vulgar" do missionário e uma versão teologicamente elaborada. O gentio não tem rei, se o tivera, poder-se-iam converter reinos, como se dera no tempo dos apóstolos, como se dava então na América Espanhola e se estava tentando no Oriente (16). A conversão portanto era, forçosamente, de natureza individual. Mas os gentios careciam de fé, não adoravam coisa alguma. Como não se apegavam a velhos ídolos, tampouco se aferravam à nova fé:

"Sabéis qual hé a mor dificuldade que lhes acho? Serem tãm fáciles de diserem a tudo si ou pâ, ou como vós quizerdes; tudo aprovão logo, em com a mesma facilidade com que dizem pâ (sim), dizem aani (não)" (Nóbrega in Leite 1954. vol. II: 322). Daí sua inconstância: " Com um anzol que lhes dê, os converterei a todos, com outros os tornarei a desconverter, por serem incostantes, e não lhes entrar a verdadeira fee no coração'(Nóbrega in Leite, vol.II, p.320). Falta aos gentíos a lei que os tornaria "políticos" , membros de uma sociedade civil que lhes conferiria a "razão" , estirpando-lhes a rudeza e a bestialidade em que vivem. Este diagnóstico cru de que os índios carecem de rei, de lei e de razão é o mesmo que o Irmão Antonio Blázquez expõe sem rodeios teológicos em carta de 1555 aos irmãos de Coimbra.

"O Hermanos míos en Jesú Christo charíssimos, quántas lágrimas derramarían vuestros ojos si viéssedes estas criaturas de Dios vivir quassi a manera de vestias (quase à maneira de bestas) sin rey, sin ley y sin razón, encarniçados en comer carne humana y tan embebidos en esta bruteza que antes consentirán perder quanto tienen que dar un negro contrario, que tienen determinado de comer (17). Entre ellos no ay amor ni lealtad. Véndense unos a otros estimando más una cunã o podón que la libertad de un sobrino o pariente más cercano que truecan por hierro, y es tanta su misseria que a las vezes se lo cambian por un poco de harina (18). No tienen a quien obedezcan sino a sus próprias voluntades, y de aquí es que hazen quanto se les antoja encinándose con ellas a vicios sucíssimos y tan torpes, que tengo por mejor callarlos debaxo de silencio que escriviendo descubrir maldades tan enormes" (Ir. Blázquez, Baía, 8 de Julho de 1555, in Leite vol.11, p.252).

A este retrato negro e cheio de contradições da torpeza e da bestialidade dos índios, pode-se opor o discurso ainda humanista de Nóbrega que contrasta os filósofos empedernidos da antiguidade aos índios que apenas infringem a bagatela de dois ou três mandamentos, e de resto "entre si vivem mui amigavelmente". Em suma, resume Nóbrega, "sua bem-aventurança é matar e ter nomes, e esta é sua glória por que mais fazem. À lei natural, não a guardam porque se comem; são muito luxuriosos, muito mentirosos, nenhuma coisa aborrecem por má, e nenhuma louvam por boa;têm crédito em seus feiticeiro". Eis tudo. (Nóbrega in Leite vol.II,p.344-345).

Sem fé, mas crédulos: os jesuítas imputam aos índios uma extrema credulidade, e a coisa é só aparentemente contraditória. No fundo, a fé é a forma centralizada da crença, excludente e ciumenta. A carência de fé, de lei, de rei e de razão política não são senão avatares de uma mesma ausência de jugo, de um nomadismo ideológio que faz pendant a atomização política. A credulidade é uma forma de vagabundagem da fé. É por isso que a sujeição tem de se dar em todos os planos ao mesmo tempo; nisso parecem convergir afinal tanto os jesuítas, quanto os colonos e os administradores. A sujeição política é a condição da sujeição religiosa.

Seja como for, entre "feiticeiros" e jesuítas instaura-se desde cedo uma concorrência, que se trava curiosamente no terreno ora de uns ora de outros: ou seja, os jesuítas competem em curas e milagres com os xamãs, arvorando-se em xamãs mais poderosos (p.ex. A.Navarro, Carta da Bahia, 1550, in Navarro 1988:76), enquanto os xamãs desafiam aos padres: um caraiba, em 1550, afirma que transformaria a todos em pássaros, destruiria a igreja e o engenho, e a lagarta das roças que os padres não destruiam, ele a eliminaria (Nóbrega a Torres, Baía 5 de julho de 1559 in S.Leite 1954, III: 53). É notável que os padres, embora muito mais céticos do que será, no século XVII, o Pe. Montoya, não contestam necessariamente aos feiticeiros a realidade de suas curas, milagres e prodígios, contestam-lhes sim a fonte desses poderes sobrenaturais que não viriam de Deus senão do Demônio.

Em demônios ou espíritos - os anhang- pelo menos, à falta de crerem em Deus, os índios acreditam (H.Staden 1974 (1557): 158) e, sem grandes hesitações, os europeus também (A.Thévet 1978(1558): 115, J.de Léry 1972(1578): 159-60; F.Cardim: 87). De Bry, a partir de xilogravura da edição original de Jean de Léry difunde a imagem de índios atormentados constantemente por esses demônios. E Anchieta chega a montar todo o seu teatro destinado aos catecúmenos indígenas em cima de um roteiro único, em que vários demônios ( entre os quais faz às vezes irreverentemente figurar seus próprios inimigos como o Tupinambá Aimbiré que o manteve prisioneiro), tentam impedir as almas de chegarem ao céu. Numa das versões, inspirado, Anchieta encena o ritual máximo da antropofagia tupi: um principal quebra a cabeça a um diabo - o Macaxera - e sobre ela toma novo nome -Anhangupiara.ou seja inimigo de Anhang:

Pronto! Matei Macaxera!
Já não existe o mal que era...
Eu sou Anhangupiara!
(J. de Anchieta 1977 (1589): 244)

Luxuriosos, Sodomitas

A sexualidade indígena, como é de se prever, suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas. Jean de Léry sustenta, segundo seu uso, que, em matéria de lascívia, os europeus são piores que os brasileiros (J.de Léry 1972(1578): 177). Os costumes matrimoniais, a poliginia associada ao prestígio guerreiro, o levirato, o avunculado - ou seja o privilégio de casamento do tio materno sobre a filha da irmã - a liberdade pré-nupcial contrastando com o ciúme pela mulher casada e o rigor com o adultério, a hospitalidade sexual praticada com aliados mas também com os cativos, a iniciação sexual dos rapazes por mulheres mais velhas, os despreocupados casamentos e separações sucessivos, tudo isto era insólito. Os jesuítas debruçar-se-ão com especial cuidado sobre estes costumes (vide p.ex. Anchieta 1846), e isto por uma razão pratica: tratava-se de construir famílias cristãs com os neófitos indígenas. Para tanto, era preciso reconhecer a verdadeira esposa entre as múltiplas esposas, sucessivas ou concomitantes, ou seja, a primeira que havia sido desposada com ânimo de ser vitalícia. Por outro lado, as regras de aliança dos índios contrariavam os impedimentos canônicos, e os missionários logo são levados a pedirem dispensas ao Papa dos impedimentos pelo menos de terceiro e quarto grau.

Quanto à sodomia, fazia parte dos grandes tabus europeus e, na América, parece estar sempre associada ao canibalismo, como se houvesse equivalência simbólica entre se alimentar do mesmo e coabitar com o mesmo. Essa correspondência entre homofagia e homossexualismo é discernível entre outros em Michele de Cuneo, Cortés e Oviedo: significativamente, as duas acusações são rechaçadas em conjunto por Las Casas (A.Gerbi 1978(1975): 48-49, 118, 412 e 424), No Brasil, sua existência, como entre os portugueses - haja vista a Inquisição - é certa, mas seu estatuto moral entre os índios é incerto. Jean de Léry e Thévet mencionam-na para dizer que é reprovada pelos índios (J.de Léry 1972(1578): 174 e A.Thévet 1953(1575): 137). Os jesuítas, curiosamente, não parecem falar dela. Mas Gabriel Soares de Sousa (1971(1587): 308), já para o fim do século, carrega nas tintas: "São os Tupinambo, tão luxuriosos que não h A pecado de luxúria que não cometam...são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta; ...e nas suas aldeias pelo sertão h A alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres publicas".

Outras Nações de Índios

Aos poucos vão se conhecendo, sobretudo terra adentro, outras "castas de gentio". Pelo fim do século, Gabriel Soares de Souza e Fernão Cardim fornecem inventários complexos destas outras etnias. Um dos atributos que é repartido entre elas é sintomático da colonização: as nações são leais ou traiçoeiras, o que supõe sua inserção na rede de alianças coloniais, e deixa transparecer uma política indígena, com estratégias próprias, fazendo uso da política indigenista.

Mas, no século XVI, ainda prevalece uma visão que adere estreitamente ao etnocentrismo tupi. Denuncia-se assim a inaudita selvageria dos Aimorés de Porto Seguro e de Ilhéus: "São estes aimorés tão selvagens que, dos outros bárbaros são havidos por mais que bárbaros' (G.S.de Sousa 1971(1587): 79). São nômades, não lhes conhecendo aldeias. Não plantam roças e vivem de caça e coleta de frutos silvestres; sua fala é travada e não é passivel de escrita. São traiçoeiros e não enfrentam os inimigos em campo aberto, senão lhes armam ciladas. Comem sua caça crua ou mal assada, omofagia que prenuncia o que constitui o paroxismo da selvageria, sua antropofagia alimentar (G.S.de Sousa, ibidem), tema crucial que tratamos acima. Distingue-se assim um canibalismo de vingança - o dos Tupi - e um canibalismo alimentar, dos bárbaros Aimorés, dos Oitacás, e alguns mais. Uns seguem à risca um ritual elaborado e se comem carne humana, "não é por gosto ou apetite que a comem" (A.Pigafetta 1985(1524?): 58) mas por vingança. Os outros apenas comem para se alimentar: "Comem estes selvagens carne humana f or mantimento, o que não tem o outro gentio que a não come senão por vingança de suas brigas e antiguidade de seus ódios"(G.S.de Sousa 1971(1587): 79).

Reencontram-se aqui as oposições clássicas, entre uma antropofagia nobre, de vingança, e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto. A antropofagia e suas modalidades, será, no século XVI, um tema quase obsessivo e que servirá de operador para as grandes cisões do século. Os casos de antropofagia alimentar e de crueldades inauditas durante as guerras de religião, na França, ou na conquista espanhola das Américas, são rememorados acusatoriamente por católicos e protestantes. De um lado como de outro, publicam-se cenas de esquartejamento e suplícios atribuídos ora a calvinistas, ora a católicos. Dentro da selvageria em que a França se encontra imersa, é como se a antropofagia Tupinambá figurasse como a forma mais civilizada dentro do gênero. Em 1500, Caminha viu "gente" em Vera Cruz. Falava-se então de homens e mulheres. O escambo povoou a terra de "brasis" e "brasileiros" . Os engenhos distinguiram o "gentio" insubmisso do "índio" e do "negro da terra" que trabalhavam. Os franceses que não conseguiram se firmar na terra, viram "selvagens".

Pelo fim do século, estão consolidadas, na realidade, duas imagens de índios que só muito tenuamente se recobrem: a francesa que o exalta, e a ibérica, que o deprecia. Uma imagem de viajante, outra de colono.

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Manuela Carneiro da Cunha é professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. É autora de Antropologia do Brasil - Mito, História e Etnicidade (São Paulo, Brasiliense/Edusp, 1986).
A primeira carta sobre o Brasil, a belíssima carta de 1500, escrita por Pero Vaz de Caminha a El-Rei Dom Manuel, fica inédita e soterrada até 1773 nos arquivos portugueses.
Colombo, ao opor os pacíficos antilhanos aos caribes insulares que os devoram, permite uma primeira localização americana desse fantasma
Os índios são humanos, ninguém que os tenha visto o põe em dúvida no século XVI
A sexualidade indígena, como é de se prever, suscitou grande interesse tanto entre cronistas filosofantes quanto entre gestores de almas.
Reencontram-se aqui as aposições clássicas, entre uma antropofagia nobre, de vingança, e o apetite bestial por carne humana cujo paradigma são os citas nórdicos de Hérodoto.
(1) Uma excelente análise desses antecedentes e de sua repercussão encontra-se no livro clássico de Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso (1977 (1958)).
(2) "Encontramos que la tierra estaba habitada de gente toda ella desnuda, así los hombres como las mujeres, sin cubrirse ninguna verguenza. Son de cuerpo bien dispuestos y proporcionados, de color blanco -Colombo dizia-os brancos também, mas Caminha dizia-os pardos e Vespucci havia dito em 1500 "de color pardo y leonado" aos habitantes do caribe - de cabellos negros y de poca o ninguna barba" (Vespucci, Carta a Lorenzo de Medici, Lisboa, outono de 1501 in L.N. d'Olwer 1963: 541).
(3) Caminha não usa a palavra "selvagem". O termo é usado pelos franceses Thévet e Léry, e é glosado por Montaigne: " ils sont sauvages, de mesme que nous appellons sauvages les fruicts que nature, de soy et de son progres ordinaire, a produicts: là, où à la vérité, ce sont ceux que nous avons alterez par nostre artifice et detournez de l'ordre commun, que nous devrions appeller plutost sauvages (Montaigne 1952 (1580): 234). Inversão típica que Rousseau retomará: a selvageria não antecede a civilização, ao contrário, é seu produto, enquanto corrupção e desvio do curso espontâneo da natureza.
(4) A palavra índios é aqui usada anacronicamente: ela parece começar a ser empregada por meados do século aparentemente para designar os indígenas submetidos (seja aldeados, seja escravizados), por ocasião ao termo mais geral "gentio" que designa os indígenas independentes. Caminha e Vespucci dizem "gente", "homens" e "mulheres". Ao longo do século, usar-se-ão para designar as etnias os termos " gerações", "nações" e "linhagens".Pela metade do século, começar-se-á também a empregar a expressão " negro da terra" por escravo - além dos termos tradicionais "gentio", " brasil" e "brasileiro".
(5) Até Jean de Léry (1972 (1578): 73) ainda se fala da longevidade dos brasileiros.
(6) Os jesuítas, por motivos teológicos e jurídicos, prestarão grande atenção, meio século mais tarde, aos usos matrimoniais e às crenças dos índios. Sua busca, como veremos, vai no sentido de encontrar, pelo menos em embrião, instituições ou crenças sobre .a qual possam se assentar costumes cristãos: são eles que atestam, contrariando Vespucci, a crença tupi na imortalidade da alma.
(7) Thévet conseguiu, com tudo isso, uma consagração invejável: nomeado "cosmógrafo do rei", conservador do " Cabinet do rei", ou seja um museu de curiosidades, ele foi comparado por Ronsard a Ulisses, aliás mais do que Ulisses, por ter visto e por ter escrito o que viu: - Ainsi tu as sur luy un double d'avantige, C'est que tu as plus veu, et nous a ton voyage Escrit de ta main propre et non pas luy du sien " (apud N.Broc 1984: 153). Mas Montaigne não se ilude e publica, nos seus "Canibais", um trecho ferino provavelmente dirigido a Thévet, preferindo-lhe seu próprio informante, o normando seu empregado que havia passado de dez a doze anos na França Antártica. "Ainsi je me contente de cette information, sans m 'enquérir de ce les cosmographes en disent" (Montaigne 1952(1580): 233-234).
(8) O verbete " canibais" na Grande Encyclopédie figura com a seguinte redação: "cannibales - voyez Caraibes ou Cannibales: Sauvages insulaires de l 'Amérique qui possèdent une partie des les Antilles, tristes, rêveurs, paresseux...vivant cmnmunêment un sièle... Ils mangent leurs prisionniers rôtis et en envoient les morceaus à leurs amis...,
(9) Segundo Michèle Duchet (1977:38), a sinonímia entre canibais e antropófagos vulgariza-se a partir de Montaigne. Mesmo depois de assimiladas as duas palavras, porém, a diferença que encerravam permanece, com a mesma conotação moral.
(10) Há uma extensa literatura a respeito da morte guerreira e do canibalismo Tupinambá, instituição central dessa sociedade. Para analises, vejam-se por exemplo Métraux 1967(1928), Fernandes 1963(1949), Clastres 1972, Cunha e Castro 1986.
(11) Compara-se a versão de Shakespeare (datada de 1611), na orada de Gonzalo na "Tempestade" (ato II, cena I):
"I 'the commonwealth I would by contraries
Execute all things; for no kind of traffic
Would I admit; no name of magistrate;
Letters should not be known; riches, poverty,
And use of service none; contract, succession,
Bourn, bound of land, tilth, vineyard, none;
No use of metal, corn, or vine, or oil;
No occupation; all men, idle all;
And women too, but innocent and pure;
No sovereignty...
All things in common nature should produce
Without sweat or endeavour: treason, felony
Sword, pike, knife, gun or need of any engine,
Would I not have; but nature should bring forth,
Of its own kind, all foison, all abundance,
To feed my innocent peopler."

(12) Essa " primitivização" do tupi, com eliminação sistemática da referência à sua agricultura percorre o século XVI: Pero Vaz de Caminha poderia não tê-la observado nos curtos dias que passou na costa, mas Vespucci e Pigafetta não a mencionam tampouco. Mais deliberadamente ainda, as gravuras com que Theodor de Bry ilustra o relato de Hans Staden omitem detalhes de agricultura que figuravam nas xilogravuras em que se inspirou, como observa B.Bucher (1977:56).
(13) Sobre a lembrança e as versões do dilúvio, vejam-se entre outros H.Staden 1974-(1557): 174, J. de Léry 1974(1578): 165-6, A.Thévet 1953(1575): 39-40,43-45.
(14) O mito missionário de Sumé e, no Perú, de Pay Tumé, amplia-se como bem observa Sérgio Buarque de Holanda em estudo magistral que lhe explicita as raízes e os desdobramentos, quando passa para as colônias espanholas. No Brasil, avalia Sérgio Buarque, a história " não passa, se tanto, de um mito vagamente propedêutico" (S.B.Holanda 1977:125).
(15) Esse relato (Neue Zeitung), publicado em 1515 e baseado em expedição de ano anterior, já menciona entre os brasis e a " recordação de São Tomé", suas pegadas e suas cruzes, expandindo assim a lenda de São Tomé, originalmente apóstolo das índias Orientais (S.B.Holanda 1977(1959): 104 ss.).
(16) A questão da lei e da sujeição é ponto de algumas hesitações por parte dos jesuítas. Ora declaram que de nada vale serem os índios christãos por força e gentios na vida e nos costumes, ora mais freqüentemente desabafam como Anchieta: "Não se pode portanto esperar nem conseguir nada em toda esta terra na conversão dos gentios, sem virem pára cá muitos cristãos, que conformando-se a si e a suas vidas com a vontade de Deus, sujeitem os índios ao jugo da escravidão e os obriguem a acolher-se à bandeira de Cristo." (Anchieta a Loyola, São Vicente, fim de Março de 1555, in Leite, vol.II, p.207). Nóbrega acaba por optar pela sujeição, que é posta em prática pelo governador Mem de Sá.
(17) Referência à resitência dos índios a venderem como escravos aos portugueses os prisioneiros destinados a serem ritualmente mortos em terreiro.
(18) Esta passagem, que parece contradizer a frase anterior, é uma referência à questão de venda de si mesmo e dos seus filhos em escravidão, praticada em momentos de penúria, e que deu origem a uma discussão jurídica em que os jesuítas tomaram parte (vide Cunha 1986(1985)).